Saturday, December 16, 2006
Fogo e Agua
A imagem representa a união dos opostos; trata-se de uma representação indiana da conjunção do fogo e da água, tendo as figuras quatro mãos cada uma, mais um sinal da quaternidade perfeita.
A chama sobre o lago:
fogo e água.
Friday, December 15, 2006
George Ripley
Na Inglaterra do século XVI o pensamento hermético floresceu de modo intenso e livre, talvez porque os sucessos e atribulações do reino no tempo de Isabel I despertassem na rainha como nos seus súbditos uma curiosidade maior sobre os seus destinos e os destinos do mundo.
John Dee fora astrólogo real, para além das suas muitas outras qualificações.
George Ripley foi de igual modo influente, no pensamento como na acção, não se coibindo de descrever em pormenor o elixir de longa vida cujo segredo lhe foi revelado numa visão que descreve.
A obra que apresento aqui recupera a edição de 1591, para a tradução francesa, com introdução e notas de Bernard BIEBEL,ed. GUY TRÉDANIEL, 1992.
Contém as DOZE PORTAS DA ALQUIMIA, A VISÂO DO CAVALEIRO GEORGE e o TRATADO DO MERCÚRIO.
Na VIsão conta como um sapo se transforma diante dos seus olhos passando o seu corpo pelas três fases indicativas da obra: a nigredo, a cauda pavonis, a albedo e por fim a rubedo, côr que se fixa não se alterando mais; a partir daí, diz Ripley, preparou a sua Medicina, "que mata e que cura o que se arrisca a tomá-la".
Frances Yates, em THE OCCULT PHILOSOPHY IN THE ELIZABETHAN AGE (impres. digital 2006 ) chama a atenção para a herança medieval ( com LULL) e renascentista com Pico della Mirandola nesta paixão pelas matérias ocultas que se verifica na Inglaterra do século XVI. John Dee, o mago da corte será a figura mais marcante, mas Ripley é outro dos autores a salientar.
A marca do imaginário hermético pode encontrar-se em Shakespeare, no seu Próspero ( The Tempest ) ;
o gosto ( ou o medo) de feitiços e bruxas também é testemunhado no dramaturgo, e Yates dedica um capítulo do seu livro precisamente a " Shakespearean Fairies, Witches, Melancholy: King Lear and the Demons".
Os pactos com o diabo ou suas feiticeiras são conhecidos desde as aventuras de Fausto, de que Marlowe se ocupará;
os alquimistas serão tema da comédia paródica de Ben Jonson ( The Alchemist );
e em Spenser (The Faerie Queene ) Frances Yates encontra também a simbólica hermética neo-platónica de que Shakespeare e outros davam testemunho.
Na Europa vivia-se igual momento.Não é por acaso que Duerer grava a sua Melancolia 1 (1514 ), e Lucas Cranach pinta a sua bruxa melancólica ( 1528 ).
No quadro de Cranach vemos a jovem bruxa sentada a olhar para 4 crianças ( os quatro elementos ) no chão a brincar com um cão (sendo que o cão é o "fiel companheiro" da obra).
Dr. Dee
THE HIEROGLYPHIC MONAD.
Apresentação de Diane di Prima, expondo o que define como "memória criativa", tradução do latim e Introdução de J.W.Hamilton-Jones que considera John Dee e Edward Kelly, seu colaborador, como profundos conhecedores da ciência hermética. Na biblioteca de Dee encontravam-se obras de Roger Bacon, Alberto Magno, Arnaldo de Villa Nova, Avicenna entre outras, fazendo jus ao seu saber filosófico e alquímico.
A Monada transmite uma locubração matemática que permite igualmente uma meditação de carácter filosófico e hermético, sobre as transformações da materia prima . Escrita em treze dias, foi começada em Antuérpia a 13 de Janeiro de 1564 e terminada no dia 25 do mesmo mês.
Teve fama imediata e várias edições. O título da edição de Frankfurt, traduzido, reza assim :
" A Monada explicada hieroglifica- matematica- magica- cabalistica e anagogicamente". Ou seja, contendo nessa imagem da recta, do ponto e do circulo a possibilidade do entendimento do mistério do universo e do homem.
Bons cálculos e boa meditação aos amantes da arte.
Recordando a legenda do frontispício: " quem não percebe deve aprender ou calar-se ".
Tuesday, December 05, 2006
Alquimia e Misticismo
O alquimista.
Notre-Dame-de-Paris.
A Alquimia.
Baixo -relevo do grande pórtico de Notre-Dame-de-Paris.
Hierática, a figura sentada numa cadeira que a mandorla circular protege tem numa das mãos os livros da sabedoria, na outra o ceptro e apoiada no seu peito a escada que, tal como a escada de Jacob, permitirá chegar à esfera do conhecimento divino.
Ver Fulcanelli, Le Mystère des Cathédrales, Paris 1964
G.J.Witkowski, L'Art Profane à l'Église, Paris, 1908
Monday, December 04, 2006
The Art of Memory
O Silêncio Hermético.
Achilles Bocchius, Symbolicarum quaestionum...libri quinque, Bologna 1555.
Reproduzido em Frances Yates, THE ART OF MEMORY:
" The aim of the memory system is to establish within, in the psyche, the return of the intellect to unity through the organization of significant images".
( cap.9, Giordano Bruno, The Secret of Shadows )
Interessante será recuperar, para esta mesma ideia, a imagem do Anjo de Portugal com o mesmo gesto do silêncio, no Convento de Cristo de Tomar.
Sunday, December 03, 2006
Fortuna
Fortuna ( Tyche among the Greeks ) is "Chance deified and personified in a feminine deity. She was represented with the horn of plenty with a helm, because she is the one that 'steers' man's life, sometimes sitting, sometimes standing, almost always blind".
(Pierre Grimal)
Pequena estátua da Fortuna, do séc.1 d.C. encontrada em Torres Novas, Santarém.
Pode ser vista na exposição das Religiões da Lusitânia , nos Jerónimos.
A não perder.
Saturday, December 02, 2006
Cruzeiro Seixas
Cantemos os poetas enquanto estão vivos, ler os seus versos é como ver-nos ao espelho !
" Ali mesmo paredes meias com o fogo
estava talvez eu
olhando o tecto como se olha um prado
com rapidíssimos malmequeres descendo a abismos profundísimos
onde incessante murmurava uma fonte de trevas
de sangue de horror
verde-bronze.
Olho-me em função do que vejo nos outros
quero dizer
que os outros são o meu espelho.
Sou por compensação e por reacção
e assim espelho de feira
o desequilíbrio cósmico
não me é dado.
A minha problemática parte daqui.
Evidentemente que deveria ser o contrário disto
não ouvir não olhar não comparar
ser eu ainda
um oceano desconhecido.
Mas pelo contrário sei que sem os outros
não seria movimento;
tudo o que faço é como uma reacção à chicotada
que é minuto a minuto
o dia-a-dia.
Escrever ou pintar
não parecem forma de me encontrar
de me esconder de te encontrar.
....
Tudo o que faço e o que não faço
transcende de muito no entanto
o visível o palpável
o imaginável.
Entre mim e mim
há o infinito da proximidade.
...
Será que os espelhos
agem por medo
em estado de pânico ?
Cada peito uma rocha
e tudo espelhando a dissonancia
como uma jangada enquanto esperamos da chuva uma qualquer verdade
- qualquer serve-
para enganar as fomes em equilíbrio instável
entre dois continentes incontinentes
um a vida como um mineral
outro a morte esse vegetal eternamente desconhecido
no mar
como num leito em fúria ".
( Artur do Cruzeiro Seixas, OBRA POÉTICA, vol.I,
organização de Isabel Meyrelles, ela mesma poeta e tradutora
Quasi ed., 2002 )
A Morte Alquimica
Saturday, November 25, 2006
A Doutrina dos Polos
Regularmente, por pura saudade da misteriosa Alhambra hermética, releio o estudo de António Enrique, Tratado de la Alhambra Hermética.
É certo que estive lá e isso torna a saudade maior.
Encontro agora no meu autor a referencia à doutrina dos Polos, que em Espanha se ficou a dever ao místico Ibn Arabí e foi sistematizada pelo seu discípulo Ibn Salin (1270).
Curioso é, como nota A. Enrique, que a mesma doutrina seja aplicada no antigo Império Celeste ( a China ) não para o entendimento das esferas de santidade " mas sim para o entendimento da música das esferas ".
Ideia que iremos de resto voltar a encontrar mais tarde na obra de Shakespeare, também ele um iniciado, a seu modo, por influencia renascentista.
Continuando com A.Enrique:
" El nacimiento de la música se remonta muy atrás en el tiempo.Tiene ella origen en la medida y arraiga en el Gran Uno".
(traduzindo, tem origem na Medida e enraiza no Grande Uno, ou seja,o princípio primordial de onde tudo, por emanação ordenada,medida, procede).
" El Gran Uno procrea los dos polos; los dos polos engendran la fuerza de la oscuridad y de la luz. Cuando el mundo queda en paz y hay calma, la música cobra integridad ( trad. adquire integridade). Cuando los deseos y las pasiones no andan por falsas vías, la música se hace perfecta. La música perfecta tiene su causa: proviene del equilibrio. El equilibrio emana de lo justo, lo justo procede del sentido del Universo. Por eso sólo se puede hablar de música con un hombre que ha llegado a conocer el sentido del Universo. La música reposa sobre la armonía entre el cielo y la tierra, sobre la concordancia entre las tinieblas y la luz".
A. Enrique citava aqui Lue Buwe na sua obra PRIMAVERA Y OTOÑO, por sua vez citado por Hermann Hesse no JOGO DAS CONTAS DE VIDRO...
Assim se faz a transmissão do que é tradição e não se perde no tempo : o tempo dos iniciados é circular, tudo nele está contido e protegido para sempre.
Os Sufis atribuíam grande importancia à música, manifestação das altas esferas da alma. Mas tal importancia provinha já de pitagóricos e platónicos e não é por acaso que a reencontramos nos dramas tão conhecidos de Shakespeare: "desafinadas" as cordas da vida, o próprio universo se via desafinado, desacordado, quebrada a sua primeira e divina "concordancia".
A referencia à unidade dos opostos é ainda própria da alquimia, sabedoria hermética por excelência. E António Henrique, no seu estudo, abunda em exemplos desse género.
Ao leitor curioso deixei as referencias importantes, o resto é caminho próprio. De preferencia visitando Granada, pois como diz o refrão, quem não viu Granada não viu nada !
Sugiro ainda que veja em literatura e arte o post sobre OS MEDIDORES.
Magic Mirror
Wednesday, November 22, 2006
Medicina, Magia , Alquimia...
PHILIP BALL ganhou o Prémio Aventis para Livros Científicos com esta obra intitulada THE DEVIL'S DOCTOR, sobre Paracelso e o mundo da magia e da ciência no Renascimento.
A edição é de Londres, 2006, e de grande interesse para os estudiosos destas matérias herméticas e não só, pois a dimensão científica e psicológica da obra de Paracelso está a despertar finalmente a atenção que merece.
Jung foi pioneiro, neste tipo de abordagem, mas Philip Ball alarga o âmbito do seu estudo, proporcionando uma leitura ao mesmo tempo informada e apaixonante.
Esperemos que esta obra possa ser rapidamente traduzida em português.
Sunday, November 19, 2006
A Fonte da Vida
Outro dos grandes "motivos" da literatura alquímica, neste caso em gravura do Rosarium philosophorum, 1550.
A fons mercurialis apresenta-nos os tres reinos, mineral, vegetal, animal; os três princípios,(os bicos de onde escorre a água -enxofre, mercúrio e sal, ou espírito, alma e corpo ); o dragão de duas cabeças formando um mandala de perfeição contendo os opostos sol e lua, par andrógino, imagens da conjunção, antecipada por uma flor que uma estrela parece coroar. Se a flor ainda nos liga à natureza e à vida, a quinta estrela não deixa dúvidas quanto à meditação que se propõe : a da sublimação de toda a materia prima, a quinta-essencia. Da forma mandálica fazem parte as outras quatro estrelas e o corpo-fogo ou fumo (sublimação) do dragão de duas cabeças.
O poema que acompanha a gravura reza o seguinte :
Somos de todos os metais
Princípio e natureza primeira.
A arte faz de nós pelos seus trabalhos
A tintura mais admirável.
As águas e as fontes puras
Assemelham-se a mim. Alivio o sofrimento
Dos pobres e dos ricos também.
Sou visível e puro espírito .
Mercurio
Mercurio preside a múltiplas actividades: (Ms. c.1400)
As rotinas do quotidiano estão presentes, tanto quanto as mais misteriosas de estudo ou transformação da materia (materia prima, que pode ser figurada pela serpente ou pelo dragão, ou ainda por algum dos quatro elementos que o bestiário alquímico represente, o peixe para a água, o pássaro para o ar, etc. )
Há algo de excessivo nas atitudes das personagens, algo de boscheano, de apocalíptico, que tanto remete para a Nave dos Loucos de S.Brant, como para a abadia de Thelème de Rabelais, com a sua máxima "fais ce que vouldras", faz o que quiseres.
Entenda-se por este conjunto de sinais que a cada um será dado seguir o seu caminho próprio e não outro imposto por qualquer sabedoria omnipotente, pois tal coisa não existe.
Viver a vida , na sua multiplicidade, diversidade, contradição - só isso levará à plenitude. E só a plenitude se pode aproximar da perfeição da Pedra filosofal.
