Monday, December 03, 2007

Rilke em Paris

As cidades primitivas eram, no imaginário religioso e poético, fundadas por deuses ou semi-deuses, encarregados de tal destino.
O espaço era cuidadosamente escolhido, medido, obedecendo a leis de harmonia universal, que seria perigoso vir a quebrar.
Na cidade, protegida por muralhas de adobe, de tijolo cozido ou de pedrarias miríficas, a vida era organizada em torno de dois polos: o palácio e o templo.
Um jardim fazia a transição do espaço secular para o sagrado e vice-versa, podendo ser um jardim mais natural (terreal) ou mais espiritual (celestial) sem que nada da primitiva harmonia se perdesse.
Ocorre-me citar a epopeia de Gilgamesh, a narrativa da fundação da cidade de ouro dos incas de Cuzco (por Garcilaso de la Vega) ou ainda a descrição da Jerusalém Celeste do Apocalipse de João, onde no fim dos tempos o Conhecimento (de Deus e do seu filho) e a Vida (nas árvores que para sempre darão fruto) se reconciliarão numa eternidade merecida.
Essas cidade glorificam a existência do homem com os seus deuses, o seu destino, sua função, sua vida, mesmo quando no decurso das muitas aventuras e portentosas mudanças o destino se pode revelar demasiado frustrante, para não dizer trágico.
É que mesmo a medida da tragédia acrescenta algo mais à humanidade que a sofre e por meio dela se transforma.
O imaginário da cidade primitiva acolhia a mudança, e pouco a pouco, através da ideia de mudança se instaurava um novo modelo: o do progresso, na óptica do colectivo.

O mesmo não se poderá dizer da cidade moderna.
Tomando Paris como exemplo, a Paris de Rilke, já depois de ter lido entretanto a poesia e a prosa poética de Baudelaire (especialmente o Spleen de Paris) iremos descobrir não o espaço onde se vive mas o espaço onde tristemente, anonimamente se morre, de uma morte que já nem sequer é própria, individual, mas colectiva e imprópria da dignidade humana no que deveria ser a dignidade ao mais alto grau.
Pois o direito à morte é tão sagrado quanto o direito à vida, ou mais ainda. A morte define o homem, a morte redime o homem, torna-o no que poderia ou deveria ter sido em vida. A morte faz dele um homem, mais do que o nascimento, que não escolheu. Mas a morte, ah, a morte, deveria ele ter o direito de a escolher.

Vamos então ler Rilke, na obra-prima que são OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE (trad. Paulo Quintela):
" É então aqui que as pessoas vêm viver; eu antes diria que é aqui que se morre. Hoje saí. E vi: hospitais. Vi um homem que cambaleava e caiu. Juntaram-se pessoas em volta e isso poupou-me o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se pesadamente ao longo de um muro alto e quente a que por vezes lançava a mão, apalpando, como para se certificar de que ainda lá estava. Sim, ainda lá estava."

Caminhando em frente, o narrador vê-se na rue Saint-Jaques, diante do hospital militar de Val-de Grâce, onde se adivinha que, por ironia, nenhuma piedade se poderá encontrar. Só fria indiferença.
Depois de ter indicado que "via", indica neste momento que também o olfacto o incomodará:
"A viela começou a cheirar por todos os lados. Cheirava, tanto quanto se podia distinguir, a iodofórmio, à gordura de batatas fritas, a medo. Todas as cidades cheiram no Verão."

Seguem-se outros desabafos. O narrador, Malte, confessa que só consegue dormir de janela aberta, e que pela janela entra tudo o que pode haver de mais ruidoso e incómodo na treva citadina:
Carros eléctricos, automóveis, portas que batem, vidros que se partem, alguém que sobe as escadas, gritos na rua, um cão que ladra e finalmente um galo, ao amanhecer.
Só depois o nosso herói adormece.

"Isto são os ruídos. Mas há aqui alguma coisa que é mais terrível: o silêncio (...) Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre.Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece".

Feita esta espécie de iniciação ao leitor, depois de feita a si mesmo ( a descoberta de um interior de alma onde tudo vai ter e de onde depois tudo virá a surgir ) os passeios pela cidade de Paris poderão ser mais leves. No jardim das Tulleries, por exemplo, faz sol, e nada mete medo.
A cidade, pouco a pouco, pela necessidade imposta de escrever, escrever todo o tempo, ficará reduzida ao espaço do quarto do hotelzinho onde reside. O espaço do quarto será exíguo, mas o espaço da memória que se rasga, se oferece, e se vai gradualmente recuperando, como por mão alheia mais do que por vontade própria, será um espaço desmesurado, como a vida e a morte do avô, o velho Camareiro Brigge, o último da geração a ter direito a uma morte digna, talhada à sua medida:

" Quando me ponho a pensar na nossa casa, onde já não há ninguém, parece-me que dantes deveria ter sido diferente. Antigamente sabia-se ( ou talvez se pressentisse ) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço. As crianças tinham dentro uma pequena e os adultos uma grande. As mulheres tinham-na no seio e os homens no peito. TINHA-SE, a morte, e isto dava às pessoas uma dignidade particular e um calmo orgulho.
Meu avô, o velho Camareiro Brigge, a esse ainda se lhe via que trazia dentro de si uma morte. E que morte!: durou dois meses, e eera de voz tão forte que se ouvia até lá fora na quinta".

