Thursday, August 30, 2012

William Blake, Uma Imagem Divina

Os meus leitores habituais já sabem que muitas vezes passo de um blog para outro: neste caso, passo de literatura e arte, onde coloquei um apontamento sobre William Blake e o seu poema O TIGRE, que traduzi em versão fiel, mas livre, para este blog onde continuarei a reflectir sobre o Fogo que arde nos olhos do Tigre, figuração da treva primordial.
 O conjunto de poemas que Blake intitulou Canções de Inocência e de Experiência exprime, como ele diz, as duas faces da alma humana: a luminosa e a obscura, feita de treva.
Uma treva que preside à criação, é parte da substância mesma de Deus, pairando no ar a ideia de que o Mal é imanente, é consubstancial ao Bem, o da pureza inocente do outro ciclo de canções.
O ciclo das canções de Experiência fecha com um poema sobre A IMAGEM DIVINA, que passo a traduzir:

Uma Imagem Divina

A Crueldade tem um coração humano,
E o Ciúme um rosto humano;
O Terror é a divina forma humana,
e o Mistério a humana roupagem.

O vestido humano é ferro forjado,
A forma humana é uma forja ardente,
O rosto humano uma forja selada,
O coração humano seu abismo voraz.

Bem na continuação de poemas anteriores, sobretudo o do Tigre, Blake exprime o seu entendimento do Humano como substância contaminada: pela crueldade, pelo ciúme, por uma arbitrariedade que é própria do mesmo desígnio divino e misterioso com que foi concebido o Tigre, em simultâneo com o Cordeiro.
O Tigre foi forjado a um lume perverso, e o mesmo se verifica aqui, onde impera o imaginário de um fogo perpétuo e igualmente nefasto (não purifica, não sublima, deforma):
a segunda estrofe, concludente, desenha a forma humana como ferro forjado, forja ardente, forja selada ( de onde essa tal forma não poderá ser retirada) sendo que tudo é vorazmente engolido por um coração ainda mais negro, centrípeto de movimento, onde a emoção primordial se afunda.
Podemos ler este poema em contraponto com outro, o XIV do ciclo das canções de Inocência: tem o mesmo título, A IMAGEM DIVINA e não será por acaso.
A Imagem Divina

À Misericórdia, Piedade, Paz e Amor
Todos rezam quando em desespero;
E a essas virtudes divinais
Demonstram a sua gratidão.

Pois Misericórdia, Piedade, Paz e Amor 
São atributos de Deus, nosso Pai bem amado,
E Misericórdia, Piedade, Paz e Amor 
são do Homem, seu Filho bem cuidado.

Pois a Misericórdia tem coração humano,
A Piedade  um rosto humano,
E o Amor, a divina forma humana,
E a Paz, a humana roupagem.

 Então cada homem, de qualquer região,
Que reze no seu desespero,
Reza à divina forma humana -
 Amor, Misericórdia, Piedade, Paz.

E todos devem a humana forma amar,
Seja em  pagãos, Turcos ou Judeus.
Onde reinem Misericórdia, Amor, Piedade
Aí Deus reinará também.

Face a este poema, de apelo às Virtudes cristãs mais anunciadas, em que claramente é dito que no Homem justo e bom a divindade está presente, o que concluir do poema em que tudo é desmontado e relegado para uma impureza fundadora e cruel, na raiz da criação humana?
Que perdido a Inocência  do Jardim das Delícias a Queda foi abissal e permitiu que uma visão luciferina revelasse a outra face do Humano: a impiedosa, a cruel, a de um deus ele mesmo ciumento e devorador das suas criaturas.
Não é fácil abordar a lírica de Blake, e muito passaria pelo estudo da sua formação esotérica, que não poderei fazer aqui.
Mas deixo à curiosidade dos leitores a porta aberta para quem deseje aprofundar estas matérias.



