A quem tenha lido o Livro do Amigo e do Amado de Raimundo Lúlio este soneto de Camões parecerá desde logo ter uma mesma linha de reflexão neo-platónica e simbólica :
"Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia
que, como um acidente em seu sujeito,
assi com a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia:
o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma".
Citando uma estudiosa camoniana, MARIA DE LURDES SARAIVA, que procedeu à edição da Lírica completa de Camões na BIBLIOTECA DE AUTORES PORTUGUESES da Imprensa Nacional-Casa da Moeda ( 1980 ) : " A densidade ideológica desafia a condensação de qualquer perífrase ".Maria de Lurdes, embora aluda ao platonismo que parece evidente, não recusa a ideia de uma assimilação das doutrinas aristotélicas de ESSÊNCIA e ACIDENTE : " a essência de Aristóteles é a matéria, mas a matéria é categoria anterior à realidade que, só pela pela inteligência ou pela passagem do virtual ao real ( o acidente ) se concretiza e realiza " ( Lírica II, p. 265 ).
Haveria aqui muito a discutir.
Mas deixo a sugestão das leituras que, como as de Lúlio, reforçam a dimensão poética mais esotérica, oriunda das anteriores correntes de gnosticismo e neo-platonismo bem conhecidas em Portugal, a que se poderia ainda acrescentar, como Helder Macedo defendeu para a MENINA E MOÇA uma dimensão judaizante.
Vejamos de novo Lúlio:
95.
Se ausentó el amado del amigo, y el amigo lo buscó con sus pensamientos.Y preguntaba por él a la gente con palabras de amor.
...
96.
La luz de la habitación del amado iluminó la del amigo, para expulsar las tinieblas y llenarla de placeres y pesares y pensamientos.
Y el amigo vació su habitación para que cupiese su amado.
...
A luz da casa do Amado expulsa as trevas da casa do Amigo ; esta depois de esse FIAT adquire uma nova dimensão de "actualidade" e "realidade" : com os prazeres e os sofrimentos e os pensamentos próprios do" amador da coisa amada", da "casa amada", se me permitem o trocadilho que o texto mesmo pede, e aqui como em Camões ou no Cântico dos Cânticos pode ser a casa, a esfera de Deus, tanto quanto uma desejada e amada pessoa real.
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