Segue-se a descrição da velha casa senhorial, demasiado pequena para tamanha morte. E continua o desfiar das memórias, antídoto contra o medo, que a cidade de Paris instilara nele, de modo agudo e perverso. Escrever é uma salvação. E ler, como faz na Bibliothèque Nationale, no meio de tantas outras pessoas, também é grande ajuda. As pessoas "estão nos livros", não se dá por elas, não incomodam.
Assim se reconhece uma outra espécie que vive oculta na cidade, a espécie a que pertencem os poetas. Pobres, de pobreza envergonhada mas de coração altivo, ainda que receoso do que na grande cidade lhes possa vir a acontecer.

Caminhámos da cidade para o quarto, do quarto para a memória antiga de um passado que deixou de existir.
E de novo se regressa à cidade: aos pedintes na rua, às velhas ramelosas que não inspiram piedade, só repugnância, aos antiquários da rue de Seine cujas lojas atraem, são tranquilas, não deixando adivinhar grandes negócios. Ir ao museu do Louvre também parece uma ideia, mas há pessoas que só lá vão para se aquecerem e descansarem um pouco nos bancos de veludo...
Cai um nome de poeta: Verlaine.
Mas Malte comenta que não gostaria de ser esse, mas outro, "um que não vive em Paris..que tem uma casa tranquila na montanha...um poeta feliz...". Não dirá qual.

Na década em que Rilke vive e escreve esta experiência de verdadeira iniciação ( o livro será publicado em 1910 ) a Europa culta está a ser atravessada pelos furacões do Futurismo italiano e do Expressionismo alemão. Verdadeiramente expressionista é a descrição que Rilke faz, a dada altura da narrativa, do Carnaval parisiense. Nada que se assemelhe ao carnaval de Veneza descrito por Goethe, na viagem a Itália, nenhuma sombra de requinte, de elegância, de mistério nas ruas.
Ali, em Paris, a rua carnavalesca é feia, é violenta, assustadora, para um jovem Malte fugindo por necessidade ( e não por curiosidade, como Goethe ) do pobre quarto em que estava alojado porque o fogão entupira e o fumo o estava a asfixiar. Malte foge para a ruae em vez de respirar fundo, livremente, sente-se esmagado pelo excesso de vozes, de gritos, de esgares, de confetti- tudo lembrando uma dança macabra, ou os quadros mais célebres de Munch, com A Dança da Vida ou o Grito.

" Porque era Entrudo e ao cair da noite, e as pessoas tinham tempo e vagueavam e roçavam-se umas pelas outras. E os seus rostos estavam cheios da luz que vinha das barracas, e o riso escorria-lhes das bocas como pus de chagas abertas. Riam cada vez mais e comprimiam-se cada vez mais quanto mais impacientemente eu tentava avançar. (...) Alguém atirou-me aos olhos uma mão-cheia de confetti que me feriram como uma chicotada. Às esquinas as pessoas paravam apinhadas, uma metidas pelas outras, e não havia movimento de avanço na massa, só um vaivém silencioso e mole, como se se estivessem acasalando em pé. (...) Não tinha tempo de reflectir nisto, estava pesado de suor, e rodopiava dentro de mim uma dôr estonteante, como se alguma coisa muito grande me circulasse no sangue, alguma coisa que me fizesse inchar as veias ao passar. E sentia ao mesmo tempo que o ar tinha acabado há muito e que eu apenas respirava exalações que os pulmões já não queriam".

Eis as marcas da cidade moderna: sufoco da velocidade e da multidão anónima, presença do colectivo que anula o indivíduo, com o seu tempo e o seu espaço próprios que deixaram de existir. Algo que Rilke/ Malte não conseguiam suportar a não ser criando múltiplas e secretas defesas, feitas de leituras, memórias, íntimas recuperações e escapadelas. A maior seria da cidade para o castelo, em anos futuros, mais felizes, de longas conversações com Anjos, (ainda que eles mesmo terríveis, a seu modo).

Do sufoco da rua da cidade gangrenada à solidão do quarto. Aqui viverá a sua escrita, relembrando entre outros Baudelaire, o gigante de quem não se poderia escapar.
O poema que Rilke escolhe como exemplo magistral é, de Spleen et Idéal,UNE CHAROGNE: aquele em que toda a podridão do futuro cadáver da bela amante, e da própria Beleza, é posta a nú, com os cheiros nauseabundos, os ossos deformados, as larvas e as moscas que ainda procuram alimento na infindável cadeia da vida, para concluir, com crueldade:

"Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
...
Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours decomposés ! "

Em carta escrita em 1925 a um amigo, faz Rilke várias considerações a propósito dos Cadernos e da "vivência de Malte".
Escreve, entre outras coisas, que M.L.Brigge "sente a necessidade de tornar apreensível para si mesmo, por meio de fenómenos e imagens, a vida que continuamente se vai recolhendo ao invisível; encontra estes fenómenos e imagens ora nas prórias recordações da infância, ora no seu ambiente parisiense, ora nas suas reminiscências de leituras."