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Thursday, August 16, 2012

Tuesday, August 14, 2012

Alice através do espelho

Para a Rita Roquette de Vasconcellos
Quando se fala de Transformação é impossível não recordar Alice, a heroína de Lewis Carroll, que no limiar do sono e do sonho vive uma aventura sem igual: corre atrás dum coelho para um mundo onde tudo acontece, ou pode acontecer, basta que se imagine, se tema ou se deseje...
Quanto tenho saudades de ler, releio as aventuras de Alice.
Escrevi há dias um texto sobre o Ovo Alquímico, a partir de um sonho que se tornou difícil de entender. Fiz um enquadramento de contexto cultural, através da pintura de Bosch, das gravuras de M.Maier, dos quadros de Magritte; mas ocorria-me sempre à memória o Humpty Dumpty de Alice: tão súbito, também ele, como nos sonhos, e tão enigmático no seu discurso.
O que eu tinha apontado, no meu enquadramento, era a "humanização" da imagem simbólica do ovo: em Bosch, ligado à criação e sua decadência, sua degradação que ele torna bem visível, figurando através de formas que hoje se diriam do domínio do surreal, a sua visão da Queda, de uma humanidade que o pecado corrompera para sempre. Já em Maier o ovo simboliza o mistério da Obra que tem de ser "aberta" (pela espada, pelo glaivo de fogo) para que dela possam os elementos naturais ser "sublimados" e a natureza ser redimida da corrupção, ou do pecado primordial (se aplicarmos à alma esta mesma simbólica alquímica, como fez Jung). Magritte ironiza, nos sues quadros, sobre o poder da imagem e da linguagem...aplica títulos que confundem, em vez de esclarecer!
Mas nos corropios de Alice não há visão decadente, não há pecado que se aponte com o dedo, o que há, em cada momento, é a surpresa da transformação e do crescimento: ela por vezes cresce; e se foi demasiado, logo diminui....aqui está pois a lógica, que é uma "outra" lógica, da transformação. Dir-se-á : de uma criança em mulher? E procuramos em Freud a leitura que ajude? Não me parece.
A lógica será outra: do sonho, da diversão que liberta, da interrogação que questiona, do amadurecimento que confronta, tranquilo, qualquer dificuldade.
Bom, e Humpty Dumpty, o ovo tão enigmático?
Ele surge nas aventuras DO OUTRO LADO DO ESPELHO. Isto já significa qualquer coisa. É o espaço-tempo para lá da consciência. Alice quer um ovo, a lojista oferece dois, Alice insiste que não quer dois (seria o par consciência-inconsciente) mas apenas um: o do inconsciente. Não que se exprima assim, somos nós a fazer esta leitura. O espaço, alterado, transforma-se, torna-se cada vez mais escuro, a loja é agora um jardim, pois tem lá dentro uma árvore e um regato: tudo aponta para o espaço de um imaginário transformado, uma revelação do inconsciente, que o ovo, um só em vez de dois, já iam prefigurando, no desejo de Alice.
Tomemos a árvore como Árvore da Vida (pois vamos lidar com um ovo), o jardim que nasce da escuridão da loja como Jardim do Paraíso, e o ovo que ela já tem na mão como Ovo Primordial. Um símbolo do princípio de tudo: da Vida, na sua evolução.
O ovo cresce, cresce, torna-se imenso, como o mundo que representa., mas é de um mundo humano que se trata: Alice vê que ele "tem olhos e  boca e nariz" e reconhece Humpty Dumpty, figura do imaginário tradicional. Contudo é do seu simbolismo que nos vamos ocupar: ovo-figuração do inconsciente humanizado.
Características a ter em conta: olha sempre para o "outro lado" mesmo a falar com Alice; ele pertence aos seu outro lado, o do inconsciente, aquela esfera da psique que mesmo ao manifestar-se sentimos como outra, designamos por mais funda, mais longe,  - tudo o que signifique distância e não proximidade; próxima é a esfera da consciência imediata, longínqua é a esfera da consciência mediada (pelos sonhos, pela criatividade, pelo impulso a-lógico, etc) ou seja, o inconsciente.
H.D. pergunta a Alice como se chama: e não há nada mais complexo do que re-conhecer e dizer o nome, o verdadeiro...De alguma maneira o Ovo, ao interrogá-la sobre o nome, interroga-a sobre a vida, a existência, que o nome justificará...ou não!Alice percebe que a situação é difícil: questão de vida, mesmo. Pois H.D. lhe confirma que o nome significa o que se é: " o meu nome significa a forma que eu tenho" : é redonda, e ele é um ovo.
O nome é a manifestação da essência e da existência que ela assume.
Estamos em plena sessão de análise e discussão da linguagem e sua potencialidade: não a linguagem que dá voz ao coloquial, mas a que dá voz ao essencial da natureza humana e da sua existência.
O diálogo envereda por um jogo de palavras e de números em que o tempo também entra, mas entra acima de tudo a lógica do "ver ao contrário"  ou melhor do ver ( e do dizer) de forma aleatória o que bem se entender, sendo que tudo tem o significado que se quiser: "Quando eu emprego uma palavra ela quer dizer exactamente o que me apetecer...nem mais nem menos, retorquiu Humpty Dumpty". E passa a explicar o peso que as palavras podem ter, sendo que os verbos são os mais difíceis de controlar, e por aí adiante num jogo que parece interminável e se destina a isso mesmo: a explicar que tudo é possível, na lógica própria de um imaginário  livre e naturalmente complexo. E por se tratar de um ovo direi que é fértil o maravilhoso mundo do inconsciente, em que a nossa Alice mergulhou.