Sunday, September 24, 2017

Alberto Pimenta, A BALADA DO VELHO MARINHEIRO



Poucos saberão talvez, hoje em dia, desta rara faceta de Alberto Pimenta, poeta, tradutor, grande erudito, vanguardista da Poesia Concreta e Experimental, na senda dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto, no Brasil) e que entre nós, desde o seu tempo juvenil e glorioso do Teatro Clássico, em Coimbra, a dada altura mais conhecido se tornou pelo seu intervencionismo culto, mas sempre militante, nas Performances com que nos mais variados espaços (desde salas pequenas a uma jaula do Jardim Zoológico) nos surpreendia e deleitava! 
Destas, o HOMO SAPIENS foi editado em livro, mas outros há, anteriores, e cada vez mais actuais, ainda circulam por aí, aguardam quem sabe uma sessão de leitura seguida, que os jovens, se não forem já dos formatados aguardando lugar nas filas dos Partidos, saberão apreciar tanto quanto nós, os da antiga geração, na altura apreciámos. Refiro-me ao Discurso do Filho da Puta.
Embora eu saiba que num grande poeta o seu passado é presente e futuro, é da sua mais recente edição que pretendo falar, desta belíssima, tão intensa e comovente balada do Velho Marinheiro, de S.T. Coleridge (1772-1834), que Alberto recupera numa tradução como aquelas a que nos habitou, de excelência de domínio da língua na tradução que faz. 
Alberto é um erudito, como não tem havido igual nas nossas Academias, mas discreto nas aparições que faz, ao editar o seu trabalho, que pode demorar anos até que surja. A sua Arte é paciente, como se deve, nos grandes autores.
Por isso me debruço sobre esta sua tradução, tão poética quanto o original de que parte, e tão carregada de simbolismo, que vou chamar de alquímico.
Quem me conhece sabe que ao falar de alquimia falo, como Rimbaud, de alquimia do Verbo, de alquimia da Alma.
Muitas das baladas que conhecemos, desde as de Goethe, por exemplo, nos ensinaram que há nelas um tom, um destino que é trágico e respeita à condição humana.
A Balada do Velho Marinheiro não foge à tradição. Dividida em sete partes (seriam os dias da criação? ) conta que um velho marinheiro se cruza com três cavalheiros que iam para uma boda, e fica com um deles, a quem interrompe o caminho, pedindo-lhe que oiça a sua história. A noiva já está a ser anunciada, pela música de um oboé, mas o marinheiro não interrompe o seu contar. O barco em que navegava é levado por uma tempestade em direcção ao pólo sul; daí a pouco se abatem sobre os marinheiros blocos enormes de gelo " Só gelo em todos os lados".
De repente, no meio de tanto "estertor" com uivos já de prenúncio de morte, surge então um albatroz.
A ave é acolhida com um espírito fraterno (cristão) e saudada "em nome de Deus". 
Mas na última estrofe eis que surge a traição cruel, feita à ave inocente que lhes trouxera o bom tempo: 
Com o arco e uma seta
Eu matei o Albatroz. 
Chegamos à Parte II com esta revelação que marcará daqui em diante o curso da narrativa.
A "acção infernal" praticada pelo marinheiro agoirava o pior, para aquela viagem que agora a todos metia medo.
A viagem ia transformar-se, para todos, e não apenas para ele, numa longa e penosa travessia - uma travessia de vida, a expiar os seus pecados. Na última estrofe é descrito o momento em que, em desespero, os marinheiros penduram ao pescoço do velho, "em vez da cruz", o corpo do Albatroz.
Percebemos por aqui a relação do pecador, e do seu pecado, com um Albatroz que é Cristo e é também ao mesmo tempo, o marinheiro que o matou e agora o leva atado...
Na Parte III, descrita a continuação de uma travessia infernal, perigosa, assustadora, e que já nem comporta esperança, surge de súbito uma forma: de um barco e de uma mulher, quase forma apocalíptica:
Então a tripulação é uma Mulher isolada?
É um Espectro de mulher? E há outra além da primeira?
Mas então será a Morte que ela tem por companheira?
....
Ela era a Morte-em-Vida, o Pesadelo sombrio 
Que empasta o sangue do homem que ela embebeu do seu frio.