E finalmente, numa conclusão que deixa muito em aberto, para não dizer tudo, à imaginação do leitor:
" Este livro é para ser ACEITE, não para ser compreendido ao pormenor.Só ASSIM chega tudo a alcançar o tom autêntico e o autêntico encontro".

Paris, nos anos de 1904 a 1910, foi para Rilke a cidade da iniciação: pela nigredo, sem dúvida; mas só desse modo lhe seria possível, nessa aparente irremediável solidão a que parecia votado, descobrir no labirinto escuro da alma as recordações da infância, a memória de um passado arquetípico europeu, histórico e literário e, não menos importante o caminho do invisível, ao fim e ao cabo sempre presente, sempre à espreita, ameaçando quem não o entenda e respeite.
A chave é o invisível, a chave é a contemplação, e Paris (talvez até com a ajuda inicial de Rodin) o que fez foi ensinar o poeta a VER.
Quando partiu, a lição (a "vivência") estava assimilada (Jung diria a Anima, a Sombra estava integrada). Partiu "munido de olhos", como no MUTUS LIBER, depois de muito ler, muito trabalhar, muito convocar a protecção divina.
O imaginário de purgação da experiência citadina, pesada, dolorosa, fez da "matéria caótica, confusa" a Pedra mais sublime dos Cânticos posteriores.

(Tradução dos excertos dos Cadernos de M-L. Brigge por Paulo Quintela, in OBRAS COMPLETAS, ed. Fundação Calouste Gulbenkian )

Saturday, December 01, 2007

O Jardim de Lampedusa


Em contraste com os jardins fechados, de pedras preciosas, que são oferecidos nos textos mais antigos, podemos ter o prazer de descobrir em obras como a de G. Tomasi di Lampedusa, pelos olhos do seu alter-ego, o Príncipe Fabrizio, jardins mais humanos e mais reais, ainda que não menos carregados de simbolismo: o do amor pela terra, eterna mãe, eterna criadora, que tanto recolhe a morte como alimenta a vida.
Logo no início do seu magistral romance ( O LEOPARDO, na tradução portuguesa de J. Colaço Barreiros ) Lampedusa descreve o Príncipe a descer a escada que dava do palácio para o jardim:

" Ali, na terra avermelhada, as plantas cresciam em exuberante desordem, as flores despontavam onde Deus queria e as sebes de murta pareciam dispostas mais para impedir do que para guiar os passos...Mas o jardim, comprimido e esmagado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos, como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos sobrepunham o seu aroma apimentado ao protocolar das rosas e ao oleoso das magnólias que se apinhavam nos cantos; lá por baixo, sentia-se também o perfume da hortelã misturado com o infantil da acácia e o adocicado da murta, e do outro lado do muro o laranjal fazia transbordar o cheiro a alcova das suas primeiras flores.
Era um jardim para cegos: a vista era constantemente ofendida, mas o olfacto podia extrair dele um prazer forte, embora não delicado".

Eis um jardim oloroso, plantado para os sentidos, na perturbadora terra siciliana. Aquela em que tudo mudaria para que tudo ficasse na mesma, como a certa altura é observado.
Mas nada escapa à ironia do autor, o próprio jardim figura um tempo em decadência, e é assim que a sensualidade dos perfumes também sofrerá um revés:
"As rosas Paul Neyron que ele próprio adquirira em Paris tinham degenerado: primeiro estimuladas e depois esgotadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves côr de carne, obscenas, mas que destilavam um denso aroma quase repugnante que nenhum cultivador francês teria a ousadia de esperar".

Não, estas não são as rosas de Sharon, antes fazem dessas imagens perdidas no tempo e no imaginário dos poetas uma caricatura cruel: "O Príncipe passou uma delas pelo nariz e pareceu-lhe que cheirava a coxa de uma bailarina da Ópera".

Este é o romance de um tempo, uma terra ( ainda semi-feudal e já em grande mudança) um corpo com a sua casa e o seu jardim.
Mas até no odor da decadencia se encontra ali uma infinita saudade, um arreigado amor.