Cito o final de um poema alquímico em que o autor define a seu modo a loucura bemfazeja da Obra:
Cantique des Aigles
....
Vide fécond,Terre affermie,
Réseau d'or animant le tout,
Infime point, rose, cadmie,
Merveille vive au coeur du fou !
( in E.Perrot, Coran Teint, 1979 )
Saturday, November 18, 2006
Saturday, November 11, 2006
O Livro da Felicidade
MOLEIRO EDITOR anuncia para 2007 o fac-simile deste tratado do século XVI pertencente à Biblioteca Nacional de França, onde foi depositado pr Gaspard Monge (1746-1818) que o trouxe do Cairo para Paris.
Este LIBRO DE LA FELICIDAD foi traduzido de um original escrito em árabe por ordem do sultão Murad III (1574-1595).
Descreve os doze signos do zodíaco, representados em mniaturas de grande inspiração e delicadeza ; contém pinturas que mostram o ser humano em diversas situações da sua vida, conforme a influencia planetária ; um folio apontando o carácter das mulheres de acordo com os seus dotes físicos mais ou menos avantajados (nesse tempo gordura era formosura e marca de se ser boa parideira ); e ainda um conjunto de tábuas astrológicas e astronómicas e um tratado de adivinhação.
Por este último se poderia chegar a uma relação com as matérias alquímicas da época, em que a tradição árabe, tanto quanto a ocidental, nesse tempo abundava.
Sunday, October 22, 2006
Zosimus
Zosimus é um dos mais antigos alquimistas gregos cujos textos, datados do século III, chegaram até nós.
Estudados e publicados por Marcelin Berthelot ( 1827-1907 ) iniciam um conjunto do que foi a obra maior deste erudito, cientista de formação que, ao lado da história da química, se interessou pela da alquimia.A sua COLLECTION DES ALCHIMISTES GRECS foi publicada ao longo dos anos 1887-1888 e só em bibliotecas pode ser consultada.
Mas um novo projecto foi elaborado por outro especialista, H.D.SAFFREY, que se propôs editar em 12 volumes toda uma colecção de textos alquímicos gregos : desde os primeiros fragmentos de receitas, passando pelos "velhos autores", com os physica et mystica de Demócrito, Ostanès, Cleópatra, Comarius, Isis a Horus, Hermes Trismegisto, outros que surgem em volumes seguintes, remontando a Moisés. Muitos dos textos serão atribuições, conservar o anonimato era importante, mas não têm menos valor simbólico por isso.
O volume dedicado a Zosimo contém os tratados e fragmentos deste importante autor, talvez o mais influente para a alquimia pela sua dimensão visionária.
É uma tradição constante afirmar que a arte dos alquimistas tem origem nos santuários egípcios. Um manuscritos encontrado em Leiden em 1830 por um erudito holandês ( C.J.C. Reuvens, 1793-1835 ) veio confirmar esta tradição, tão grata aos adeptos.
No museu de Antiguidades da Universidade de Leiden estava conservado um papiro com um tratado químico, greco-egípcio.
HERMANN KOPP divulgou logo esta novidade na sua História da Química, mas foi sobretudo Berthelot quem fez jus ao mérito da descoberta.
Zosimus descreve uma série de visões em que supostamente são reveladas as principais fases da Obra, tal como vem a ser entendida.
Vê primeiro um altar em forma de taça a que se ascende por meio de uma escadaria.
Em três momentos diferentes aparece-lhe um sacerdote que será sacrificado diante dos seus olhos. Cada um desses momentos representa a natureza interior do visionário, com os seus diferentes níveis, que terão de ser sublimados para que ele atinja o altar do conhecimento ( também auto-conhecimento).
Temos aqui um paralelo com o "caldeirão" da sabedoria dos celtas, ou com a "taça" do Graal, que também se conquista através de sucessivas "purificações" e sacrifícios impostos.
Um sacerdote é cortado aos bocados e antes de ser consumido pelo fogo vomita-se a si próprio como homúnculo.
Um homem de cobre é destruído e renasce como homúnculo vestido de vermelho.
Surge um profeta idoso, embranquecido pela idade, que é atirado para dentro da taça, ou caldeirão.
Finalmente o detentor do Meridiano do Sol é também desmembrado e o visionário pode contemplar o Mistério.
Para alguns a visão é entendida como símbolo relacionado com o tempo, pela referencia ao meridiano do sol. O adepto, com o passar do tempo ( até à idade provecta ), foi subindo os sete degraus da Sabedoria.
Para um alquimista toda a lição de Zosimo é poética e simbólica, e respeita aos segredos do mundo e da alma. Cresce-se nascendo e morrendo várias vezes, sendo a imagem do homunculo (pequeno homem, noutros tratados surgindo como criança, e recordo a propósito os misteriosos "putti" de alguma pintura medieval e renascentista ) - uma imagem paralela à do feto que se desenvolve no útero e depois de nascer passará por diversas fases de crescimento até uma idade madura ou uma velhice de paixões sublimadas.
Nota-se no pensamento alquímico uma dimensão filosófica que provém desta ideia de um passado mais longínquo e misterioso conservado na memória pelo menos do sonho.
(a imagem é retirada de um folio do Splendor Solis, a devoração do negro do vermelho e do branco simbolizando a anulação das paixões, os desequilíbrios da consciência e da alma, para se atingir a perfeição da albedo, o branco renascido, sobreposto aos outros na matriz do ser ).
Tuesday, October 03, 2006
Lacan
Lacan a propósito da leitura dos sonhos:
" O que regressa como reprimido é o sinal apagado de algo que só adquire valor no futuro, através da sua realização simbólica".
O que se aplica ao sonho aplica-se ao poema, e a tantas outras formas de arte que nos levam "para o lado de lá", como diz Pessoa.
Os alquimistas não dizem outra coisa.
" O que regressa como reprimido é o sinal apagado de algo que só adquire valor no futuro, através da sua realização simbólica".
O que se aplica ao sonho aplica-se ao poema, e a tantas outras formas de arte que nos levam "para o lado de lá", como diz Pessoa.
Os alquimistas não dizem outra coisa.
Saturday, September 23, 2006
Amplificatio
Não há talvez melhor exemplo literário da amplificatio alquímica do que o romance LARVA de Julián Ríos, em quase todas as suas páginas, que devem ser saboreadas com prazer rabelaisiano. Sendo ele mesmo um autor deglutidor voraz, pantagruélico a seu multi-modo!
Aqui deixo os exemplos, que falarão melhor por si do que eu por eles:
32.
Glosa a glosa, golosa...
Golosa? murmuré o, mejor dicho, murmuró Babelle inclinándose sobre el Ficcionario. Aqui dice Infernáculo...
(Saboreaban lentamente cada palabra, dándole vueltas, como un caramelo.Golosina a glosina...)
El Ficcionario de la lengua ! La novela de las palabras ! Tesoro de palabras contantes y sonantes !...
A veces una sola palabra se convertia en todo un festin para esos poliglotones.
O par alquímico, o autor com a sua babélica Babelle, depois de se deleitarem- deitarem nas folhas que desfolharam do seu Ficcionário mágico, passarão à fase contrária- a da condensação.
Na amplificação toda a Obra se desdobra, na condensação toda a Obra se reduz ao que virá a ser : um ponto no centro da esfera (espera) da vida ou da sabedoria que entretanto se adquiriu ao longo do longo processo, por excesso !
No Jardim Perfumado , descrito nos 9 pontos que podem ser lidos mais acima, o fim é mesmo um fim:
Sic, moro.
A anulação é um fim, mas permite um eterno recomeço.
É esse afinal o segredo.
Wednesday, August 23, 2006
Pessoa /Alvaro de Campos
The well of nigredo:
" The ancients used to invoke the Muses.
We invoke ourselves.
I don't know if the Muses appeared-
Invoked and invocation must have had some
conformity-
But I know we don't appear.
How often I have leaned
Over the well I suppose I am
And bleated 'Ah!' to hear an echo,
And have not heard more than what I saw-
The vague dim dawn-grey of the water answering
the light
Down there in the uselessness at the bottom...
No echo for me...
Only, vaguely, a face,
Which must be mine since it can't be someone else's.
It is a thing almost invisible,
Except as and when luminously I see
There at the bottom...
In the silence and the false light at the bottom...
What a Muse !..."
(Translated by Jonathan Griffin )
The essence of Pessoa was religion and scepticism, writes J.Griffin in the Introduction to this translation.And he goes on : "Pessoa was not a naif, anything but . He was looking for a meaning, not ruling out any possibility and not liking what he thought he found. He believed as a man believes who wishes he did not:
' Why did you give what I asked, Holiness?
I know the Truth , at last, of the real Being.
Would it had pleased God I should know less! '.
Pessoa , through all his heteronyms, lived and wrote constantly in this akward oscillation between believing and denying.
I conclude with Griffin: "So, in poem after poem, the end-effect is a lucid mystery : in a closed form, an open content."
(See the Introduction to Fernando Pessoa, Selected Poems, Penguin )
" The ancients used to invoke the Muses.
We invoke ourselves.
I don't know if the Muses appeared-
Invoked and invocation must have had some
conformity-
But I know we don't appear.
How often I have leaned
Over the well I suppose I am
And bleated 'Ah!' to hear an echo,
And have not heard more than what I saw-
The vague dim dawn-grey of the water answering
the light
Down there in the uselessness at the bottom...
No echo for me...
Only, vaguely, a face,
Which must be mine since it can't be someone else's.
It is a thing almost invisible,
Except as and when luminously I see
There at the bottom...
In the silence and the false light at the bottom...
What a Muse !..."
(Translated by Jonathan Griffin )
The essence of Pessoa was religion and scepticism, writes J.Griffin in the Introduction to this translation.And he goes on : "Pessoa was not a naif, anything but . He was looking for a meaning, not ruling out any possibility and not liking what he thought he found. He believed as a man believes who wishes he did not:
' Why did you give what I asked, Holiness?
I know the Truth , at last, of the real Being.
Would it had pleased God I should know less! '.
Pessoa , through all his heteronyms, lived and wrote constantly in this akward oscillation between believing and denying.
I conclude with Griffin: "So, in poem after poem, the end-effect is a lucid mystery : in a closed form, an open content."
(See the Introduction to Fernando Pessoa, Selected Poems, Penguin )
Tuesday, August 22, 2006
Da Nigredo I
1
Nigredo, a depressão mais negra, o abismo pasmado em que se cai.Treva que paralisa, olhar que não se fixa, melancolia, asa de corvo, descida ao vale...morte, de que se tem consciencia.
São tantas as formas .
Albrecht Duerer, um alquimista da alma.
2
Basilio Valentino, monge beneditino do século XV a quem estão atribuídos muitos tratados de alquimia expõe nas DOZE CHAVES DA FILOSOFIA uma doutrina que revela estreito conhecimento da ciência hermética.Reza a lenda que os seus escritos foram encontrados em Erfurt devido a um relâmpago que fez abrir uma coluna, deixando-os a descoberto. A versão latina da Doze Chaves foi divulgada por Michael Maier, médico da corte de Rudolfo II, e em regra é sobre esta versão que os estudiosos trabalham.
O paradigma da Grande Obra define-se por esta legenda:" Visita o interior da Terra e Rectificando descobres a Pedra Oculta". É no termo rectificando que reside todo o segredo; pois não bastará descer ao interior da terra, reconhecer o abismo em que a marca do Negro, da Nigredo, nos faz cair - será preciso , por uma especial purificação, consciencialização (sublimação) atingir um supremo entendimento (integração ) da condição que é a nossa. A Pedra somos nós,a menos que se leia a alquimia como processo real de manipulação química com que se pretenda fazer ouro.Também é possível, mas não é disso que falaremos aqui.
3
O esqueleto que se anuncia como cavaleiro da morte, em Duerer, tal como o esqueleto que se ergue do caixão, em Valentino,
prefigura de facto a morte que a todos espera, mas tem além disso outro valor simbólico : o anúncio de que a morte é o princípio de uma Ressureição, algo que para todo o espírito religioso fazia sentido, e para o espírito do alquimista ainda mais, pois a metamorfose desejada lhe seria ainda mais possível e mais próxima - como forma de arrebatamento místico e fusão com uma luz puramente interior.
É esse o significado do lírio e das flores que se notam na gravura, bem como da luz acesa na vela. O carvalho seco deixa ver atrás uma árvore que é já a Árvore da Vida.
4
Na filosofia química nada é despiciendo ou desprezível: não há caput mortuum, como dizem os alquimistas; tudo é passível de transformação, transmutação luminosa.
5
Citando Basilio Valentino:
"Um céu e uma terra novos serão formados..e um novo homem aparecerá mais brilhante do que antes, e será glorificado".
Da Nigredo II
Fernando Pessoa
Lâmpada deserta,
No átrio sossegado.
Há sombra desperta
Onde se ergue o estrado.
No estrado está posto
Um caixão floral.
No átrio está exposto
O corpo fatal.
Não dizem quem era
No sonho que teve.
E a sombra que o espera
É a vida em que esteve.
Lâmpada deserta,
No átrio sossegado.
Há sombra desperta
Onde se ergue o estrado.
No estrado está posto
Um caixão floral.
No átrio está exposto
O corpo fatal.
Não dizem quem era
No sonho que teve.
E a sombra que o espera
É a vida em que esteve.
Da Nigredo III
Da Nigredo IV
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos
"Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados
O esplendor do sentido nenhum da vida...
Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!
Quero cessar sem consequencias...
Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo".
Espírito e alma separados, como na gravura, levam a marca negra do corvo.
