Tuesday, November 04, 2008

Goosen van Vreeswijk



De Groene Leeuw,1674
Uma Leitura para o Átila

Neste tratado do Leão Verde, com o sub-título de Luz dos Filósofos, são expostos os segredos e modos de trabalhar os metais, os minerais, os vegetais, os animais, como suportes da Imaginação Activa. Para além das práticas de laboratório, que conduziriam mais tarde às Ciências Químicas, havia, na procura alquímica, verdadeiros exercícios de Meditação, em que ver, ler e neste caso desenhar as gravuras ajudavam ao aperfeiçoamento da Virtude interior.
Nem tudo era ouro, ou melhor, o ouro simbolizava uma Espiritualidade exemplar.
O autor apresenta-se como " Mestre mineiro", o que também é simbólico: escava o interior da Terra, o interior da Alma, e assim como se propõe retirar de metais, vegetais  e animais o melhor para um aproveitamento das qualidades medicinais que possuam, incita o leitor ( o adepto) a meditar sobre o sentido mais profundo que  a gravura oferece.
Trabalho que, como o da exploração da mina, exige tempo e paciência. 
Na capa sobressai Hermes, com o seu Caduceu, emblema da Sabedoria a obter. De frente e olhando para o deus, o Adepto, já alado (sublimado) e sob a luz do Sol. 
Nas gravuras inferiores temos a fase da Morte/meditação, que dará por fim a Chave de todo o Conhecimento ( a árvore do lado direito é discreta alusão à Arvore do Jardim do Éden). 
Por fim escolhi a pequena gravura da Tartaruga, ao alto, pois nunca é demais, em tempos apressados como o nosso, lembrar que a paciência, no decurso do Tempo, é a verdadeira Mestra da Vida: um Tempo que nos conduz ao Templo, o da Sabedoria de Salomão, que nem nos melhores filmes de Indiana Jones conseguiremos descobrir. O Tempo do alquimista não é um passatempo, é mais do que isso. 
O comentador da gravura explica: o Sujeito da Arte ( o Adepto) transforma-se no Saturno dos Sábios, também denominado Tartaruga,por se assemelharem as marcas da sua carapaça a certas forma que o Mercúrio também apresenta à superfície. Devagar, com a lentidão que a caracteriza, caminhará a tartaruga para a perfeição "fixa" do Leão. 
É este, ao fim e ao cabo, o segredo...

Monday, November 03, 2008

O Caracol Demoroso...



Numa gravura alquímica nada é posto ao acaso. Assim, embora o bestiário alquímico seja variado, o que vemos normalmente são animais emblemáticos pela côr, como o corvo, marcando a obra ao negro, ou a serpente, devoradora do corpo, ou enrolada na figuração do Uno - o Um e o Todo - ou ainda o leão luminoso, solar, ou a fénix da regeneração sublimada, o pavão, da cauda pavonis, a Obra multicolor antes de atingir o branco ou o vermelho, o dragão alado, com idêntico simbolismo, da materia negra, terreal, sublimada etc.
Águias, se voando, são a imagem mesma da sublimação que se deseja alcançar. Pousadas significam que o Caminho não está ainda percorrido. Se unidas uma à outra na copa da Árvore da Vida indicam que a consumação feliz se deu, e a Obra, o Caminho, estão cumpridos.
E então o que faz aqui, nesta gravura de Lambsprinck, o tímido caracol?
Uma das águias quer arrancar no seu vôo, a outra permanece no ninho, e a legenda reza:
" O Mercúrio sublimado repetidas vezes é por fim fixado para que não possa mais fugir e volatilizar-se pela força do fogo:a sublimação deve ser repetida até que se torne fixa.
O fixo e o volátil são assim dois elementos-chave, preparados para a Conjunção final, que deve ocorrer em determinadas circunstâncias, de espaço, mas sobretudo de tempo.
O processo é demorado, exige paciência. E a ilusão de uma Conjunção apressada não resultará num filius philosophorum, apenas na depressão da nigredo outra vez.

Fui roubar a Herberto Helder a expressão "demoroso"...eis o verso:
no sistema demoroso do bicho interompido na seda...
Também ele, alquimista do Verbo, não usa a expressão por acaso. Criou-a expressamente fundindo as palavras demorado e amoroso, sexualizando a imagem,a forma, o bicho escondido num casulo e que alguma vez haveria de voar  borboleta (a pulsão sublimada). O que no caso deste poema não pode acontecer: o casulo, com o bicho dentro, foi preparado para o fio do destino, para outra função, a da morte.
Na terra a lição é a da paciência, do vagar, do lento prazer que o caminhar pelas palavras dentro proporciona. 
E na terra sonham ambos dentro do seu casulo ou da sua humilde casca, tanto o poeta como o caracol alquimista. 