Wednesday, November 07, 2007

Jardins


O Jardim do Éden é um jardim natural, resultando do primeiro gesto criador.Tem os quatro elementos, o ar, a água, a terra,o fogo (dos luminários do céu) ; todas as espécies animais próprias de cada elemento; e passeando pelo jardim, Yahvé, o seu criador, e o primeiro casal, Adão e Eva.
Na descrição da Bíblia nota-se a abundância: é um jardim que alimenta, colhem-se frutos de todas as suas árvores, à excepção de duas: viremos a saber que são a do Conhecimento do Bem e do Mal, e a da Vida (eterna).
Esconde-se no jardim a Serpente, que induzirá ao pecado (a quebra do tabú) e levará à Queda com as suas consequências: expulsão do Jardim, consciência do limite imposto à condição humana.
Esta primeira imagem do Jardim emana de uma sociedade antiga, rural, onde os valores são os da natureza e sua fertilidade garantida por intervenção superior. Expulsos do Jardim, Adão e Eva comerão abrolhos, e já não frutos variados e sumarentos, terão de arar, semear, colher com esforço tudo aquilo de que necessitem. Esta segunda imagem é já a da vivência real do trabalho da terra, numa sociedade que tem de garantir a sua subsistência; seguir-se-ão depois, com o espaço tribal mais organizado as referencias à caça e à pesca, ou ao pastoreio (Abel era pastor, manso e sedentário, Cain era caçador, cioso do que lhe dissesse respeito; fundou a primeira cidade, deixando assim perceber que na fundação das cidades preexistem Mal e Bem, são essas as duas realidades primordiais).
É interessante verificar o contraste deste Jardim com o Jardim dos Deuses que se encontra em Gilgamesh, fechando o capítulo IX:

"À sua frente surgiu o jardim dos deuses,
com árvores de pedras preciosas de todas as cores,
maravilha de se ver.
Havia árvores de rubis, árvores com flores
de lapis-lazuli, árvores com cachos de corais gigantes
como se fossem tâmaras. Por todo o lado,
brilhando em todos os ramos, havia jóias enormes:
esmeraldas, safiras, hematites,cornalinas, pérolas.
Gilgamesh contemplava tudo deslumbrado."

Este é o Jardim que um rei-herói imagina, como tesouro da sua cidade e do seu palácio; tudo ali se contempla, nada alimenta, como no Jardim natural.
Haverá outra maneira de ver: o Jardim do Éden é um jardim "terreal", o Jardim descrito no Gilgamesh é um Jardim "celestial", depurado de toda a matéria e sua contaminação.
Contudo é significativo que já neste primeiro texto fundador, aventura do crescimento e amadurecimento de alma de um herói (definido como dois terços divino e um terço humano) o bom regresso, ainda que perdida a planta da imortalidade, seja à cidade de Uruk, a bela, a muralhada, com o seu palácio e o seu templo de iniciação, fértil de terra arada e abundantes pomares - tudo distribuído em medida e proporção.

Agrada-me especialmente, neste percurso de mitos fundadores, trazer aqui a Jerusalém Messiânica dos cristãos.
Também ela protegida por muralhas de jaspe, sendo ela feita de ouro puro, límpido como um cristal (predomina a sedução oriental da jóia e do ornamento ostensivo). Mas "humanizada" de modo diferente: é ao mesmo tempo espaço divino e humano, recupera o primitivo Éden de que se foi banido, mas devolve, com a chegada do fim dos tempos e a salvação derradeira oferecida por Cristo à sua Igreja, devolve, dizia eu, a árvore da vida, e a vida eterna, junto do rio que corre atravessando o espaço mítico final.
O conhecimento trouxe a experiência e a dôr de uma divisão que parecia irreparável. A vida trará a união, a reconciliação de eus com o se povo, a espécie humana, redimida por Cristo, ele mesmo feito carne.

Mas vejamos de que modo é descrita, no Apocalipse, a Jerusalém Futura.

"Os alicerces da muralha da cidade são recamados de todo o tipo de pedras preciosas: o primeiro alicerce é de jaspe, o segundo de safira, o terceiro de calcedónia, o quarto de esmeralda, o quinto de sardónica, o sexto de cornalina, o sétimo de crisólito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo de crisópraso, o décimo-primeiro de jacinto, o décimo segundo de ametista.As doze portas são doze pérolas, cada uma das portas feita de uma só pérola. A praça da cidade é de ouro puro como um vidro transparente.Não vi nenhum templo nela, pois o seu templo é o Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro" (21)
Com esta frase, "não vi nenhum templo nela"...se marca a primeira grande diferença em relação à cidade pagã, primordial.
Não há templo, pois não haverá mais espaço de oferendas aos deuses naturais, da terra e da vegetação.
A consciência da espécie afinou-se, a vivência religiosa é outra: Deus é um ser supremo que materializou no filho, o Cordeiro simbólico, ao mesmo tempo o sacrifício (a devoção ) e a redenção esperada.

De seguida o Anjo que fazia estas revelações a João mostra "um rio de água da vida, brilhante como cristal, que saía do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça, DE UM LADO E DE OUTRO DO RIO HÁ ÁRVORES DA VIDA QUE FRUTIFICAM DOZE VEZES, DANDO FRUTO A CADA MÊS".

Embora descrita, também ela, como cidade mineral, de metais e pedrarias, esta é a cidade da Vida, corre nela o Rio, com a sua água abençoada, frutificam nela para sempre as árvores outrora proibidas.
O Criador reconciliou-se finalmente com a sua criação.