Da Nigredo V
Fernando Pessoa vive entre sombra e luz, numa doença de alma interminável:
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
Este" Quem" oscila porque não é reconhecido. Entre ser luz e ser sombra - se desenha a hesitação ( o eterno Intervalo ) do poeta :
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.
Wednesday, July 26, 2006
Depois da Agua o Fogo
4
Y lo que decimos que se a de imitar
por el matrimonio que se a de haçer
no quiero lo ignores pues lo has de saber
que es el sol perfetto y el mas singular
no engannen los sabios con disimular
que el sol y la luna á la obra conviene
porque en sí la luna y el sol contiene
y la esperiencia se lo ha de mostrar.
5
Entiende ó operante que es menester
que eetos dos juntos de quien e hablado
hembra y macho los emos nombrado
porque es matrimonio de hombre y muger
encierralos luego sin mas detener
no le estorues la muerte secreta
que caussa la vida muy mas perfeta
segun por la obra podras conoçer.
Adiante, nas estrofes eguintes, se passa então à chamada via seca, obra do fogo; e as indicações prendem-se com o saber regular a temperatura certa desse fogo, para que a obra não se perca.
A noção de "medida" é muito sublinhada, como a de ordem, equilíbrio, que a balança representa, harmonia, enfim.
Tem de ser harmonioso e nunca precipitado o caminho da via filosofal, seja qual for o entendimento que se tenha dela.
15
Tendrás en memoria los grados del fuego
a donde el infante se nutra y cresca
....
19
Si mas adelante quisieres passar
al ultimo grado y perfetto balor
aumentale el fuego con mucho temor
que no ay otra forma jamas que ensenãr
de blanca muy roja se te a de mostrar
aquella donçella de todos nombrada
y aqui se te muestra la obra acabada
si saues la obra de multiplicar.
Um texto alquímico deve ser lido, tal como as gravuras, em função de conceitos ou imagens nucleares.
Assim vimos apontados os princípios complementares (macho e fêmea, sol e lua, negro e branco) ; o casamento químico, na dissolução da água; a fixação do filho (a pedra filosofal) na obra do fogo; e concluída a obra com sucesso a "multiplicação" como marca final. Pois do Um nascerão Muitos, em devida proporção:
23
....
no hierres la forma de multiplicar
pues es con mercurio del bulgo mas fino
la forma y el pesso tendras de contino
escrito en tu pecho con mucho contento
y desta una parte con diez no te miento
sera todo lapis perfecto y muy fino
24
de lo postrero assi multiplicado
se tiene otra vez de multiplicar
un pesso con çiento del mismo vulgar
como primero lo tienes obrado
y todo será mediçina forçado
con que metales agora curemos
y al mismo mercurio tambien si queremos
de la imperfection perfecto acabado.
Já nas últimas estrofes ( são 28 ) se erguem louvores à Trindade, acrescentando um tom piedoso, respeitador, ortodoxo que possa garantir sossego e boa consciencia tanto a quem escreve como a quem lê, ou pratica.
Pelo caminho ficaram os princípios, os elementos, as cores,a conjunção como fase primordial, até se chegar ao elixir, ou à pedra , e à multiplicação de benesses que a sua descoberta proporciona.
Bibliografia, para selecção e entendimento psicológico da Arte Real da Alquimia: JOHANNES FABRICIUS,The Medieval Alchemists and their Royal Art, 1976
LUANCO, LA ALQUIMIA...
Um acaso feliz permitiu-me encontrar a obra de Luanco sobre a Alquimia em España, repositório de descrições de códices e transcrições de textos encontrados nas bibliotecas de Madrid, de Sevilha e outras. É um volume precioso para os estudiosos de alquimia que não possam, como ele fez, dedicar-se aos arquivos que percorreu para dar o seu contributo de grande erudição nestes domínios.
O volume que cito é a reedição fac-similada dos dois volumes publicados em 1889 e 1897, na EDITORIAL ALTA FULLA, de Barcelona.Do seu conteúdo seleccionarei, com tempo, um dos códices mais interessantes, as COPLAS DE DON LUIS DE ÇENTELLAS( sic ).
Recordo, para entendidos que, como disse um sábio que Luanco, ele próprio decano de química e Reitor da Universidade de Barcelona, gostou de citar, a química actual é " a filha sábia de uma mãe louca": la hija sabia de una MADRE LOCA.
Don Luis viveu no século XVI, foi um dos três mais destacados alquimistas do seu tempo (primeira metade do século) juntamente com o Dr.Manresa a quem escreve, em carta datada de 1552, sobre matéria alquímica do interesse de ambos; Luanco acrescenta ainda Baltazar de Zamora como igualmente distinto.Eis a primeira das "coplas"sobre a pedra filosofal:
1
Toma la dama que mora en el çielo
ques hija del sol sin duda ninguna,
y aquesta prepara en bagno de Luna
do labe su cara de su negro velo
despues si pudieres al sol y al ielo
en el mismo banno la tenga en prission
hasta que purgada de su imperfeccion
nos sea lucero acá en este suelo.
Desde logo surgem o sol e a lua como pai e mãe da Obra que vai decorrer, por via húmida (em banho, e não em fogo) até que a perfeição conseguida se transforme em astro iluminando este mundo.
A Pedra é feminina, referida como "dama" e a não ser confundida com qualquer espécie animal ou vegetal - como o autor explicará na segunda e na terceira estrofes. É esta descrição feminina da Pedra Filosofal que levará Jung, nos seus estudos, a identificá-la com uma projecção da ANIMA do adepto.
2
No entiendas que es obra de algun animal
ni menos es planta que nace en el suelo
mas es una dama que vive en el cielo
de allí nos la baxan esta obra real
y para nosotros es tan natural
que nuestros cuerpos con ella curamos
y los imperfectos perfectos tornamos
de todos secretos el mas principal.
3
Y quando tu bieres la dama hermossa
así preparada por nuestro artifiçio
has que la pongan en otro exerçiçio
á donde se vea tan maravillossa.
Juntalda luego con la otra cossa
por el matrimonio do se a de engendrar
el hijo mas noble y mas singular
que el padre y la madre y mas preciossa.
A referencia ao "matrimónio" e ao filho que dele há-de nascer é o que permite que se defina a conjunção de opostos (sol e lua,água e fogo, negro e branco,etc.) como o processo mais subtil de que nascerá o philius philosophorum, que podemos ver representado em tantas e tantas gravuras antigas.
Adiante o alquimista explicará ao adepto que se trata de macho e fêmea e que na dupla dimensão física e metafísica se entenderá o processo.Com o passar do tempo, e o receio aumentado de perseguições, dado que existiram e não foram poucas, a linguagem alquímica se "espiritualizará" mais, e se tornará mais confusa e de algum modo esvaziada do que podia ser o seu alcance profundo. A Perenelle de Flamel, companheira da Obra, Maria Profetiza, iniciada e iniciadora, desaparecerão por trás de uma simbólica pretensamente divina onde até Jesus e a Virgem como representações da Pedra terão o seu lugar.
Monday, July 03, 2006
O Soneto, com Herberto Helder
Em OFÍCIO CANTANTE ( 1953-1963 ), Portugália Editora, 1967 encontramos uma recolha da poesia com que Herberto Helder começava a renovar o país literário. Não por acaso o livro começa com uma citação de Michaux:
"Je ne peux pas me reposer, ma vie est une insomnie, je ne travaille pas, je ne dors pas ...tantôt mon âme est debout sur mon corps couché, tantôt mon âme couchée sur mon corps debout, mais jamais il n' y a sommeil pour moi...car cherchant, cherchant et cherchant, c'est dans tout indifféremment que j'ai chance de trouver ce que je cherche puisque ce que je cherche je ne le sais".
Estamos perante o labor do lê, lê e relê dos alquimistas e do esforço da contemplação e da descoberta - através de uma procura incessante.
Logo no primeiro conjunto dos poemas aparece - e de novo, julgo que não por acaso, mas por "coincidencia feliz" - a releitura transformadora do célebre soneto de Camões, de marca mística, platónica, com o seu primeiro verso tão intenso que se torna avassalador fixando-se para sempre na memória.
Eis como Herberto o leu e releu, caminhando por dentro do soneto como quem caminha, insomne, por dentro de um labirinto:
" ' Transforma-se o amador na coisa amada' com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro.Traz ruído
e silêncio.Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
Transforma-se o amador.Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta.O amador entra
por todas as janelas abertas.Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como no primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimenta
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor ".
Da espiritualidade mística, conceptual, de Camões à fisicalidade, à corporificação, da experiência do amador e da amada, todo um processo criador tem lugar de que vamos, gradualmente, fazendo parte: o corpo está presente, os elementos, as estações, e o grito, que remete também ele não só para a explosão do amor como para o primeiro grito de todos, o primordial do Verbo quando a divindade ( simultâneamente amador e coisa amada ) explode no desdobramento do universo criado. Do dois que se deseja Um chegamos no fim do poema ao entendimento do Um que se descobriu dois, no silêncio "do mundo e do amor".
"Je ne peux pas me reposer, ma vie est une insomnie, je ne travaille pas, je ne dors pas ...tantôt mon âme est debout sur mon corps couché, tantôt mon âme couchée sur mon corps debout, mais jamais il n' y a sommeil pour moi...car cherchant, cherchant et cherchant, c'est dans tout indifféremment que j'ai chance de trouver ce que je cherche puisque ce que je cherche je ne le sais".
Estamos perante o labor do lê, lê e relê dos alquimistas e do esforço da contemplação e da descoberta - através de uma procura incessante.
Logo no primeiro conjunto dos poemas aparece - e de novo, julgo que não por acaso, mas por "coincidencia feliz" - a releitura transformadora do célebre soneto de Camões, de marca mística, platónica, com o seu primeiro verso tão intenso que se torna avassalador fixando-se para sempre na memória.
Eis como Herberto o leu e releu, caminhando por dentro do soneto como quem caminha, insomne, por dentro de um labirinto:
" ' Transforma-se o amador na coisa amada' com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro.Traz ruído
e silêncio.Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
Transforma-se o amador.Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta.O amador entra
por todas as janelas abertas.Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como no primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimenta
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor ".
Da espiritualidade mística, conceptual, de Camões à fisicalidade, à corporificação, da experiência do amador e da amada, todo um processo criador tem lugar de que vamos, gradualmente, fazendo parte: o corpo está presente, os elementos, as estações, e o grito, que remete também ele não só para a explosão do amor como para o primeiro grito de todos, o primordial do Verbo quando a divindade ( simultâneamente amador e coisa amada ) explode no desdobramento do universo criado. Do dois que se deseja Um chegamos no fim do poema ao entendimento do Um que se descobriu dois, no silêncio "do mundo e do amor".
Sunday, July 02, 2006
Mais Leituras, com Reckert
Pois é verdade, podemos seguir o rasto do Livro do Amigo e do Amado, pelo século XX, em Cesário Verde, e pela mão de Stephen Reckert que não deixa cair no esquecimento a obra deste poeta.
Em UM RAMALHETE PARA CESÁRIO,1987, somos levados a um conjunto de fontes, sendo por vezes Cesário a própria fonte, como no capítulo relativo a Cesário Verde e Álvaro de Campos "ENTRE QUALQUER CAIS E O CAIS ".
No capítulo seguinte, "SUBITAMENTE - QUE VISÃO DE ARTISTA! " o percurso vai de Baudelaire a Cesário e à Arte de 'Fazer Novo'.
Concordo com o que diz o autor, "toda a viagem- mesmo uma modesta deambulação sem meta predeterminada- pode e deve ser também aprendizagem.O 'não~evoluo:viajo' de Fernando Pessoa não passa de uma boutade, típica da ironia mistificadora de quem o disse.FAHREN é sempre ERFAHREN, e quem não aprendeu não viajou, deslocou-se apenas" (as maiúsculas são minhas ).
Nesta viagem de Baudelaire a Cesário descobrimos então como as gerações de criadores alimentam o seu imaginário recuperando e transformando os conteúdos poéticos uns dos outros.
O caso interessante que desejo citar é o do poema de Baudelaire LE SOLEIL e do último verso em que "a alma do poeta baloiça 'sans mâts, sur une mer monstrueuse et sans bords,'" ( Reckert, p. 48 ) ; um verso que será desdobrado por Cesário, segundo Reckert nota, em "terrível visão final das 'marés de fel, como um sinistro mar', em o SENTIMENTO DUM OCIDENTAL, e ainda no 'mar sem praias' de SETENTRIONAL."
E aqui surge então a interessantíssima observação, em rodapé:
" Trata-se neste último poema de um amor grande como um mar sem praias : eco fortuito de Ramon Llull : Amor és mar tribulada...que no ha port ni ribatge" ( in Libre d'Amic e Amor ), Reckert, p. 48.
O imaginário português é atravessado pelo contexto ibérico, lírico, filosófico e religioso ( místico ) ainda no nosso tempo, de forma mais directa ou mais fortuita, mas sempre portadora da informação que as viagens como esta nos permitem.
Escreveu um amigo no seu Blog, de título sugestivo HEAVENTREE: Travel broadens the mind. Não podia estar mais certo. E ler e estudar são formas de viagem, só viajando é possível comparar, e comparando crescer e aprender.
Saturday, July 01, 2006
Mais Leituras
Aqui ficam mais leituras para estes assuntos abordados:
LEÃO HEBREU ( Iehudah Abrabanel ), DIÁLOGOS DE AMOR, 2 vols., texto fixado, anotado e traduzido por Giacinto Manuppella ,ed. INIC, 1983.