Estamos perante um navio-fantasma, dos muitos que assombraram  o imaginário antigo e agora se recupera. A Morte joga aos dados a vida dos marinheiros, ganha a todos, que em breve um a um sucumbirão, e escapa sozinho o Velho.
Na Parte IV, o convidado da boda que o Marinheiro interpelou, interrompendo o seu caminho, já se declara assustado, receando que ele não seja um homem mas sim um espírito renegado.
O Velho continua a descrever o sofrimento que é o seu castigo eterno: sempre vivo, sempre vivo, sem o descanso da morte, que seria o seu perdão.
Mais uma vez é na última estrofe que se dá um passo em frente, fazendo avançar o mistério do todo da narrativa:
Nesse instante eu orei:
Como se fosse de chumbo,
Despendeu-se o Albatroz
E sumiu-se no profundo.

A Parte V descreve como ao Velho Marinheiro é concedido de novo o sono, a benção do sono, que é prenúncio do perdão.
Parecia ter acontecido um milagre: o que sonhara tornava-se realidade: chuva, que o corpo sedento bebia, sopro de um vento que não atordoava, estrelas a dançar no meio do céu, e uma grande nuvem negra, que tinha a Lua a seu lado.
Dá-se a transformação dos corpos caídos, no navio. Erguiam-se, sem falar, "tripulação fantasma que ali estava reunida". Mas tranquilizando o receio do convidado que ainda ali estava a ouvi-lo, explica então o Marinheiro: 
...
Não Convidado, descansa,
Que as almas dos condenados
Não tornaram aos seus corpos,
Mas sim uma legião de espíritos abençoados.

Assim, rodeado de sons melodiosos, voga o navio sozinho, levado por misteriosa corrente.
Ate´que tudo se altera: "o sol a prumo no mastro tinha pregado o navio/ À sua extensão de mar".
O balançar torna-se ameaçador, o Marinheiro desmaia e ouve, quando volta a si, que uma voz o acusa de ter morto o Albatroz. Mas também lembra que esse velho pelo seu crime nefando já muito tinha penado.
 E chegamos à Parte VI, em que o poemas se desdobra num diálogo a duas vozes. A primeira pergunta o que acontece com o mar, o que é que move o navio; a segunda explica que aquele mar não se move, está fixo perante a Lua, e deixa uma observação misteriosa: " É a busca de saber qual o rumo a seguir" / Pois é ela que o guia, ou suave ou tenebrosa".
Ficaremos a saber que o Marinheiro é assim conduzido à sua terra natal, tem no seu percurso lunar a visão dos espíritos angélicos que abandonam os corpos dos mortos, revestidos das suas vestes de luz, conjunto de Serafins - como nas visões que os Evangelhos relatam.
A última estrofe desta sexta parte descreve a chegada do santo Ermitão, que irá absolver o Marinheiro do pecado cometido, lavando-o do sangue do Albatroz.
E na Parte VII acompanharemos o Ermitão do bosque, no erguer do seu canto, nas suas orações do meio-dia e da tardinha, no convívio com outros marinheiros. 
Afundado com estertor o navio onde estava ainda o Marinheiro, este implora ajuda, ser ouvido em confissão. 
O santo homem, benzendo-se, como se ali se tivesse incarnado o diabo, pede ao Marinheiro que lhe diga quem é, e este conta então a sua história, enquanto o seu corpo se revolve numa "agonia infinda" que por fim o liberta de si mesmo, e da memória terrível. 
Mas...tem um preço.

Esta agonia retorna
Desde então a hora incerta:
E antes de a história contada abrasa-me o coração
E só depois me liberta.

Vou errante como a noite, errante de terra em terra.
Tenho este dom de contar.
O rosto me dá a saber
O homem que devo escolher
Para lhe esta história ensinar.

Estes aparentes pequenos detalhes são talvez o fio que procuramos para entender melhor o significado desta narrativa que nos prende, pelo ritmo do verso, mas sobretudo ( para lá das pinceladas intensas da descrição de paisagens ora sombrias ora por vezes excessivas de tanta luz,  a luz da Razão que ofusca ) neste caso, dizia eu, a imperiosa necessidade de contar uma história que contém um ensinamento, e a quem a oiça permite uma iniciação: num outro tempo, num outro espaço; despido do real (que seria a boda a que iria assistir como convidado) ascende o ouvinte a uma esfera de espiritualidade revelada no dito  do Marinheiro, Velho e iniciador.
Uma voz imperiosa, que força o dizer, para que de novo se possa uma e outra vez, ser redimido.
Há uma lição no fim: a do amor universal, pelas criaturas que povoam o universo criado. E quanto aos homens, a lição é também de amor que se partilha desde o Santo ao Pecador:
...
Tanto os seres das alturas como os ínfimos da lama,
Que Deus que nos ama a nós
Todos fez e todos ama.