Monday, November 05, 2007

O Sonho da Vida Eterna


A epopeia de Gilgamesh deve grande parte do seu interesse e universalidade aos motivos que a compõem.
Falámos de alguns, que caracterizam a cidade primitiva, o culto da terra fértil, a iniciação (sexual) civilizadora, o castigo sofrido por quem quebra o laço de respeito com os deuses.
Mas há um outro motivo de grande e igual interesse: o da busca da vida eterna, desenhando-se ao longo da narrativa como uma verdadeira Queste, de um Graal neste caso não Pedra, nem Taça, mas puro alimento divino.
Morto Enkidu, Gilgamesh permanece inconsolável e declara que não voltará à cidade enquanto não obtiver de um seu antepassado, possuidor de vida eterna, o segredo que assim o manteve vivo.
São várias as peripécias, antecipando muito do futuro imaginário dos romances de Cavalaria, ultrapassando obstáculos, lutando com monstros tenebrosos, para alcançar o almejado sonho de uma vida eterna que fosse partilhada com o amigo, Enkidu.
Finalmente o herói encontra Utnapishtim, o imortal antepassado.
Está inserida aqui uma narração do Dilúvio, muito interessante pela semelhança com a que nos é narrada na Bíblia, e deixa em aberto a hipótese de ter sido real esse desastre (talvez se venha um dia a encontrar a Arca de Noé que os arqueólogos ainda procuram em terras do actual Iraque). Mas esta inserção, pouco justificada a não ser para memória, não nos deve distrair do objectivo da Busca de Gilgamesh: o segredo da imortalidade.
Utnapishtim procede a uma cerimónia ritual de prurificação do herói, com banho, óleos, novas vestes que substituam as peles de animais com que surgira coberto.
Enkidu fora outrora civilizado (humanizado) por uma sacerdotiza, passando de um estado primeiro de animalidade ao estado mais humano que lhe conhecemos; Gilgamesh é agora civilizado, mas de modo inverso ao do amigo: humanizando-se também, ao perder a parcial divindade que o constituía, como herói invencível ou semi-deus.
O que ele adquire é a consciência de ser humano- humano como qualquer outro- sujeito ao sofrimento, à esperança e ao desespero, um sinal que é dado pelo facto de "ceder ao sono", algo que antes seria impossível.
Embora longe um do outro, E. morto, G. vivendo ainda, o que lhes acontece em matéria de iniciação é semelhante: humanizados, tornam-se de facto espelho um do outro.
O nosso herói recebe de Utnapishtim o segredo " dos deuses": uma planta que se encontra no fundo dos mares, "nas águas do Grande Abismo" e lhe concederá " o segredo da juventude". Mas valerá a pena?
Eis a reflexão de Utnapishim, com que termina o livro X (antepenúltimo):

"The sleeper and the dead, how alike they are!
Yet the sleeper wakes up and opens his eyes,
while no one returns from death.And who
can know when the last of his days will come?
When the gods assemble, they decide your fate,
they establish both life and death for you,
but the time of death they do not reveal."

Gilgamesh, de novo com grande coragem, mergulha, traz a planta consigo e ordena ao barqueiro que siga para Uruk, onde, para ver o seu efeito, dará primeiro a um velho um bocado da planta. Se o efeito for bom, então ele comerá também dela.Tornou-se cauteloso, algo que não era antes.
Já se refere à planta como antídoto para o medo da morte, em vez de planta da eternidade, ou da juventude eterna (à maneira do Fausto moderno).
Mas acontece o imprevisível, para descansar da viagem pousa a planta no chão, a dada altura, e uma serpente, atraída pelo seu perfume, foge com a planta. Ao desaparecer muda de pele: sinal de que se tinha rejuvenescido...
Gilgamesh senta-se a chorar de desgosto: o que fará agora? Todos os seus esforços foram em vão, perde a planta para uma serpente...( algo aqui que nos lembra a eternidade de uma outra serpente, a do bem e do mal, do Paraíso judaico-cristão).
O livro acaba com o regresso a Uruk, e a mesma descrição inicial da cidade belíssima, protegida nas suas muralhas, o templo inegualável dedicado a Ishtar, a abundância das palmeiras, dos jardins, dos pomares, dos palácios e templos gloriosos, o mercado, as casas, as praças...
De uma busca divina chegamos a uma lição bem humana, com um herói que se tornou mais humilde, aprendendo que nada é eterno, tudo morre, e ele morrerá também.
Que tenha sido a serpente a causadora do seu último mal....levava-nos a outras considerações.
Uma lição nos é dada: que o sonho da eternidade não passa disso mesmo, um sonho.