"Mensagem de amor em clave filosófica aberta para um cauteloso sincretismo clássico e medieval " assim define o texto G.Manuppella.
Luis de Camoes, o Soneto mais estudado
A quem tenha lido o Livro do Amigo e do Amado de Raimundo Lúlio este soneto de Camões parecerá desde logo ter uma mesma linha de reflexão neo-platónica e simbólica :
"Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia
que, como um acidente em seu sujeito,
assi com a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia:
o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma".
Citando uma estudiosa camoniana, MARIA DE LURDES SARAIVA, que procedeu à edição da Lírica completa de Camões na BIBLIOTECA DE AUTORES PORTUGUESES da Imprensa Nacional-Casa da Moeda ( 1980 ) : " A densidade ideológica desafia a condensação de qualquer perífrase ".Maria de Lurdes, embora aluda ao platonismo que parece evidente, não recusa a ideia de uma assimilação das doutrinas aristotélicas de ESSÊNCIA e ACIDENTE : " a essência de Aristóteles é a matéria, mas a matéria é categoria anterior à realidade que, só pela pela inteligência ou pela passagem do virtual ao real ( o acidente ) se concretiza e realiza " ( Lírica II, p. 265 ).
Haveria aqui muito a discutir.
Mas deixo a sugestão das leituras que, como as de Lúlio, reforçam a dimensão poética mais esotérica, oriunda das anteriores correntes de gnosticismo e neo-platonismo bem conhecidas em Portugal, a que se poderia ainda acrescentar, como Helder Macedo defendeu para a MENINA E MOÇA uma dimensão judaizante.
Vejamos de novo Lúlio:
95.
Se ausentó el amado del amigo, y el amigo lo buscó con sus pensamientos.Y preguntaba por él a la gente con palabras de amor.
...
96.
La luz de la habitación del amado iluminó la del amigo, para expulsar las tinieblas y llenarla de placeres y pesares y pensamientos.
Y el amigo vació su habitación para que cupiese su amado.
...
A luz da casa do Amado expulsa as trevas da casa do Amigo ; esta depois de esse FIAT adquire uma nova dimensão de "actualidade" e "realidade" : com os prazeres e os sofrimentos e os pensamentos próprios do" amador da coisa amada", da "casa amada", se me permitem o trocadilho que o texto mesmo pede, e aqui como em Camões ou no Cântico dos Cânticos pode ser a casa, a esfera de Deus, tanto quanto uma desejada e amada pessoa real.
"Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia
que, como um acidente em seu sujeito,
assi com a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia:
o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma".
Citando uma estudiosa camoniana, MARIA DE LURDES SARAIVA, que procedeu à edição da Lírica completa de Camões na BIBLIOTECA DE AUTORES PORTUGUESES da Imprensa Nacional-Casa da Moeda ( 1980 ) : " A densidade ideológica desafia a condensação de qualquer perífrase ".Maria de Lurdes, embora aluda ao platonismo que parece evidente, não recusa a ideia de uma assimilação das doutrinas aristotélicas de ESSÊNCIA e ACIDENTE : " a essência de Aristóteles é a matéria, mas a matéria é categoria anterior à realidade que, só pela pela inteligência ou pela passagem do virtual ao real ( o acidente ) se concretiza e realiza " ( Lírica II, p. 265 ).
Haveria aqui muito a discutir.
Mas deixo a sugestão das leituras que, como as de Lúlio, reforçam a dimensão poética mais esotérica, oriunda das anteriores correntes de gnosticismo e neo-platonismo bem conhecidas em Portugal, a que se poderia ainda acrescentar, como Helder Macedo defendeu para a MENINA E MOÇA uma dimensão judaizante.
Vejamos de novo Lúlio:
95.
Se ausentó el amado del amigo, y el amigo lo buscó con sus pensamientos.Y preguntaba por él a la gente con palabras de amor.
...
96.
La luz de la habitación del amado iluminó la del amigo, para expulsar las tinieblas y llenarla de placeres y pesares y pensamientos.
Y el amigo vació su habitación para que cupiese su amado.
...
A luz da casa do Amado expulsa as trevas da casa do Amigo ; esta depois de esse FIAT adquire uma nova dimensão de "actualidade" e "realidade" : com os prazeres e os sofrimentos e os pensamentos próprios do" amador da coisa amada", da "casa amada", se me permitem o trocadilho que o texto mesmo pede, e aqui como em Camões ou no Cântico dos Cânticos pode ser a casa, a esfera de Deus, tanto quanto uma desejada e amada pessoa real.
Wednesday, June 28, 2006
J.Garcia Font
Na sua Historia de la Alquimia en España, que já citei noutros posts, dedica um extenso capítulo a Ramon LLull e à sua variada obra, comentando no fim que Ramon não desdenhou de utilizar outros saberes: foi o caso da mística e do profetismo joaquimita, da simbólica alquímica e ainda da poesia de Abnarabi de Murcia, entre outros.
Citando Font: "Parece que Llull...no desdenãba los procedimientos de los 'sarraims' y pudo muy bien ocurrir que en sus sistemas de 'combinar' conceptos, a través de símbolos y figuras, admitiese elementos de muy diversa procedencia.
Na minha opinião é o que acontece quando, na ARBRE de CIÈNCIA utiliza as imagens da árvore com o seus ramos para suporte da exposição das ciências teológicas e naturais. Raizes, tronco, ramos, etc. formam a imagem base que depois de "ampliada" permite entender e solucionar questões.A sua árvore, que Font descreve como "pantaclo mágico", contém e reflecte todo o mundo criado, daí que se assemelhe à Arvore dos Sephiroth, que certamente conheceu.Diz Llull, da sua árvore: car totes quantes coses són, en ello són significades... ( pois todas as coisas que existem, nela estão significadas...).
Concluo com Font :
" No es dificil percatarse de que en la obra de Llull aparece el supuesto de cierta radical analogia cósmica que permite relacionar entre sí los distintos niveles de la realidad ".
Falta só acrescentar que essa influencia poderia dever-se à mística da Kabala judaica, florescendo na Espanha de então.
Ficarão mais claras algumas das afirmações deixadas como enigmas ao longo desta novela maravilhosa, como a que escolhi para exemplo : havia no Amado Misericórdia e Justiça, o que deixava o Amigo entre o Temor (da Justiça) e a Esperança (da Misericórdia, que é Amor ).
Citando Font: "Parece que Llull...no desdenãba los procedimientos de los 'sarraims' y pudo muy bien ocurrir que en sus sistemas de 'combinar' conceptos, a través de símbolos y figuras, admitiese elementos de muy diversa procedencia.
Na minha opinião é o que acontece quando, na ARBRE de CIÈNCIA utiliza as imagens da árvore com o seus ramos para suporte da exposição das ciências teológicas e naturais. Raizes, tronco, ramos, etc. formam a imagem base que depois de "ampliada" permite entender e solucionar questões.A sua árvore, que Font descreve como "pantaclo mágico", contém e reflecte todo o mundo criado, daí que se assemelhe à Arvore dos Sephiroth, que certamente conheceu.Diz Llull, da sua árvore: car totes quantes coses són, en ello són significades... ( pois todas as coisas que existem, nela estão significadas...).
Concluo com Font :
" No es dificil percatarse de que en la obra de Llull aparece el supuesto de cierta radical analogia cósmica que permite relacionar entre sí los distintos niveles de la realidad ".
Falta só acrescentar que essa influencia poderia dever-se à mística da Kabala judaica, florescendo na Espanha de então.
Ficarão mais claras algumas das afirmações deixadas como enigmas ao longo desta novela maravilhosa, como a que escolhi para exemplo : havia no Amado Misericórdia e Justiça, o que deixava o Amigo entre o Temor (da Justiça) e a Esperança (da Misericórdia, que é Amor ).
Tuesday, June 27, 2006
O AMIGO E O AMADO
"Disse o amigo que no seu amado havia misericordia e justiça" .
Lulio, com esta afirmação leva-nos a pensar nos nomes de Deus, segundo a Kabala, e no livro do Zohar, o esplêndido monumento da mística judaica do século XIII.
Na árvore dos Sefiroth estes são dois dos ramos sagrados pelos quais a divindade se manifesta na plenitude do seu ser.
Na segunda metade do século XIII surge em Castela o Sepher-ha-Zohar, ou Livro do Esplendôr.
Contém os diálogos do Rabi Siméon bar Jochai com o seu filho Eléazar e outros amigos do círculo de iniciados.Trata-se de uma obra complexa, múltipla e não contida numa única sequencia de um mesmo discurso : inclui escritos e comentários muito diversos sobre a Torah, o que fez com que durante algum tempo se discutisse se haveria ou não uma autoria única. Gershom Scholem veio finalmente esclarecer este assunto, com o estudo do estilo e da linguagem, afirmando que haveria uma autoria única em pelo menos dezoito dos escritos pertencentes ao Zohar, pela mão de Moisés de Leão, que terá escrito a obra entre 1274 e 1286.
A doutrina do Zohar é " a coroação do Kabalismo espanhol do século XIII " na opinião de estudiosos como Leon Gorny, seguindo G. Scholem.
De raiz gnóstica, terá sofrido influencias do Talmud babilónico e dos escritos de Maimónides, e ainda de um célebre tratado anterior, O Jardim de Nogueiras, de Gikatilia, também do século XIII.
No essencial, e resumindo um pouco à pressa, o Zohar contém uma doutrina teosófica da concepção de Deus e da criação do mundo, através da representaçao simbólica da árvore dos Sefiroth : são dez, com Kether, figurando a primeira Sephira, suprema coroa de Deus, e Malkuth, a última, sob a forma da Shekina, ou de Kneseth Israel, o arquétipo místico da comunidade de Israel.
Entre a primeira e a última Sephira se desenrola toda a criação, sendo um dos seus "ramos" mais importantes Tiphereth, a Misericórdia de Deus, que faz a mediação entre o Amor e a Justiça divinas.
Vemos assim que a árvore dos Sephiroth representa o esquema simbólico da vida divina na plenitude da manifestação. O En-Sof é a raiz e a seiva e a árvore no seu todo a figuração simbólica do mundo. Tudo o que existe é extensão de uma Sephira, de um dos ramos da árvore.
O mistério maior do Zohar consiste na passagem da plenitude do En-Sof à revelação do universo criado, através da passagem por um Nada absoluto, um Nada místico, que permite a sucessiva emanação dos Sephiroth. Esse Nada é Kether, a mais alta Sephira, a Coroa suprema da Divindade.
Bibliografia:
Leon Gorny, La Kabbale, ed. Pierre Belfond, 1977
G.G.Scholem, La Kabbale et sa Symbolique, ed.Payot, 1966; Les Origines de la Kabbale, ed. Aubier-Montaigne, 1966
ZOHAR, Sepher Ha-Zohar ( Le Livre de la Splendeur ), trad. do texto caldaico e notas de JEAN de PAULY, introd. de A.D.Grad,
ed. Maisonneuve et Larose, 1975, 6 vols.
LE BAHIR (Le Livre de la Clarté ) trad. do hebraico e do aramaico por Joseph Gottfarstein, ed. Verdier, 1983
Sunday, June 25, 2006
LLULL , cont. II
Na "Relação" da Livraria de Frei Vicente Nogueira (1586-1654), confiscada pela Inquisição, encontram-se, entre outros tratados de alquimia, os textos de Raimundo Lulio: "Arte de Raymundo Lulio; Raymundo de Alchimia " ( in Y.K.Centeno, ALQUIMIA E HUMANISMO NO PORTUGAL RENASCENTISTA, 1988, 2. Centenário da Academia das Ciências de Lisboa ).
Haverá mais a dizer, mas fica para uma próxima vez.
LLULL, cont.
Nas BODAS QUÍMICAS (estudadas no seu simbolismo alquímico e místico por Rudolf Steiner e por Bernard Gorceix ), lemos no "quinto dia" a chegada à sala onde se encontra o tesouro do Rei,espalhado em torno do sepulcro de Vénus.Passo adiante a descrição do que vai acontecendo ao herói, para transcrever o cântico ao amor que funciona como "chave" dos mistérios que se seguem uns aos outros.
I
Não há melhor sobre a terra
Do que o belo e nobre amor;
Por ele igualamos Deus,
Por ele ninguém persegue ninguém.
Deixai-nos cantar o Rei,
E que todo o mar ecoe,
Nós faremos as perguntas, vós dareis as respostas.
II
Quem nos transmitiu a vida?
O amor.
Quem nos concedeu a graça ?
O amor.
De quem fomos nascidos ?
Do amor.
Sem quem estaremos perdidos ?
Sem amor.
III
E quem foi que nos gerou ?
O amor.
Com que nos alimentaram ?
Com amor.
O que devemos aos pais ?
O amor.
Por que são tão pacientes ?
Por amor.
IV
Quem é vencedor ?
O amor.
Pode encontrar-se o amor ?
Pelo amor.
Quem pode ainda unir os dois ?
O amor.
V
Cantai todos,
Fazei ecoar o canto
Para glorificar o amor;
Que cresça
nos nossos Senhores, o Rei e a Rainha,
Cujas almas foram separadas de seus corpos.
As estrofes VI e VII aludem já ao processo alquímico de Conjunção do dois em um, os corpos do Rei e da Rainha, o que permitirá que todo o sofrimento seja " transmutado " para sempre numa grande "alegria".