 

A Faca e o Fogo


  I
É sempre com respeito, e algum remorso, que abordo a obra de Herberto Helder. Comentá-la é restringir o seu alcance, por outro lado o comentário pode, para alguns leitores, alargar o sentido, se acaso acharam hermético o seu imaginário.
É imenso, como não podia deixar de ser, o universo cultural de Herberto Helder: dos antigos mitos, rituais, magias que foram ao seu encontro - a nossa geração, a dos anos sessenta, é feita de devoradores de livros - até às práticas mais modernistas, entre as quais o surrealismo e a escrita automática  se inscrevem , renovando-as, abrindo a palavra poética à imensidão das vagas do inconsciente. 
Herberto ora transmite ora oculta, no seu dizer,o impulso que o move. Sobre ou sob imagens poderosas, arquétipos e mitos fundadores. Não é por acaso que ao lermos e relermos a sua poesia de cada vez algo de novo se encontra, que nos perturba e seduz.
Acontece de novo, com este novo livro, A Faca Não Corta o Fogo, de que já me ocupei, para o "lançar", a meu modo, nestes blogues.
Permanente é a interpelação da Mãe, a interpelação da Mulher, do seu corpo, do seu sangue, da energia de que ela e só ela é portadora, e nos conduz ao primordial impulso da palavra, do Verbo que exige ser dito para que não definhe e morra.
Eu gosto de regressar, como ele faz, neste livro, ao mundo maravilhoso de A Colher Na Boca, o primeiro que li, há tantos anos, andando pela Editora Ática:
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva.Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras.
Imagens da mulher, da água (da chuva) e do fogo (das candeias) dando a pressentir uma espécie de fusão alquímica dos elementos que serão a base estruturante do poema.
A mulher hierática, como a deusa Ishtar, Grande Mãe primordial,  inicia e devora, consome, o filho que é ao mesmo tempo amante.
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
O amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que ela levitam.
Caminha-se para a iniciação, não tanto ao real que a suporta, como ao imaginário subtil, do mundo interior, que sublimará pela palavra o mundo terreal, elementar, quotidiano ( a mesa, as chávenas, os garfos em que a mãe vai mexendo).
Depois da água e do fogo surgirá a terra, com as flores:
Flores violentas batem nas suas pálpebras. 
E estas flores são já as de Perséphone, outra variante do mito primordial.
Filha de Zeus e Deméter ou, noutra variante, de Zeus e de Styx ( a ninfa do rio dos Infernos)  passa o seu tempo durante três estações na terra e uma estação no inferno. Simboliza o renascer da vida, na Primavera, aguardado como esperança e sinal de perpétua renovação. Amante de Adónis, levá-lo-á aos infernos consigo, quando parte.
O interessante é descobrir a dupla face do mito: morte e renascimento, treva e luz, figurações também  da condição humana no universo criado.
As mães, entenda-se aqui o Feminino, o Eterno Femino, é condutor, como em Goethe e tantos outros poetas.
As mães são a mais alta coisa
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos...

II
A imagem do fogo, como elemento de fusão e de sublimação, é permanente em Herberto Helder, e de novo dá o tom ao seu novo livro, nos inéditos escolhidos que intitulou de A Faca não corta o Fogo.
Poderemos recordar Bachelard (La Psychanalise du Feu) e ver com ele a dimensão do "fogo sexualizado", e do "fogo idealizado", sublimado em luz pura de pura transformação. 
Definir é limitar, e o poema escapa a qualquer tentativa de limitação, o que torna humildes quaisquer comentadores, no grupo dos quais me incluo. Não pretendo limtar o âmbito do poema, mas sim e apenas viajar à minha medida pelo poema dentro, seguindo pistas que me surgem, como poderiam surgir outras. 
Uma das mais interessantes que me ocorreu foi a de ver na Faca a Espada dos alquimistas, fazendo precisamente o seu trabalho de fogo. A espada corta e sublima, e por outro lado ela própria é "temperada" no fogo. O trabalho secreto do adepto, do ferreiro, é dar forma à matéria difícil dos metais que vão do negro chumbo da vida ao ouro da imortalidade que os poetas celebram, ou porque a temem ou porque a desejam, ainda que inconscientemente. 
A chama é vertical, mas pode ser suavizada no interior da lanterna, do candieiro que a aprisiona e contém.Torna-se chama do lar, íntima, permitindo o sonho, ou no calor da casa, da cama, a experiência do amor.
Encontramos em Michael Maier, conhecido médico e alquimista alemão do século XVII, uma bela gravura, da Atalanta Fugiens, que pode ajudar a entender o simbolismo da espada e do fogo, ou neste caso da faca e do fogo. A espada não corta o fogo, é sublimada por ele; o mesmo acontece à faca.
A dinâmica do simbolismo imaginal permite aproximar o fogo da Luz, e a espada do Espírito que por ela é inspirado e conduzido. Fala-se da Luz da Razão, mas pode igualmente falar-se da Luz da Iniciação, a tal vidência que é apanágio das Mães antigas e de seus filhos amados e amantes.Toda a iniciação passa por sacrifício, o que acontece na combustão do fogo íntimo do Verbo, do Poema de Herberto:
a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
 só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação
- e se me tocam na boca?