Saturday, November 03, 2007

Uruk


Uruk, a cidade primitiva, erguida dentro de forte muralha de tijolo cozido, residencia da deusa Ishtar que nenhuma outra iguala:
" uma milha quadrada é cidade, uma milha quadrada são pomares, uma milha quadrada são poços, bem como o terreno aberto do templo de Ishtar. Uruk é constituída por três milhas quadradas mais o espaço aberto".
As suas fundações foram lançadas por Sete Conselheiros, e nela reina Gilgamesh, que passou por toda a espécie de sofrimentos e experiências, narradas a seguir.
Os habitantes de Uruk, cansados de tanto perder filhos, filhas, sossego e bens da sua cidade, pedem à deusa Aruru, criadora da espécie humana, que crie um outro homem, igualmente poderoso, que faça frente a Gilgamesh, que os atormenta.
A deusa lava as mãos, pega num bocado de barro e atira-o para longe. Assim foi criado Enkidu, o primitivo, de corpo coberto de pelo, cabelos compridos luxuriantes, sem pátria nem companheiros. Alimenta-se de erva com as gazelas, bebe água dos riachos com os animais.
Certo dia um caçador descobre Enkidu e assustado pede ajuda a Gilgamesh. Perante a descrição feita, o rei, que era sábio, aconselha-o a levar o homem a uma sacerdotisa do templo de Ishtar, para que ela o civilize, por meio da sua arte do amor.
Shamkat é o nome da sacerdotisa que, ao iniciá-lo na arte do amor, o modifica e o conduzirá depois a uma tenda onde aprenderá a comer pão, beber cerveja, como era costume entre os civilizados:
"Eat the food, Enkidu,
the symbol of life.
Drink the beer, destiny of the land".
Depois de comer e beber Enkidu ungiu-se com óleo e " he became like any man": tornou-se igual a qualquer homem e, levado a Gilgamesh, virá a ser o seu mais fiel companheiro e amigo.

Sabemos então que na cidade de Uruk o culto da deusa é de prostituição sagrada, e que esse é o meio de civilizar os homens (bárbaros) que lá chegam, tanto quanto o de garantir a fertilidade da terra e a renovação das estações. Uruk é uma cidade de proveniencia divina, os seus heróis são semi-deuses, daí que não se estranhe que a ideia do repúdio da morte venha a ser um dos fios condutores da narrativa.
A cidade primitiva é uma cidade rural, dentro de muralhas que protegem o palácio e o templo e ainda a terra cultivada, que dará centeio e milho, e terá como ornamento jardins e pomares variados. Predomina, no templo, o culto da terra fértil, da Mãe-Terra ou Grande-Mãe, cujo animais votivos são a vaca, ou o touro, como no caso da antiga epopeia de Gilgamesh. Por terem morto o touro sagrado serão castigados, o rei e o seu fiel companheiro Enkidu, tendo um deles de morrer em troca ( e será Enkidu).
Sacrifícios animais ou humanos, para que com o sangue sacrificial se preste culto aos deuses, garantindo a sua protecção e a renovação sazonal das estações, serão referidos nos antigos mitos fundadores, ao longo dos tempos, até serem modificadas tais práticas com um novo conceito da dignidade humana e do respeito que merece.
Nos contos populares, de que a recolha dos irmãos Grimm dá testemunho, há ainda a memória de ritos sacrificiais, incluindo o incesto, a antropofagia, etc.








Gilgamesh



Nova tradução inglesa, em verso, que se lê com a facilidade de uma novela fascinante.
O mérito é de STEPHEN MITCHELL, de quem já se conhecem outras versões de clássicos como o TAO TE CHING, THE BOOK OF JOB, BHAGAVAD GITA e a SELECTED POETRY OF RAINER MARIA RILKE.
(Ver stephenmitchellbooks.com)

Mais uma vez, neste texto, nos deparamos com a memória viva de um mito: Gilgamesh, herói dos tempos bíblicos, rei poderoso que tudo e todos vence, em tudo manda, e que a dado momento inicia uma viagem especial em busca do seu alter-ego, o homem natural, nascido e criado na floresta e não na cidade poderosa já corrompida pelos vícios que a civilização trouxe consigo.
Uma primeira lição, ancestral: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Uma segunda lição: o poder (a absoluta racionalidade, razão vs. emoção, numa leitura simples) não substitui, no homem, a necessidade vital da alma, a entidade superior que permite e condiciona a verdadeira existência. Sem alma não há vida humana, citadina, social, que seja fértil. Daí a necessidade de Gilgamesh ir procurar Enkidu, que virá a ser o companheiro perfeito, ao ponto de se sacrificar por ele ( o que no mito significará uma suprema integração).

Como observa um dos críticos da versão deste texto de há 3500 anos, não nos podemos considerar cultos sem o ter lido, depois da Bíblia, de Homero e de Shakespeare...
A civilização floriu no que hoje é o Iraque, naquele espaço situado entre o Tigre e o Eufrates, onde Hammurabi escreveu o seu código de leis e a épica de Gilgamesh, a mais velha história do mundo, foi escrita em tabuínhas de argila e vezes sem conta narrada, até chegar assim aos nossos dias.
Gilgamesh reinou na cidade de Uruk da Mesopotâmia, por volta de 2750 A.C.
Na epopeia diz-se que teve um amigo íntimo, Enkidu, um "homem nú, selvagem, que teria sido iniciado na civilização graças à arte erótica de uma sacerdotiza de um templo".
Aqui está a primeira forma do mito do "bom selvagem", marca que reencontraremos na TEMPESTADE de Shakespeare, onde o selvagem Caliban é iniciado por Próspero no modelo da civilização (mas sem sucesso). Rousseau, séculos mais tarde recupera a ideia, mas como vemos  no imaginário humano tem matriz bem antiga.
Com Enkidu, Gilgamesh vence os monstros com quem tem de lutar para se manter reinando vitorioso. Mas Enkidu morre, e Gilgamesh, inconsolável, parte para uma viagem em que espera encontrar o único homem que lhe pode dizer como vencer a morte.
Este é um dos núcleos fundamentais da história: a morte, o medo da morte, única vencedora de toda grandeza do percurso humano. Mas há outros, e em íntima relação com o que sentimos, somos ou não somos, relativamente aos grandes motivos universais do amor, da fragilidade da vida, da ambição de saber.
O rei herói desta epopeia é talvez mais um anti-herói, que aprende à sua custa, como num Bildungsroman, que a infinita prosápia do poder não leva a nada, só ao grande sofrimento de descobrir como é limitado o momento da nossa vida, seja qual fôr a condição em que se viva, de maior ou menor grandeza.
É uma história que contém uma moral: a da cidade civilizada pela fraternidade, temperança e sabedoria. O texto começa e acaba com a cidade e, entre o seu princípio e o seu fim, decorre a aventura da humanidade com os seus fundamentos, naturais, religiosos e sociais.