Podíamos considerar uma série de fontes de inspiração, desde o Cântico dos Cânticos, passando pelo Nascer da Aurora ( Aurora Consurgens, atribuído a S.Tomás de Aquino) mas de que fará parte com certeza o LIVRO DO AMIGO E DO AMADO de Raimundo Lulio.
Aliás julgo que haveria um estudo a fazer de Bernardim Ribeiro e de Camões neste sentido, para além da influencia da Kabala judaica que Lulio certamente conheceu. Árabes e judeus conviviam naquela Idade-Média de que autores como IBN UMAIL /SENIOR que já citei dão o melhor testemunho.
RAMON LULL, Raimundo Lulio
Libro de Amigo Y Amado, trad e prólogo de Eduardo Moga, ed.Barcino, 2006.
Ramon Lull, de quem nos é dada agora esta edição bilingue, nasceu em Maiorca em 1232 e foi um dos autores mais celebrados do seu tempo. Terá escrito cerca de 250 obras em catalão, árabe e latim, como homem de muitas letras que era, além de visionario reformista e místico.
Uma das suas obras mais citada é o LLIBRE de MERAVELLES ou ARBRE DE CIENCIA, de que encontramos referencias em Portugal, ainda que nos livros proibidos e confiscados pela Inquisição.
O seu pensamento filosófico e hermético terá influenciado autores como Giordano Bruno, ele próprio vítima da Inquisição, e Leibniz, que sabemos ter sido bom conhecedor do rosacrucismo alquímico e da ciência da Kabala.
Segundo reza a lenda, Lull morreu depois de ter sido lapidado em África, possivelmente antes de 1316.
No prólogo de E. Moga podemos ler que Lull conheceu Jacques de Molay, o último Grão-Mestre dos Templários, queimado vivo em 1314, sob acusação de idolatria ( como adorador do Baphomet ).
Era grande o intercâmbio das diferentes culturas, do oriente e do ocidente, e grande o apreço dos europeus de então pelos sábios árabes que da antiga Alexandria tinham trazido boa parte dos conhecimentos mais antigos das ciências, médicas, químicas, outras, bem como da filosofia neo-platónica, gnóstica, alquímica.
Estes saberes circularam, de forma mais ou menos aberta, um pouco por todo o lado.
O Livro do Amigo e do Amado é um capítulo de outro maior, a novela intitulada LLIBRE D'EVAST e BLAQUERNA.
Encontramos nele, segundo o autor, os exemplos dos sábios sufis, místicos apreciados, que despertavam no leitor sentimentos de grande religiosidade. Estamos perante um caso de "livro dentro do livro", o que nos leva a pensar na função que desempenha, de verdadeira pedagogia moral e religiosa.
Rapidamente o Livro circulou já fora da novela, com mérito por si próprio.O seu conjunto de aforismos místicos assim o permitia, seduzindo os leitores que nele bebiam uma verdadeira filosofia do amor. Foram muitas as cópias manuscritas que se fizeram e muitas as edições, posteriormente.
Repare-se agora nesta subtil iniciação a que se vai assistir e de que veremos continuação nas BODAS QUÍMICAS de Christian Rosenkreutz (obra de Johann Valentin Andreae, fundadora do movimento Rosa-Cruz na Alemanha do século XVII ), em Mozart, na FLAUTA MÁGICA, e em Goethe, no poema a Mme.von Stein e no CONTO DA SERPENTE VERDE.
93.
En una gran fiesta reunió el amado una nutrida corte de nobles muy honrados, y les hizo grandes convites y regalos.
Llegó el amigo a la corte.
Le dijo el amado:-Quién te ha dicho que vinieras a mi corte?
Respondió el amigo:- La necessidad y el amor me han traído, para admirar tus facciones y tu porte.
94.
Preguntaron al amigo de quién era.
Respondió:- Del amor.
-De qué eres ?
-De amor.
-Quién te ha engendrado ?
-El amor.
-Donde has nacido ?
-En el amor.
-Quién te ha criado ?
-El amor.
-De qué vives ?
-Del amor.
-Como te llamas ?
-Amor.
-De dónde vienes ?
-Del amor.
-A dónde vas ?
-Al amor.
-Dónde estás ?
-En el amor.
-Tienes algo, además de amor ?
Respondió:- Si, culpas y agravios contra mi amado.
-Hay perdón en tu amado ?
Dijo el amigo que en su amado había misericordia y justicia, y que por eso moraba entre el temor y la esperanza.
Ramon Lull, de quem nos é dada agora esta edição bilingue, nasceu em Maiorca em 1232 e foi um dos autores mais celebrados do seu tempo. Terá escrito cerca de 250 obras em catalão, árabe e latim, como homem de muitas letras que era, além de visionario reformista e místico.
Uma das suas obras mais citada é o LLIBRE de MERAVELLES ou ARBRE DE CIENCIA, de que encontramos referencias em Portugal, ainda que nos livros proibidos e confiscados pela Inquisição.
O seu pensamento filosófico e hermético terá influenciado autores como Giordano Bruno, ele próprio vítima da Inquisição, e Leibniz, que sabemos ter sido bom conhecedor do rosacrucismo alquímico e da ciência da Kabala.
Segundo reza a lenda, Lull morreu depois de ter sido lapidado em África, possivelmente antes de 1316.
No prólogo de E. Moga podemos ler que Lull conheceu Jacques de Molay, o último Grão-Mestre dos Templários, queimado vivo em 1314, sob acusação de idolatria ( como adorador do Baphomet ).
Era grande o intercâmbio das diferentes culturas, do oriente e do ocidente, e grande o apreço dos europeus de então pelos sábios árabes que da antiga Alexandria tinham trazido boa parte dos conhecimentos mais antigos das ciências, médicas, químicas, outras, bem como da filosofia neo-platónica, gnóstica, alquímica.
Estes saberes circularam, de forma mais ou menos aberta, um pouco por todo o lado.
O Livro do Amigo e do Amado é um capítulo de outro maior, a novela intitulada LLIBRE D'EVAST e BLAQUERNA.
Encontramos nele, segundo o autor, os exemplos dos sábios sufis, místicos apreciados, que despertavam no leitor sentimentos de grande religiosidade. Estamos perante um caso de "livro dentro do livro", o que nos leva a pensar na função que desempenha, de verdadeira pedagogia moral e religiosa.
Rapidamente o Livro circulou já fora da novela, com mérito por si próprio.O seu conjunto de aforismos místicos assim o permitia, seduzindo os leitores que nele bebiam uma verdadeira filosofia do amor. Foram muitas as cópias manuscritas que se fizeram e muitas as edições, posteriormente.
Repare-se agora nesta subtil iniciação a que se vai assistir e de que veremos continuação nas BODAS QUÍMICAS de Christian Rosenkreutz (obra de Johann Valentin Andreae, fundadora do movimento Rosa-Cruz na Alemanha do século XVII ), em Mozart, na FLAUTA MÁGICA, e em Goethe, no poema a Mme.von Stein e no CONTO DA SERPENTE VERDE.
93.
En una gran fiesta reunió el amado una nutrida corte de nobles muy honrados, y les hizo grandes convites y regalos.
Llegó el amigo a la corte.
Le dijo el amado:-Quién te ha dicho que vinieras a mi corte?
Respondió el amigo:- La necessidad y el amor me han traído, para admirar tus facciones y tu porte.
94.
Preguntaron al amigo de quién era.
Respondió:- Del amor.
-De qué eres ?
-De amor.
-Quién te ha engendrado ?
-El amor.
-Donde has nacido ?
-En el amor.
-Quién te ha criado ?
-El amor.
-De qué vives ?
-Del amor.
-Como te llamas ?
-Amor.
-De dónde vienes ?
-Del amor.
-A dónde vas ?
-Al amor.
-Dónde estás ?
-En el amor.
-Tienes algo, además de amor ?
Respondió:- Si, culpas y agravios contra mi amado.
-Hay perdón en tu amado ?
Dijo el amigo que en su amado había misericordia y justicia, y que por eso moraba entre el temor y la esperanza.
Saturday, June 24, 2006
McCLUNG,The Architecture of Paradise, 1983
Subtitle: Survivals of Eden and Jerusalem.
I read the book, I then had the pleasure of meeting the author himself and later on publish his Paper, together with others, in a volume on the Symbolism of Space (cities, islands, gardens ): A SIMBÓLICA DO ESPAÇO,cidades, ilhas, jardins, ed.Estampa, Lisboa 1991.
I hope the volume has not been destroyed , as it so frequently happens, when a publisher needs more space (with no symbolism at all...).Back to McCLung.
In Survivals of Eden he quotes Schiller on Aesthetic Education:
"Mankind has lost its dignity,but Art has recovered it and conserved it in significant stones ". Little or nothing has changed,really...
MacClung:
"Paradise is a strange land but a familiar presence; few have been there, but many people have an idea of what it is like. As a garden at one end of time and a city at the other, Paradise is in one sense remote from wordly concerns.But Eden has not been allowed to rest in memory, nor Jerusalem to choose its time of arrival....Both literature and architecture have mainteinde Paradise in our lives as a real presence. In both media the translations, or re-creations, are both literal and metaphoric."
I will leave those interested in reading with a final quotation:
" The line of transmission from mythical to metaphoric models of Paradise is neither single nor direct...It is my belief that the wide range of the present study, though diffusing the pedigree of modern architecture through many areas of inquiry and achievement, will contribute to an understanding of its ultimate source."
The reader will find here a wide range of information on literature, starting with Homer, arts and archeology, as well as on architectural modern and contemporary creators, that will make him or her, as it did with me, a faithful follower of MacClung' work.
Saturday, June 17, 2006
PARACELSO
Edição inglesa dos escritos herméticos e alquímicos de Paracelso o Grande, em tradução de Arthur Edward Waite, com um prefácio biográfico, notas, vocabulário e index (The Alchemical Press, 1992).
Num momento em que tanto parece ser útil (ou ser moda) discutir a arte, e porque pode haver arte sem discussão, mas não sem imaginação (criadora) achei interessante trazer aqui as considerações de Paracelso sobre a imaginação:
"A imaginação do homem é uma virtude expulsiva".
Entenda-se, por esta afirmação, que é forte o poder desta virtude, e operante, no sentido em que produz efeito nas acções, como nas substancias de que o homem seja responsável.
Deste poder de imaginar surge, naturalmente, e sem magia, a criação. De certo modo o próprio universo resulta desse poder, mas agora em Deus.
E afirma ainda o nosso autor:
"A imaginação residente no cérebro é a lua do microcosmo".
Outros, como Dorneus, dirão que a imaginação é a estrela no homem.
Assim se equipara um poder nobre, como o de imaginar, a uma matéria real, celestial, de impacto terreno e humano, quer no bom como no mau sentido, ainda no dizer de Paracelso.
Ao fazer do cérebro a" residencia " da imaginação estava já o filósofo a antecipar as investigações de António Damásio em matéria de neurobiologia.
Quanto às curiosidades alquímicas, não as irei resumir, este volume existe, e pode ser encontrado.
Tuesday, June 06, 2006
Bibliografia...
" Get knowledge, get wisdom; but with all thy gettings, get understanding", diz o velho Mestre citado por W.L.Wilmshurst no seu estudo sobre o significado da Maçonaria: THE MEANING OF MASONRY, Gramercy Books, New York, 1980.
Mas este Entendimento é algo de especial, depende da dádiva da Luz Sobrenatural que por sua vez deve corresponder a um desejo e apelo profundo que se manifeste no indivíduo. Há muito de semelhante com o apelo e a dádiva da fé. Uma das lições é a do estudo, tal como nos alquimistas; incita-se a que não se esqueçam os antigos mistérios e ensinamentos de que todas as práticas simbólicas partiram, pois sem uma tal memória e entendimento tudo se tornará em forma oca, esvaziada de sentido.
Vem isto ainda a propósito do nosso Wagner: no dicionário da Maçonaria de ROBERT MAGOY há uma entrada sobre os Mistérios Odínicos (relativos à mitologia nórdica) com muito interesse para o desenvolvimento da mitologia germânica e a leitura que Wagner fará dela.
A árvore de cinza que vemos na gravura é YGGDRASIL, na qual se supunha que a terra repousava.
É um dos símbolos mais importantes na poética mitológica, este da árvore suporte da vida do universo.
Corresponderia, no imaginário bíblico, à Escada de Jacob , mas enquanto nesta o que se verifica é a ligação que estabelece entre o humano e o divino, o plano material da vida e o plano espiritual que obriga a "lutar" para ser adquirido, com Yggdrasil o que temos é a figuração, segundo os antigos EDDA, de uma ponte que se estende sobre o poço da eternidade.Os seus ramos abarcam o mundo, a sua copa ergue-se acima dos céus.Tem três raizes, uma entre os deuses, outra entre os gigantes, e uma terceira debaixo de Hela (o inferno das trevas, Hoelle, Hell ).
Na raiz do meio, a dos gigantes ( note-se bem e recordemos como são importantes no Ouro do Reno e como desejam o brilho do ouro e Freia, deusa da vegetação e da vida eterna ) está a FONTE DA SABEDORIA, o poço de Hymir.
Perto da raiz dos deuses está a fonte sagrada junto da qual os deuses reunem e anunciam as suas decisões. Desta fonte erguem-se três belas virgens, as NORNAS ou DESTINOS, cujos nomes são: URDUR, o PASSADO; VERDANDI, o PRESENTE; e SKULD, o FUTURO.
Seguem-se as representações animais, nos ramos da árvore: a águia,o falcão, o esquilo,a serpente, cada qual com sua função simbólica.