Esta é a lição do texto, como se de um sermão se tratasse. Mas lendo com mais cuidado, repare-se: foi melhor ficar ali, naquela companhia, do que ir participar na boda que tinha lugar na Igreja.
O que a balada sublinha é que importa mais a companhia do que o cumprir um ritual. Rezar é uma forma de amar, e só aprendeu a amar quem aprendeu que amar é amar a todos (ama o próximo como a ti mesmo). Do maior ao mais ínfimo dos seres existentes.
O Velho é um Velho do mar: a sua vida é errante, tem uma lição a propagar.
Haverá qui alusão ao Judeu Errante, ao Judas que matou Cristo, pois que o marcou para matar?
O vasto mar é a vida, o vasto mar é  a morte, o navio o seu inferno, o seu eterno penar.
Podia trazer à nossa reflexão o Bateau Ivre, de Rimbaud, e a explosão  do seu grito: ô que ma quille éclate, ô que j 'aille à la mer! Mas Rimbaud não procurava a redenção, e sim o aniquilamento brutal.
Quanto a Baudelaire, de que modo tratou ele a figuração poética do albatroz  de asas largas, de vôo alto, mas que uma vez pousado ou caído no convés de algum barco mais parecia um tosco e diminuído animal do que uma ave de grande beleza e nobre porte?
O albatroz de Baudelaire é a figuração do Poeta: o seu vôo livre nos céus permite o Dizer perfeito, expressa o Verbo necessário. Mas caído nas tábuas de um quotidiano real, puxa a troça, a indiferença, sublinha-se a imperfeição das asas grandes demais para o que humano olhar suporta...

O Poeta assemelha-se ao príncipe do ar

Que busca a tempestade e troça do arqueiro;
Exilado no solo no meio dos apupos
As asas de gigante impedem-no de andar

Mas em Coleridge a questão é mais ética do que poética: o Albatroz é morto por uma seta que o apanha, desprevenido, no ar. Crucificou-se um inocente amável, cuja visita alegrava o navio. É como que o pecado mortal na viagem da vida que se iniciará...

Cruzam-se nesta balada três motivos
o do pecado  contra um ser inocente, natural 
o do navio fantasma, cuja raiz se encontra na história do Holandês Voador
o do Judeu errante
e o do Poeta que só nas alturas pode sobreviver com a sua arte