Thursday, November 01, 2007

Mitos da Mesopotamia


1.
Os Mitos são eternos?
A tradição parece indicar que sim.
Embora o mito seja uma "narrativa" fundadora, ergue-se sobre uma estrutura arquetípica, universal, que desde a figuração mais antiga até aos nossos dias ora submerge, ora reaparece, ainda que sob outras roupagens (outras formas).
Contudo a estrutura pemanece.
Vem isto a propósito da minha leitura recente de um antigo mito da Mesopotamia, em tradução de Stephanie Dalley:
THE DESCENT OF ISHTAR TO THE UNDERWORLD.
Nesta descida aos Infernos a travessia é longa, sendo a deusa (que podemos assemelhar à Perséphone dos gregos,deusa da fertilidade raptada por Hades e que este devolve periodicamente à terra e à sua mãe, Deméter).
Ishtar é obrigada a atravessar várias PORTAS enquanto é despojada gradualmente de todos os seus atributos. Entra-se nú nos Infernos, como se entra nú na última e definitva morada, ao ser devolvido à terra, ao pó de que fomos feitos.
Esta descida é no entanto uma morte simbólica, que permitirá depois uma ressureição: a da deusa, como a da vida da natureza, entretanto perdida ao ausentar-se a Grande Mãe que a deusa Ishtar personifica.
Ishtar desce aos Infernos buscar o seu amante, o seu amado,Dumuzi (ou Tammuz, noutras versões, deus ligado aos meses de Junho e Julho).
A história remonta à Idade do Bronze, surge na Babilónia e na Assíria e mais tarde na biblioteca do palácio de Ninive. É algo diferente da versão suméria da descida de Inanna, texto mais antigo e mais longo e detalhado, em que se vê que Dumuzi periodicamente morre e ressuscita, sendo causa da mudança das estações e manutenção dos períodos de fertilidade da natureza.

Ishtar resolutamente dirige-se à "Terra de não-Regresso", à casa de que não se regressa, onde o alimento é pó e lama.
Chegada ao portão, guardado por Kurnugi, diz-lhe que o abra ou choverão desgraças sobre o mundo, assolado para sempre pelos mortos e pela morte.
Com autorização da Rainha dos Infernos (neste mito a entidade é feminina, ao contrário do mito grego) Ereshkigal, irmã de Ishtar ( uma é a da vida luminosa outra é a da morte das trevas) será aberto o portão.

Na primeira porta o guarda tira-lhe a coroa da cabeça, a isso obrigam os ritos de passagem.
Na segunda porta o guarda tira-lhe os brincos das orelhas.
Na terceira porta tiroa-lhe os colares do pescço.
Na quarta porta tira-lhe as jóias do peito.
Na quinta porta tira-lhe a corrente de pedrarias à roda da cintura.
Na sexta porta tira-lhe as pulseiras dos pulsos e dos tornozelos.
Na sétima porta tira-lhe as belas vestes que lhe cobriam o corpo.

Este despojamento de todos os elementos exteriores é feito cumprindo os ritos da Senhora da Terra, conforme o guarda vai explicando a par e passo, porta a porta.
Segue-se, com a ausencia da deusa Ishtar, um período de grande infertilidade sobre a terra:
o touro e o burro não cobrem as suas fêmeas, o jovem não procura a rapariga, fica a dormir sozinho no seu quarto, e a rapartiga fica com as suas amigas. rapariga dorme com as suas amigas. Foi necessária uma intervenção superior para que Ishtar fosse "benzida com as águas da vida" e se procedesse ao caminho inverso, em que a deusa volta a atravessar as portas onde lhe são devolvidos tos os seus paramentos.
Na agora primeira porta (que fora a última) entregam-lhe as vestes que a cobrem, na segunda porta as pulseiras de pulsos e tornozelos, na tereira porta o cinto de pedrarias, e assim por diante.
Na sétima porta, finalmente, colocam-lhe na cabeça a sua grande coroa.

O texto deixa supôr que o " amante da sua juventude", Dumuzi, lhe foi devolvido, "lavado com água pura, ungido com óleos puros, envolto em vestes vermelhas, ao som de um tubo de lapis-lazuli" ( pensemos numa flauta, como é o caso nos ritos de Diónisos).