A cidade no alto da Montanha é ASGARD, e a ela apenas se pode aceder atravessando a ponte BIFROEST, ARCO-ÍRIS.
Veja-se como é indispensável situar no seu contexto as matérias simbólicas de que se ocupam os grandes criadores; muito do que aqui se descreve ajuda ao "entendimento" de Goethe como de Wagner, nas suas obras maiores.
Aos pés de Asgard fica MIDGARD, TERRA MÉDIA , o espaço reservado aos mortais.
O palácio dos deuses, de cúpula dourada, é o VALHALLA, onde reside ODIN ( será o futuro WOTAN ) e para onde as Valquírias conduzem os bravos que sem medo enfrentam os perigos das trevas e da morte.
Será preciso dizer mais sobre o que se impõe estudar para ler por dentro uma obra como a de Wagner ?
Ficarei por aqui.
Wagner, a Ponte
Sublinhando ainda a importância das referencias simbólicas existentes no texto wagneriano, veja-se como a PONTE, tão importante no Conto da Serpente Verde de Goethe, assume aqui um importante papel, de FORMA INICIÁTICA, CONDUTORA para a qual Donner chama a atenção dos deuses ainda assustados com o efeito perverso do anel:
" ...
Irmãos, por aqui!
Que a ponte vos indique o caminho!
(A nuvem desaparece de repente, fazendo surgir de novo Donner e Froh; a seus pés nasce, com cintilante esplendôr, um arco-íris que forma uma ponte sobre o vale até ao castelo, agora reluzindo iluminado pelo crepúsculo...)
Froh (dirige-se aos deuses, após ter indicado com a sua mão o caminho sobre o vale que o arco deve traçar)
A ponte conduz-nos ao castelo,
leve e segura
para os vossos pés:
confiantes e sem medo,segui o vosso caminho!"
(trad. de João Paulo Santos para o libreto de 2006)
Embora subtil, para quem não estude o símbolo no seu contexto, a diferença entre as duas pontes é grande e significativa: a ponte de Goethe, feita do corpo da serpente transfigurada e oferecida a uma causa maior, une as margens do rio (da alma pacificada finalmente, com a série de conjunções que se verificam no progresso da Obra) permitindo o acesso do povo ao Templo que se ergueu das águas . A ponte adquire uma dimensão FELIZ, como diz Goethe a respeito dessa imagem, de esperança e de realização plena, colectiva.
Ao contrário deste autor que certamente o inspirou, Wagner faz da ponte um elemento de puro acesso ao PODER que o castelo representa ( a oposição templo/castelo é aqui pertinente); o coração dos deuses não se comove com a ponte, embora ela seja "transportadora", isto é, pudesse ajudar à modoficação.Ficam absortos na contemplação do castelo:
"O sol,ao esconder-se,
doura dos seus raios
sumptuosos o castelo.
...Assim te saúdo, ó castelo."
(trad.João Paulo Santos)
Só Loge fica para trás, enquanto os outros avançam para o castelo, com a clarividencia do crepúsculo que se abaterá sobre eles.
É de grande interesse, neste caso, estudar a figura mítica de Loge, ( é o deus Lug da Germânia, aparentado ao deus Hermes dos gregos ); é um deus que inicia, profetiza, acelera a transformação,nem sempre positiva.Eis o que diz, no fecho desta ópera, toda ela cheia de prenúncios e de indicações para um futuro ameaçador e já presente, pois no Eterno Viver dos deuses tudo o que será já é,como Erda lembrou.
Loge (ficando para trás, observando os outros deuses)
Precipitam-se para o seu fim,
os que crêem a sua vida tão segura.
Quase tenho vergonha de me dar com eles;
de me transformar de novo
numa labareda crepitante,
sinto um desejo irresistível:
para consumir
os que me conseguiram dominar,
em vez de me afundar
com eles estupidamente,
sejam eles os mais divinos dos deuses! "
(trad.J.P.Santos)
Sendo o fogo (no Conto de Goethe ) uma das forças SUBLIMADORAS não o consegue ser na ópera de Wagner: o comportamento insensato dos deuses (a humanidade, como Wagner a vê) não o permitirá.
E finalmente a ponte, uma vez atravessada, servirá apenas para reforçar, no castelo que tanto tinha sido desejado, um isolamento e um egoísmo cegos.
Os deuses riem, enquanto as filhas do Reno choram o ouro ( a alma) perdida.
Nota: Nos Altos Graus da Maçonaria a Ponte tem uma função maçónica,sendo um símbolo importante.
Se é certo que Goethe não desconhecia tal facto, no caso de Wagner podemos apenas suspeitar que a simbólica maçónica lhe fosse acessível. Mesmo não sendo maçon, certamente teria conhecido "Irmãos", teria nas conversas de salão aprendido o suficiente, e nos autores mais em voga ( como Zacharias Werner, entre outros, para não repetir Goethe ) completado os seus conhecimentos.
Em PARSIFAL veremos desenvolver-se todo um processo iniciático simbolicamente conduzido na perfeição, se me é permitida tal linguagem.
Gilbert Durand, wagneriano assumido, não descarta a hipótese de Wagner também ter sido iniciado; tanto na corte, como entre as élites artísticas, era frequente o interesse por essa marca de distinção e superioridade. Recordo Lessing, e a importância que os seus escritos maçónicos tiveram nas gerações posteriores.
Graham Vick
Louvando o mérito desta iniciativa de trazer de novo a Portugal a TETRALOGIA, embora num decurso de anos, tenho algumas objecções às escolhas do encenador:
prejudicou sem dúvida, pela enorme distância que separava a orquestra dos cantores, o equilíbrio musical do que se ouvia dos vários pontos em que o público foi colocado;
não me incomodou o tratamento kitsch, post-moderno, de algumas das figuras, embora se anulasse com isso o simbolismo de que deviam revestir-se, como entes de sombra, pulsões de uma natureza primordial, forte e apelando à sublimação;
já me incomodou mais a aplicação de uma grelha puramente política , de ocasião ( Bush não será eterno, a obra de arte sim) em vez de uma apreciação filosófica e estética como Wagner merecia ( algo que Patrice Chéreau compreendeu magistralmente );
tornou-se visível o porquê de um palco desmesuradamente alongado, obrigando a modificações caríssimas da estrutura de cena, sem outra justificação que não a de fazer caber lá o imenso foguetão com que o encenador desejou arrancar os aplausos de uma plateia sempre disponível para as propostas "diferentes".
Thursday, June 01, 2006
Erda
Erda:
Wie alles war - weiss ich;
wie alles wird,
wie alles sein wird-
seh ich auch
...
Alles, was ist, -endet !
Como tudo foi-eu sei;
como tudo é
como tudo será-
também eu vejo
...
Tudo o que existe,- acaba!
Erda, a Terra-Mãe (terra diz-se Erde em alemão, mas foneticamente lê-se como Wagner escreveu, não por acaso, é claro), é a voz primordial de toda a criação, e assim se define, como Jahveh ao dizer" eu sou aquele que foi, é e será", ou seja, o que os define é a própria essencia da eternidade, daí que possam profetizar, um e outro, sobre os tempos vindouros.
Neste caso a profecia é a do fim inevitável, que Wotan, na sua avidez, ajudou a precipitar.
Erda aconselha-o a desfazer-se do anel, mas os dados do destino sombrio estão lançados.
Wotan subirá ao castelo,mas as filhas do Reno, a quem o ouro foi roubado, não esquecem tal afronta e o Prelúdio da Tetralogia termina com o apelo, vindo das profundezas da água : "gebt uns das Gold/ O gebt uns das reine zuruck! " Devolvei-nos o ouro /Dai-nos de volta o puro.
A questão de uma unidade harmoniosa e pura é assim posta, renegada e temporariamente esquecida por aqueles deuses que "riem" enquanto atravessam a ponte para o castelo e "rejubilam".
Tuesday, May 30, 2006
Richard Wagner, O Ouro do Reno
Foi apresentada no teatro de S.Carlos uma nova encenação do OURO DO RENO, assinada por Graham Vick.
As releituras modernas de uma ópera são sempre estimulantes e necessárias.Mau é deixar morrer a ópera enquanto verdadeiro espectáculo total que é.
Richard Wagner, ao conceber o TODO do que desejava apresentar ao seu público e à posteridade( foi um artista altamente consciente do seu valor e da inovação que as suas propostas musicais, libretísticas e cénicas continham) indicava claramente o que desejava que fosse acontecendo no palco.O seu olhar também era de encenador, acrescentando essa qualidade às outras, de compositor e de escritor.
Lendo o libreto apercebemo-nos do cuidado com que cada personagem é tratada, sublinhando, seja pela acção, seja pela descrição, a carga simbólica que transporta.
O OURO DO RENO é, deste ponto de vista, perfeito. Resume num condensado magnífico os grandes temas que serão desenvolvidos a partir da glorificação da Vida e do Amor em contraste com a atracção daimónica do Poder, que o anel e o ouro representam.
Se pensarmos que das leituras preferidas de Wagner faziam parte GOETHE, com o seu FAUSTO (que também ele cedeu à tentação do daimon MEFISTO, embora depois venha a ser salvo pelo amor de Margarida e para glória do ETERNO FEMININO); e os Contos dos Irmãos GRIMM, bem como as recolhas que fizeram das Lendas e Sagas germânicas, perceberemos melhor que nas suas escolhas pode haver algum sincretismo simbólico ou iniciático, mas não haverá certamente arbitrariedade ou ignorância.
Recordo que Wagner, como Goethe e Mozart, recebeu também iniciação maçónica.
G.Bernard Shaw escreveu, no BREVIÁRIO WAGNERIANO ( 1908 ) que a música do compositor era uma música da Natureza, do Rio, do Arco-Íris, do Fogo, do Bosque...
A música dos elementos e a sua simbólica profunda estão ostensivamente presentes n'O OURO DO RENO.
Em 1851 Wagner escrevia aos amigos: "os meus estudos levaram-me através da Idade-Média até aos antigos Mitos Germânicos fundadores...Aí descobri o Homem Verdadeiro ( der wahre Mensch )".
A localização das cenas que vão ter lugar é claramente apontada,definindo, por si, a presença dos quatro elementos: água, ar, terra e novamente o ar-tudo percorrido pelo fogo, pelo ouro,pelo poder do anel.
O prólogo e primeira cena têm lugar no fundo das águas do Reno; a segunda cena no alto das montanhas; a terceira na gruta dos nibelungos; a quarta de novo no alto das montanhas onde o castelo dos deuses foi erguido.
É na terceira cena que a presença e a força, transformadora ou destruidora, do fogo se fazem sentir.O anel é uma condensação desse poder perverso que se obtém abdicando do mais sagrado valor, do amor e da vida. É o amor de Freia, deusa da natureza verdejante, que concede vida eterna aos deuses.
Os intervenientes no drama são deuses: Wotan, Donner, Froh e Loge.
Gigantes: Fasolt e Fafner.
Nibelungos (gnomos) : Alberich e Mime.
Deusas: Fricka (mulher de Wotan), Freia, Erda.
Filhas do Reno: Woglinde, Wellgunde, Flosshilde.
E nibelungos vários.
A Wotan interessa o castelo, não se apercebe logo do seu erro, a Fricka a perda de Freia e com ela a eterna juventude,desenhando-se a diferença entre o que são as ambições diferntes do homem e da mulher: a força do poder, por um lado, a força da vida por outro.
Erda, a mãe-terra, virá em momento oportuno recordar aos deuses como sem a força vital só a decadencia os espera; e essa força reside na natureza.
A ária de Erda, na quarta cena, é carregada de mistério e ameaças que no seguimento da Tetralogia virão a concretizar-se.
Pela boca da mãe-terra fala um saber profundo, relativo à essencia da natureza do homem e do mundo que o rodeia (os deuses serão o "colectivo" que o indivíduo projecta.
As releituras modernas de uma ópera são sempre estimulantes e necessárias.Mau é deixar morrer a ópera enquanto verdadeiro espectáculo total que é.
Richard Wagner, ao conceber o TODO do que desejava apresentar ao seu público e à posteridade( foi um artista altamente consciente do seu valor e da inovação que as suas propostas musicais, libretísticas e cénicas continham) indicava claramente o que desejava que fosse acontecendo no palco.O seu olhar também era de encenador, acrescentando essa qualidade às outras, de compositor e de escritor.
Lendo o libreto apercebemo-nos do cuidado com que cada personagem é tratada, sublinhando, seja pela acção, seja pela descrição, a carga simbólica que transporta.
O OURO DO RENO é, deste ponto de vista, perfeito. Resume num condensado magnífico os grandes temas que serão desenvolvidos a partir da glorificação da Vida e do Amor em contraste com a atracção daimónica do Poder, que o anel e o ouro representam.
Se pensarmos que das leituras preferidas de Wagner faziam parte GOETHE, com o seu FAUSTO (que também ele cedeu à tentação do daimon MEFISTO, embora depois venha a ser salvo pelo amor de Margarida e para glória do ETERNO FEMININO); e os Contos dos Irmãos GRIMM, bem como as recolhas que fizeram das Lendas e Sagas germânicas, perceberemos melhor que nas suas escolhas pode haver algum sincretismo simbólico ou iniciático, mas não haverá certamente arbitrariedade ou ignorância.
Recordo que Wagner, como Goethe e Mozart, recebeu também iniciação maçónica.
G.Bernard Shaw escreveu, no BREVIÁRIO WAGNERIANO ( 1908 ) que a música do compositor era uma música da Natureza, do Rio, do Arco-Íris, do Fogo, do Bosque...