Está situada a aventura: é do Poema que se trata, sempre se tratou, da sua substância viva, ao mesmo tempo etérea e corporal, o poema pode doer e dói, no corpo como na alma. 
E de novo somos empurrados para um fundo mítico próprio: o da natureza do Verbo criador, da primeira energia, a anímica, que na tradição da Kabala, por exemplo, é equiparada à Shekinah, a face magnânima de Deus, eterna como ele e feminina.Dos poemas ou do Poema de Herberto se pode dizer o que Bernardim Ribeiro disse da sua Menina e Moça : "o livro há-de ser do que vai escrito nele" . E mais ainda esta verdade se comprova neste caso de que estamos a tratar.
A Shekinah é definida por G.Scholem (A Kabala e a Mística Judaica) como "o momento Passivo-Feminino da Divindade":" Se quisermos começar por determiná-la dum modo muito geral, a Shekinah é a personificação e a hipostasiação da Habitação ou Presença de Deus no mundo". E adiante conclui, "o seu nome é feminino mas a sua natureza é masculina".(trad. port. ed.Dom Quixote).
 Se tudo na obra de Herberto remete para a Palavra Dita,para um Dizer da poesia feita experiência viva, em carne viva, em combustão que a água não apaga nem dissolve, antes ajuda a solidificar, também tudo remete para uma personificação, na Mulher, de uma sabedoria antiga, de cariz religioso, mítico, hermético e por isso difícil de explicar. 
O Corpo da Palavra é como a Pedra alquímica: em ambos se reúnem opostos, se fundem contrários, se completam energias primordiais e pulsões emanadas de um fundo anímico comum, o inconsciente (a matriz dos arquétipos universais, como gosta de dizer Jung). Citando agora um alquimista francês do século XIX, de pseudónimo Sedir: 
"Eros é um agente muito secreto, é aurifíco; por isso se esconde nos véus da Noite; Orfeu te ensinará a extrai-lo (ao ouro)  de toda a matéria em putrefacção; deixa que primeiro este Saturno se transforme, por meio do fogo que forma os Metais nas entranhas da terra, numa Vénus filosófica...É por isso que o amor é uma beatitude". (Vénus Magique, contenant les Théories Secrètes et les Pratiques de la Science des Sexes, ed.Pierre Belfond)
Neste tratado se encontram todos os temas da panóplia alquímica, a geração do microcosmos, da Grande Obra,  como análoga à macrocósmica,ou Criação do mundo por Deus; e ainda o mito do andrógino, transformado na Conjunção do macho e fêmea, a Virgem fecundada, o Fogo dos Sábios como filho de Vénus, etc.

Em A Faca não Corta o Fogo, no poema com que termina o livro, surge outro elemento muito caro ao poeta: "o animal intuitivo, de origem" : a pulsão que o move e no universo da palavra faz mover o mundo do poema, faz brilhar o "nome" do poeta, e no ar lança a interrogação:
onde?
fora? dentro?
no aparte,
no mais vidrado,
no avêsso,
 no sistema demoroso do bicho interrompido na seda,
fibra lavrada sangrando, 
uma qualquer arte intrépida por uma espécie de pilha eléctrica
como alma: plenitude,
através de um truque:
os dedos com uma, suponhamos, estrela que se entorna sobre a mesa,
poema trabalhado a energia lternativa,
a fervor e ofício,
enquanto a morte come onde pode a vida toda
...
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse : tinha paixão? 

O forno, o fogo, a faca, a espada, o ovo (feminino-mãe, matriz primordial). 
Se lermos o poema todo, como no Todo se funde esta Escritura mágica, sentiremos pela própria leitura, de preferência em voz alta, deixando bater o ritmo ( o pulsar do coração) que sim, tinha paixão, antiga como a que levou Deus a amar em Si-mesmo o Belo, o Bom ,o Verdadeiro - ainda que em toda a crueza.Da Obra nasce o tempo em que ela se constitui, nasce o destino, que um fio (pelas Parcas, ou pelas Mães)  será um dia cortado:
arranca ao maço de linho o fio enxuto,
nascido assim, ali, na roca, o fio,
e que gire no fuso para dentro do que fica pronto,
e vá até ao fim o trabalho que brilha,
o toque transitivo,
que a luz se mova nas pupilas,
ese ficares cego é para veres tudo unido,
escuta então como te chamam pelo nome
daquilo que te cerca,
mas não acumules nada,
amaina o fio bravio quando irrompe
e,
pálpebras cerradas, sente como estremece tudo, o centripeto e o centrífugo,
e morre de ti mesmo