Em Coleridge a análise conduz mais ao motivo do Holandês Voador, como podemos ler em Elisabeth Frenzel, no seu Stoffe der Welt Literatur (Kroener, 1988). A lenda surge na primeira metade do século XIX, com uma edição de 1821 em que o capitão holandês de um navio é descrito como tendo feito pacto com o diabo, para conseguir vencer o Cabo das Tormentas ( depois Cabo da Boa Esperança) . Quando o seu fantasma aparece no mar é sinal de maldição.
Um outro relato, de 1841, de Barend Fokke, que se baseia no anterior, descreve o capitão como tendo feito ainda em terra um pacto com o diabo, o que faz dele uma espécie de emanação das forças destruidoras do Mal. Quando um dia não regressa de viagem, logo se conclui que devido ao pacto feito, nunca mais se libertará do eterno castigo e maldição que o ligam à travessia do Cabo, não podendo voltar a atracar seu barco em nenhum porto de abrigo. Transformou-se em alma errante.
Elisabeth Frenzel, nesta sua linha de investigação refere ainda outra obra, de 1832, de A. Jal, uma edição bretã (quem sabe a mais interessante, para os futuros estudiosos) em que surgem motivos misturados: o do capitão desalmado que, apesar dos pedidos da tripulação, os obriga a a atravessar o Cabo, e deita ao mar os que não obedeciam. Surge então das nuvens uma forma sobrenatural que o amaldiçoa de modo a que só venha a navegar em tormentas, afligindo com grandes males todos os navegantes.
Ora bem, nota a autora, a maldição e o terror causado pela travessia do Cabo da Boa Esperança, já tinha uma história antiga: encontra-se no relato da descoberta, de 1497, de Gaspar Correia (Lendas da Índia) em que se conta como Vasco da Gama, o nosso herói dos Lusíadas, contra a vontade da sua tripulação força a travessai do Cabo, ameaçando de morte quem lhe não obedecesse.  Manda prender o timoneiro, deita ao mar as cartas de navegação, e declara que é agora Deus quem será  o timoneiro.
A lenda fará desta narrativa a matriz da lenda do pacto maléfico, pois só um pacto assim poderia ter permitido o sucesso que Camões glorifica nos versos da epopeia dos Lusíadas (em 1572): do Cabo tenebroso ergue-se o espírito que ameaça com vinganças terríveis, e na forte personagem de Gama se esboça já aquele que virá a ser o Holandês Voador futuro.
O Romantismo, dado ao culto de lendas e fantasmagorias, depressa se apropria desta matérias, de uma memória de terrores que seduzem, envolvendo, conforme os casos, a questão do Bem e do Mal (do pecado, da ambição, do pacto, e da redenção, nem sempre possível, mas que no Fausto  II de Goethe, por exemplo, é concedida, e aqui se abrem novo tópicos de discussão) .
Assim veremos em Coleridge, na sua visionária Balada do Velho Marinheiro (1798) a renovação e recuperação destes motivos, alargados por obras como o romance de Hauffs, de gosto orientalizante , Das Gespensterschiff  (1825)  e o de Marryat , The Phantom Ship (1839).
Omito, porque vai longo este excurso, a ópera de Wagner (de 1843), a partir de um rascunho de Heine, pois entram aqui um factor novo, o do amor, e do sacrifício que o amor exige para redenção do amado.
Em Coleridge, há de facto uma Boda que vai ter lugar, mas o Velho Marinheiro, que interpela o convidado, faz-lhe ver com detalhe, no decurso da narrativa, que melhor do que participar num ritual é rezar a um Deus que perdoe, uma vez confessado o pecado...
Mas Coleridge não prescinde da áurea de mistério: o Marinheiro tem ainda, e nunca me momento certo, a necessidade imperiosa de contar a sua história: se não conta, rebenta. E por aqui se levanta a questão do dizer do poeta, essa pulsão tão forte, que o leva pelos caminhos do mundo, o seu e o dos outros, que interpela, interrompe, e faz comunicar com outra esfera. Um Além feito de sombra e luz, as energias da Alma.
Matar o Albatroz foi o pecado original, gesto que nasce dum impulso gratuito. 
Terá perdão, a Alma?

ao Alberto Pimenta, de coração sempre aberto, dadivoso, nas Obras que dá a ler.
(Lisboa 2017)


















Wednesday, September 13, 2017

Flower and Song

Flower and Song - Flôr e Canto
É uma selecção de poemas aztecas com tradução e prefácio de Edward Kissam e Michael Schmidt (Anvil Press Poetry, 1977).Tinha este livro na estante, ao lado do Popol Vuh, o livro fundador da civilização dos Maias, e já um pouco esquecido por outras leituras que se foram impondo.
Mas o poema do Discurso do Cacto levou-me de novo - os livros são assim, ora se deixam esquecer ora de súbito se impõem - a esta imagem, também ela fundadora, da flôr e do canto, que figura o nascer da poesia, do poema inicial e iniciático, como no caso do Orfeu ocidental, com o seu canto, a sua flauta ou a sua lira.
No poema n.49 (p.62), encontro a Canção de Mimixcoa, que completa de forma inspirada, numa civilização ainda misteriosa e tão distante da nossa (em parte fomos nós, no século XV, os culpados da sua destruição), a visão que temos da origem do Verbo criador, do poema, da poesia que depois se expande em múltiplas florações....
Eis o poema, que traduzo aqui do inglês:
Vim das sete cavernas,
o primeiro lugar em que reinava a magia.
As minhas pègadas é daí que conduzem
 ao lugar onde as tribus começaram.

Nasci. Já nasci.
Nasci com as minhas setas de cacto
do cacto que nos embebeda.

Nasci. Surgi como canção
com o meu tambor de rede já pronto.
Nasci com o meu tambor.
Nasci com a minha rede.

Seguro-o com uma só mão, com uma
só mão o seguro, com a minha mão.
Oh, com a sua mão
ele encantará.