A música dos elementos e a sua simbólica profunda estão ostensivamente presentes n'O OURO DO RENO.
Em 1851 Wagner escrevia aos amigos: "os meus estudos levaram-me através da Idade-Média até aos antigos Mitos Germânicos fundadores...Aí descobri o Homem Verdadeiro ( der wahre Mensch )".
A localização das cenas que vão ter lugar é claramente apontada,definindo, por si, a presença dos quatro elementos: água, ar, terra e novamente o ar-tudo percorrido pelo fogo, pelo ouro,pelo poder do anel.
O prólogo e primeira cena têm lugar no fundo das águas do Reno; a segunda cena no alto das montanhas; a terceira na gruta dos nibelungos; a quarta de novo no alto das montanhas onde o castelo dos deuses foi erguido.
É na terceira cena que a presença e a força, transformadora ou destruidora, do fogo se fazem sentir.O anel é uma condensação desse poder perverso que se obtém abdicando do mais sagrado valor, do amor e da vida. É o amor de Freia, deusa da natureza verdejante, que concede vida eterna aos deuses.
Os intervenientes no drama são deuses: Wotan, Donner, Froh e Loge.
Gigantes: Fasolt e Fafner.
Nibelungos (gnomos) : Alberich e Mime.
Deusas: Fricka (mulher de Wotan), Freia, Erda.
Filhas do Reno: Woglinde, Wellgunde, Flosshilde.
E nibelungos vários.
A Wotan interessa o castelo, não se apercebe logo do seu erro, a Fricka a perda de Freia e com ela a eterna juventude,desenhando-se a diferença entre o que são as ambições diferntes do homem e da mulher: a força do poder, por um lado, a força da vida por outro.
Erda, a mãe-terra, virá em momento oportuno recordar aos deuses como sem a força vital só a decadencia os espera; e essa força reside na natureza.
A ária de Erda, na quarta cena, é carregada de mistério e ameaças que no seguimento da Tetralogia virão a concretizar-se.
Pela boca da mãe-terra fala um saber profundo, relativo à essencia da natureza do homem e do mundo que o rodeia (os deuses serão o "colectivo" que o indivíduo projecta.
Friday, May 26, 2006
Antonio Jose da Silva,Os Encantos de Medeia
António José da Silva, conhecido como O JUDEU, nasceu no Rio de Janeiro em 1705, numa família de judeus perseguidos pela Inquisição.
Era uma criança de oito anos quando veio para Lisboa, porque a sua mãe tinha de ser julgada na corte.Nesse momento acabou por ser absolvida, e ele foi completando a sua formação escolar sem mais problemas.Formou-se em Coimbra, em Cânones.Mas em 1726 o Santo Ofício interrompeu os seus estudos e prendeu mãe e filho, libertando-os depois de uma abjuração pública da sua fé.
Em 1733 sobe à cena A VIDA DO GRANDE D.QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA, ópera a que se sucederão várias outras, inspiradas nos mitos clássicos, como é o caso de OS ENCANTOS DE MEDEIA.
António José da Silva casou com uma prima, também judia, e em 1737, ano da estreia de AS GUERRAS DO ALECRIM E DA MANGERONA, é preso de novo, com a mulher e a filha, por denúncia de uma escrava de côr; sai da Inquisição dois anos depois, para ser degolado e queimado em auto-da-fé por judaísmo " convicto, negativo e relapso".A mulher e a filha, libertadas, fogem para a Holanda, destino generoso de todos os que conseguiam escapar das garras da Inquisição.
Entre 1734 e 1738 foram representadas a ESOPAIDA, os ENCANTOS DE MEDEIA, ANFITRIÃO OU JÚPITER E ALCMENA, LABIRINTO DE CRETA, as VARIEDADES DE PROTEU, e várias outras, algumas talvez só atribuições.
Claude-Henri Frèches ocupa-se do assunto das atribuições, e muito haveria ainda que estudar, em relação com o nosso infeliz autor.
Recordo que o seu é um teatro de marionettes, algo que também se torna muito actual e interessante, para o estudo desta arte em Portugal.
A primeira edição das Obras é de 1744, a segunda de 1747.
Bernardo Santareno inspirou-se na sua vida para a peça O JUDEU.
Era uma criança de oito anos quando veio para Lisboa, porque a sua mãe tinha de ser julgada na corte.Nesse momento acabou por ser absolvida, e ele foi completando a sua formação escolar sem mais problemas.Formou-se em Coimbra, em Cânones.Mas em 1726 o Santo Ofício interrompeu os seus estudos e prendeu mãe e filho, libertando-os depois de uma abjuração pública da sua fé.
Em 1733 sobe à cena A VIDA DO GRANDE D.QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA, ópera a que se sucederão várias outras, inspiradas nos mitos clássicos, como é o caso de OS ENCANTOS DE MEDEIA.
António José da Silva casou com uma prima, também judia, e em 1737, ano da estreia de AS GUERRAS DO ALECRIM E DA MANGERONA, é preso de novo, com a mulher e a filha, por denúncia de uma escrava de côr; sai da Inquisição dois anos depois, para ser degolado e queimado em auto-da-fé por judaísmo " convicto, negativo e relapso".A mulher e a filha, libertadas, fogem para a Holanda, destino generoso de todos os que conseguiam escapar das garras da Inquisição.
Entre 1734 e 1738 foram representadas a ESOPAIDA, os ENCANTOS DE MEDEIA, ANFITRIÃO OU JÚPITER E ALCMENA, LABIRINTO DE CRETA, as VARIEDADES DE PROTEU, e várias outras, algumas talvez só atribuições.
Claude-Henri Frèches ocupa-se do assunto das atribuições, e muito haveria ainda que estudar, em relação com o nosso infeliz autor.
Recordo que o seu é um teatro de marionettes, algo que também se torna muito actual e interessante, para o estudo desta arte em Portugal.
A primeira edição das Obras é de 1744, a segunda de 1747.
Bernardo Santareno inspirou-se na sua vida para a peça O JUDEU.
Salomon Trismosin, La Toison d'Or
LA TOISON d'OR é a versão francesa, publicada em 1612, do Tratado alquímico SPLENDOR SOLIS, cuja primeira edição alemã foi impressa em Rorschach em 1598 com o título de AUREUM VELLUS.
Nesta edição,dirigida por René Alleau, encontramos pela primeira vez a tradução literal do texto alemão, o texto da edição francesa, e os comentários por Bernard Husson, que escreve também o prefácio. Podemos ler que terá sido Trismosin a iniciar Paracelso na arte da alquimia.
No fim do livro Alleau evoca o meio artístico de Nuremberga, a propósito das gravuras da edição alemã,recordando o leitor de que ali o Mestre foi Albrecht Durer. Há muito de ciência simbólica e alquímica a estudar nas suas obras.
Maier, EMBLEMA XLIX
Podia ser Jasão, com os companheiros, segurando o Velo do carneiro.Mas representa-se Orion.
A legenda reza:" O filho dos filósofos tem três pais, como Orion".
Trata-se de uma alusão aos três princípios, enxofre, mercúrio e sal; nos tratados alquímicos as alusões dividem-se entre as que se referem aos princípios, sempre presentes, ainda que nem sempre citados, e os quatro elementos, terra, fogo, ar e água, igualmente sempre presentes mesmo que citados ou omitidos parcialmente.
O comentário da estrofe é como segue:
"A fábula ensina-nos que Hermes, Vulcano, Phebus
numa pele de boi deitaram a sua semente,
e que o grande Orion teve em simultâneo três pais.
De três pais nasce igualmente o filho da Sabedoria:
o primeiro é o Sol, e Vulcano o segundo;
O homem hábil na sua arte é o terceiro pai."
O mito é o de Orion, mas no comentário que acompanha a gravura, como observa Faivre, Maier dá a entender que se refere a dois mitos ( ao de Jasão também ) e não apenas àquele; no comentário à gravura XLIV designa Jasão como uma das figuras mitológicas que representam a alquimia, tal como Hércules, Ulisses, Teseu,Pirithous.
A lição é a do Homem Sábio, que pela sua arte ultrapassa as dificuldades e atinge os seus objectivos : esse é o verdadeiro Pai da Obra: " ..Para que nasça nele um poder mais forte mil vezes do que o do sol, o pai entrega-o a Vulcano e ao artista ao mesmo tempo, para que cultivem a sua natureza generosa e que receba deles um acréscimo de vigor.Foi assim que Aquiles, Jasão e Hércules foram confiados a Chiron, com a mesma intenção de os instruir" (Atalanta Fugiens, DISCURSO XLIX).
No discurso XLIV é então esclarecido o nome, múltiplo, do Artista:
" O artista é Hércules, Ulisses, Jasão, Teseu, Pirithous.Inúmeros são os trabalhos e perigos de que estes artistas esgotaram a taça.Vede os trabalhos de Hércules, as navegações errantes de Ulisses, os perigos de Jasão, as aventuras de Teseu...Há aqui um volume considerável de matéria de ensino..." ( Atalanta Fugiens, trad.E.Perrot, ed.Dervy,Paris,1969 )
Antoine Faivre
A recente apresentação da MEDEIA de Eurípides, na versão de Sophia de Mello Breyner, fez-me ir buscar às estantes o estudo de Antoine Faivre TOISON D'OR ET ALCHIMIE ( ed.Archè, Milano, 1990 ).
A meu lado estava uma jovem, que perguntava ao companheiro: o que é que quer dizer velo de ouro? Não resisti e expliquei um pouco,enquanto o pano subia.
A jovem parecia ter idade para ser universitária: mais uma, representando a geração que nada sabe, e se não perguntar nada virá a saber.Ainda bem que perguntou.
No belíssimo estudo de Antoine Faivre, dedicado a Mestre Lima de Freitas, um amigo de sempre e um grande hermetista, como ele, o autor trata, no conjunto, todas as interpretações alquímicas doVELO de OURO. Parte dos primeiros relatos bizantinos, segue com os textos que estabelecem a ligação da simbólica da GRANDE OBRA àOrdem de Cavalaria fundada por Filipe o Bom, continua demonstrando o interesse do RENASCIMENTO pela mitologia e como isso favoreceu as leituras herméticas do mito.
Finalmente, no século XVII com Micahel Maier, que já aqui citámos muitas vezes, e toda uma série de inspiração ROSACRUZ desenvolve-se uma verdadeira hermenêutica da história de Jasão e do velo de ouro.
Na Alemanha o estudos adquirem dimensão teosófica, com Hermann FICTULD, enquanto em França com DOM PERNETY a dimensão permanece mais alquímica ou seja, "operativa". ( Veja-se A.J.Pernety, FABLES EGYPTIENNES et GRECQUES, 2 vols.reed. La Table d'Émeraude,1982 ).
A investigação de Faivre termina com o que ele define como "cabala fonética" de dois adeptos do século XX, Fulcanelli e Eugène Canseliet.Um antologia de textos e uma nota consagrada à presença do Velo de Ouro nos ritos maçónicos completam a obra.
Tuesday, May 23, 2006
Alquimia e Misticismo
" Todos os místicos falam a mesma língua,pois vêm do mesmo país", escreve Evelyn Underhill.Pois a língua dos alquimistas, e o país de onde eles vêm é este mesmo, dos místicos. E a definição mais adequada de alquimia identifica-se com a definição geral de misticismo, e com a definição especial de misticismo secular,enquanto forma "marginal", "laica", "secularizada" da experiencia mística, por não se integrar em nenhum contexto tradicional sistematizado, antes mantendo-se como forma de leitura ou vivência aberta,heterodoxa.
O objectivo da alquimia era a produção da Pedra Filosofal, ou do Elixir de Vida, ou de alguma outra variante filosófica dos mesmos, com múltiplos outros nomes.Mas a procura da Pedra é o equivalente da procura da perfeição,do conhecimento e identificação com um absoluto imanente, no aqui e agora da vida, se tal for possível.
Esta procura, como também Underhill observa,é característica comum a místicos e alquimistas, pertencendo aqueles, neste caso ao modelo que ela define como do grupo C., e cito:"Aqueles que têm consciência do divino como Vida Transcendente Imanente no mundo e no eu, e de uma estranha semente espiritual dentro de si, através de cujo desenvolvimento o homem,elevando-se a níveis superiores de carácter e consciência atinge o seu objectivo..."
Nas INSTRUÇÕES ESPIRITUAIS, de 1298, Meister ECKHART afirma que um espírito "renunciado" pode tudo.
E Santo Alberto Magno, que foi considerado místico, cientista e alquimista, escreve, no TRATADO DE ALQUIMIA: "Deus pode ser encontrado em toda a parte."
Pela alquimia, como pela experiência mística,se procura obter a perfeição, a completude neste mundo, nesta vida que é dada.É aqui e agora que se procura a realização, por esforço consciente e paciente da fé e da vontade.
Talvez não se possa considerar o alquimista um "filho de Deus" legítimo, no sentido em que ECKHART usou a palavra.Mas de Deus é sem dúvida um filho ilegítimo e como tal merece ser estudado.
Ler mais: in Y.K.Centeno, Literatura e Alquimia,Presença,1987 ; Evelyn Underhill,Mysticism, Londres; Herbert Silberer,Probleme der Mystik und ihrer Symbolik, 1961.
A ilustração é do belíssimo fac-simile do LIBRO DE LA FELICIDAD, nas ed.MOLEIRO, mandado traduzir do árabe por ordem do sultão Murad III ( 1574-1595 ).O original pertence à B.N.de França, datado de 1582.
Sunday, May 21, 2006
Museu Alquimico na Taschen
Em 1987 publiquei na ed.Presença um conjunto de ensaios com o título de LITERATURA E ALQUIMIA.
Entendi que seria útil a um leitor menos preparado explicar o que entendia por doutrina alquímica, nos moldes em que tinha vindo a estudá-la desde os tempo do Fausto e do Conto da Serpente Verde de Goethe.
Muito do que se pode ler nos tratados se torna mais claro por meio das gravuras e ilustrações que frequentemente os acompanham. As imagens são elas próprias continente e conteúdo de mistério ou de segredo alquímico.
O primeiro dos meus ensaios foi assim dedicadoà ALQUIMIA E MISTICISMO; procurei, numa linguagem simples, descomplicar o complicado, ao contrário do que faziam os antigos adeptos e deixar em referencia a boa bibliografia dos estudiosos da matéria.
É excelente que uma editora como a Taschen ofereça agora ao público um espécie de antologia de gravuras comentadas, escolhidas entre as mais célebres, e deixando também a indicação dos grandes especialista, pioneiros, como Klossowski de Rola e van Lennep. As edições dos seus estudos estão ainda disponíveis.
Wednesday, May 17, 2006
Robert Wilson, stage director
Thursday, May 11, 2006
Goethe, o Amor
Quando jovem, Goethe escrevera a Lavater, amigo e confidente, que nada o impediria de ser verdadeiro, " bom e mau como a natureza..."
A natureza, matriz geradora e unificadora de todos os conflitos, sendo essa percepção subtil algo que não abandona o criador desde as suas primeiras obras até às da maturidade, já em Weimar.
Numa carta de 1784 a Charlotte von Stein, desenha o primeiro esboço do que serão os GEHEIMNISSE, os MISTÉRIOS, poema rosacruz de tão grande simbolismo como o MAERCHEN, o CONTO DA SERPENTE VERDE.
Aí exprime o sentimento complexo da relação com a Terra-Mãe, a harmonia que é preciso interiorizar para que a visão do mundo e de si mesmo se modifique e amplie, sendo esse e só esse o objectivo da Obra.
Noutra carta, de 1786, conta à amiga que está a ler o CHYMISCHE HOCHZEIT....de Johann Valentin Andreae, escolhendo desse texto fundador dos rosacruz os versos relativos ao AMOR:
Donde nascemos?
Do amor.
Como nos perderíamos?
Sem amor.
O que nos ajuda a vencer?
O amor.
Pode encontrar-se o amor?
Pelo amor.
O que enxuga as lágrimas?
O amor.
O que deve unir-nos sempre?
O amor.
Goethe modificou o poema, fazendo dele um outro, já seu. Em Valentin Andreae a atracção do amor é a do amor UNIVERSAL, da grande cadeia do Ser, estudada por Arthur Lovejoy em THE GREAT CHAIN OF BEING (1960).
E recordo agora a exclamação com que termina o Conto de que estivemos falando noutros posts:
" Três reinam sobre a terra:a Sabedoria, a Luz e a Força."
E adiante, para exprimir o quarto elemento, sem o qual nada se perfaz ou completa:
" O amor não reina mas forma, e isso é mais."
DIE LIEBE HERRSCHT NICHT, ABER SIE BILDET, UND DAS IST MEHR.
Aqui o termo "bilden" pode ter mais significados para além deste, pode ser educar no sentido que se dá ao BILDUNGSROMAN, pode ser ainda construir, uma sociedade, uma civilização, como a que a ponte em que a serpente se transforma permitirá sem dúvida.
Mas tratar-se-á sempre da formação do espírito e da construção de um mundo melhor.Uma utopia eterna.
A fotografia é do Jardim de Goethe em Weimar, com a PEDRA DA BOA SORTE, ou da felicidade, a meio do caminho por onde gostava de passear. Note-se que a pedra é um cubo ( A Pedra Cúbica de templários e maçons ) com uma esfera ( o Círculo da Perfeição ) pousada nela.
Wednesday, May 10, 2006
Roland GUY
Nesta obra se poderá seguir com grande pormenor toda a aventura da iniciação de Goethe à Maçonaria, desde a primeira carta em que pede para ser recebido.
É uma aventura feita de luz e sombra, como a dos seus heróis, sobretudo Fausto, a quem tudo será perdoado.
Ao seu protector, o Duque de Weimar, escreve Goethe em 1792 :
"...O fenómeno da luz e das cores absorve cada vez mais os meus pensamentos e,deste ponto de vista, mereço completamente a denominação de FILHO DA LUZ...Que os vossos projectos sejam bem sucedidos e não deixeis de me amar,com os meus lados de SOMBRA e os meus lados de LUZ" (in Roland Guy).
Goethe era acusado de não frequentar com assiduidade bastante as reuniões da Loja. Tavez devamos distinguir o seu lado maçon, mais social e talvez menos importante, para a sua Obra, do seu lado de poeta iniciado noutras sabedorias, como a alquímica e a Rosacruz- pois nelas bebeu também a Maçonaria,então mais em moda.
Tales for Transformation
Com este título, traduziu Scott Thompson e editou em 1987, os seguintes textos de Goethe, tornando-os acessíveis a um público mais alargado: Fairy Tale (O Conto da Serpente Verde), The Counselor, The New Melusina, The Good Women, Novelle, The Magic Flute ( a continuação incompleta da Flauta Mágica de Mozart ).
Escreve o autor, na Introdução, " Sparks from the athanor, the Vase of Hermes, flicker in and out of these tales about sel-mastery and transformation ". Esta linguagem já nos é familiar, e não vou demorar-me mais com ela.Saliento antes a importancia que teve o estudo da filosofia hermética no desenvolvimento espiritual do jovem Goethe quando, tendo de regressar doente a casa, já aos 19 anos iniciava uma aprendizagem que não mais cessaria e transparece em tudo o que escreveu.
Uma amiga foi sua conselheira, para não dizer iniciadora: Susana von Klettenberg, por sugestão do médico pietista que tratava então Goethe da sua grave e algo indefinida doença. Seria talvez a nigredo, a melancolia, a "depressão" que precede grandes transformações nas almas mais inquietas.
Goethe lê então todos os tratados que se encontravam disponíveis: Paracelso, Basílio Valentino, neo-platonistas, gnósticos e outros, como Boehme,Cornelius Agrippa,etc. As fontes encontram-se em Dichtung und Wahrheit, ou nas Conversas com Eckermann, seu secretário.
Da bibliografia mais interessante sobre o Conto destaco de Oswald Wirth a trad. francesa publicada em 1993 nas ed. Dervy de Paris.
Sendo maçon, como Goethe, faz uma detalhada análise, passo a passo, do simbolismo iniciático da obra, não descurando nenhuma situação ou personagem.Pretende decifrar aquele segredo que a serpente sussurra ao ouvido do Velho da Lanterna, na minha opinião o verdadeiro PAI da Obra, sugerindo que a palavra oculta fosse HUMANIDADE.
Contudo, tratando-se no caso de uma iniciação dupla, maçónica e alquímica , talvez essa palavra que Goethe não desvendará nunca, seja FRATERNIDADE.
A Irmandade que é a maçonaria, com o seus ideais de sacrifício pela Liberdade e Igualdade de todos os homens, sem distinção de classe, raça ou religião, supõe um dom muito especial, uma capacidade grande de se abrir aos outros, de se sacrificar, como faz a Serpente neste conto mágico.
Wirth termina comentando que "Os símbolos se destinam a fazer pensar. Só à preguiça de espírito agradam os dogmas ou os sistemas claramente fechados".
Sem dúvida que é pelo facto de estarmos perante uma Obra sugestiva e ABERTA que hoje, como então, se é levado a ler e a pensar sobre este Conto cuja liçao simbólica intrigou os amigos de Goethe, como nos intriga a nós.
Outro autor que também se debruçou sobre o pensamento de Goethe, comentando O Conto da Serpente Verde e o ciclo de Os Mistérios foi Rudolf Steiner, numa edição que podemos agora ler em trad. franc. de André Tanner e René Vittoz, de 1970.
Aqui o olhar, não menos interessante, é o de um teósofo, fundador de um movimento "antroposófico" que tem cultores um pouco por todo o mundo, embora o centro esteja sediado na Suiça.
Em 1820 Goethe escrevia a um amigo"Tive de abdicar da minha vida para poder existir" (Ich musste mein Leben aufgeben, um zu sein).
Julgo que é esta a verdadeira lição, o verdadeiro segredo, da identificação de Goethe com a serpente do Conto.Nunca o disse a ninguém, mas transparece destas considerações feitas tantos anos mais tarde.
Monday, May 08, 2006
A.E.Waite
Waite, em THE REAL HISTORY OF THE ROSICRUCIANS,London,1887, inclui, em apêndice, uma Alegoria Rosicruciana: A ROSICRUCIAN ALLEGORY.
Depois de ter desfeito muitos dos equívocos habituais sobre a origem e desenvolvimento na Europa das doutrinas Rosa-Cruz, deixando bem claro que ela se situa no século XVII e não antes, passa de seguida à influencia que o pensamento reformista de Johann Valentin Andreae teve, sobretudo em Michael Maier, um dos mais conhecidos na Alemanha, e Robert Fludd, no que ele definiu como a sua filosofia cósmica, em Inglaterra. Aliás aqui encontraremos um pensador como Thomas Vaughan, irmão do célebre "platonista de Cambridge" Henry Vaughan, fazendo a apologia do movimento Rosa-Cruz e traduzindo para inglês a FAMA FRATERNITATIS...e a CONFESSIO. Vaughan escrevia sob o pseudónimo de EUGENIUS PHILALETHES, sendo autor de um tratado muito reconhecido na época, o INTROITUS APERTUS AD OCCLUSUM REGIS PALATIUM ( A Entrada Aberta no Palácio Fechado do Rei ).
Acreditava que todo o universo seria, como anunciara séculos antes Paracelso, numa profecia, "transmutado e transfigurado pela ciência do artista Elias" fazendo surgir a CIDADE ESPIRITUAL de DEUS, em puro e místico ouro (Waite, p. 308 e segs.)
A anunciada NOVA JERUSALÉM permitiria viver sem a prisão da " moeda "e ambição que despertava no comum dos mortais, sendo causa de muitos erros e sofrimentos nas nações.No centro desta Cidade cresceria ,eterna, a Árvore da Vida, dispensando saúde a toda a humanidade. Esta, em resumo, a utopia de Vaughan.
Nascido em 1612, viajou por muitos paises e escreveu sob inúmeros pseudónimos, o que alimenta o mistério existente à sua volta: Doctor Zheil, Carnobius, e no dicionário de Lenglet du Fresnoy encontramos Thomas Vagan, por erro do francês, como diz com sarcasmo Waite. Mas o seu "Nom de plume" era de facto Eugenius , e não Ireneus Philalethes, como outro francês, corrige ainda Waite, supõe (refere-se aqui a Louis Figuier, ilustre estudioso de alquimia).
Waite indica todas as publicações de Vaughan,desde 1650 até 1678.São numerosas, e de algumas, mais interessantes pelo conteúdo simbólico e alquímico, me ocuparei um dia.
Quanto à Alegoria que referi logo no início deste post, pode ser lida nas pp. 443-4, e descreve um caminhar até ao CENTRO DO MUNDO, onde se encontra uma Montanha que é simultâneamente pequena e grande, macia e dura, longínqua e próxima, escondendo nela todos os tesouros do mundo.
Se estivessemos a ler um trtado de alquimia este seria um caminho para adescoberta da Pedra filosofal, imagem de união de contrários, definida por muitos nomes, como aqui. A inspiração dos textos Rosa-Cruz, como também Waite observou, é puramente de raiz alquímica. Não é acaso citarem, quando vem a propósito, o sábio Paracelso.
Continuando, com a Alegoria :
A montanha está guardada por muitos animais ferozes e aves de rapina, de modo a desencorajar quem a procure.O herói corajoso deve preparar-se pela ORAÇÃO, e não perguntar a ninguém qual o caminho. O guia surgirá por si próprio, no momento certo.
Repare-se que o interdito da PERGUNTA é o próprio da iniciação; recordo o jovem Parzival, mas muitos contos populares vivem de tal interdição.
O GUIA levará o adepto, em sendo MEIA-NOITE, quando tudo fôr escuro e silencioso até à montanha.A única coisa que este deve fazer é rezar a Deus, buscando-o com sinceridade.
Já na montanha assistirá aos seguintes fenómenos naturais, que não o devem assustar:
1.um VENTO muito forte;animais selvagens como leões, dragões e outros tão terríveis como esses.
2.um tremor de TERRA que arrasará o que o vento tiver deixado em pé.
3.um INCÊNDIO ( FOGO ) que consumirá todo o lixo restante, pondo a descoberto o TESOURO , por enquanto invisível.
Passadas todas estas coisas, ao nascer do dia, virá uma grande CALMA, e poder-se á ver a ESTRELA DA MANHÃ, dissipando toda a escuridão.
" Então CONCEBERÁS um grande tesouro", diz o narrador. Trata-se de uma "Tintura" com a qual o mundo, se serviu Deus e fôr merecedor de um tal dom, poderá ser "tingido" e transformado "no ouro mais puro".
Assim termina uma Alegoria fundadora do imaginário Rosa-Cruz, permitindo ver como também nesta tradição o trabalho dos quatro elementos, a humildade e a oração, tal como no MUTUS LIBER, são garantia, não de sucesso, mas de perfeição ESPIRITUAL.
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