Vários elementos nos chamam a atenção: o ritual de despojamento evoca outros, como o que encontramos no RICARDO II de Shakespeare, quando ao rei são retirados todos os símbolos do seu poder e grandeza, no momento em que abdica da coroa. São os símbolos que desenham o chamado "segundo corpo do rei", o corpo místico de que deriva a força supostamente concedida por uma entidade divina, superior. E naturalmente a "entronização" posterior de Ishtar é a mesma que simbolicamente se verifica com as coroações reais, e religiosas (Bispos e Papas, por ex.)

Também é interessante a insistência no número 7, em variadas tradições: os 7 dias da criação, os 7 planetas, e regra geral nas tradições esotéricas o facto de resultar da soma do 3 (o chamado plano divino) com o 4 (o plano da criação); o 7 representaria então o mundo como totalidade no interior do 10, a perfeição da década, (que resulta da adição de um zero à unidade).
Este número é ambivalente, pode representar tanto o bem como o mal, na medida em que contém a tríade celeste e o quaternário terrestre, elementar ( os 3 princípios, os 4 elementos). Um belo exemplo seria trazer aqui a tradição bíblica do Apocalipse, e o SÉTIMO SELO, de que um artista como Ingmar Bergman se soube apropriar. É isso que fazem os grandes artistas, apropriam-se de símbolos, arquétipos, mitos e sobre eles erguem o seu outro mundo.

2.
Darei então um exemplo de como a travessia de portas, sendo a porta, como "passagem" elemento tabú, é tratada por Bartók, no libreto inspirado no conto popular do CASTELO do DUQUE DE BARBA Azul.
São 7 as portas que Judith, demasiado curiosa, insiste em atravessar, e com isso perderá a vida.
Diz-se no Prólogo:
"ao cantar a melodia antiga/ quem sabe de onde provém?/ouvi e maravilhai/ senhoras e senhores!...antigo é o castelo e antigo é o conto que nos fala dele".

Na descrição da vasta entrada do castelo vemos ao alto da escadaria 7 portas enormes, 4 face ao público, as outras colocadas de lado. Já aqui o 4 e o 3 são desenhados, com a sua carga simbólica, que o 7 vem confirmar. A entrada do castelo é descrita como vazia e escura, mais parecendo uma caverna talhada no "coração" de um rochedo.
Nova imagem simbólica: estamos num "centro" iniciático, como pouco a pouco viremos a entender.
Judith chega com o Duque Barba Azul, que a chama e lhe pergunta se não tem medo. Ela estranha que não haja janelas, nem luz do dia., ele reponde nunca e "nunca mais".
Dali não se sairá, como em regra nãose sai do escuro reino dos mortos.
Barba Azul pergunta que razão levou Judith a querer vir com ele, e ela exclama que "aquecerá o mármore frio/ com o seu próprio corpo vivo", e mais, "encherá de luz aquele triste castelo", "rasgará as muralhas,/ o vento soprará por elas/ a luz entrará " e finalmente tudo brilhará como ouro.
Barba Azul responde que nada pode brilhar naquele castelo.
Judith repara então nas 7 portas trancadas e pede-lhe que as abra.
Uma após outra as portas serão abertas, enquanto se ouve um suspiro de angústia exalado pelo próprio castelo.
A primeira é a câmara de tortura do Duque, na segunda encontram-se escudos e armaduras que são brasão do castelo, na terceira encontram-se montanhas de ouro e pedras preciosas, tesouro do castelo, na quarta Judith desbore o jardim secreto do castelo, com lírios gigantes, rosas perfumadas, cravos de beleza nunca vista. Mas as flores estão manchadas de sangue, e o Duque não responde quando Judith lhe pergunta quem regou com sangue aquelas flores.
Barba Azul tinha-lhe dito, ao entregar as chaves das últimas portas que ela NÃO DEVERIA perguntar nada; e agora ela estava a quebrer esse tabú com uma curiosidade insistente e mal recebida por ele.
A quinta porta revela um reino espaçoso, com vista deslumbrantes de "florestas de veludo, riachos prateados, altas mntanhas azuis...".
Percebe-se que aquele momento, em que Barba Azul lhe diz que tudo é dela, é o momento de não pedir mais nada.
Mas Judith quer ver todas as portas abertas. Diz-lhe "ainda falta abrir mais duas".
De nada serve que ele implore, prevenindo que o castelo depois deixará de brilhar, ela não resiste à muita curiosidade.
A sexta porta deixa ver um lago de águas paradas, que são lágrimas, mutas lágrimas, como o Duque lhe explica. Só então Judith abraça o marido, que lhe pede de novo que não faça mais perguntas e se limite a amá-lo.
" Abre a sétima e última porta!
Adivinhei o teu segredo, Barba Azul.
Sei o que estás a esconder.
...
As tuas primeiras mulheres sofreram
brutalmente assassinadas.
...
Abre-me a última das tuas portas!"

Barba Azul entrega-lhe a chave da sétima e última porta, para que Judith veja as suas anteriores mulheres : são 3, sendo ela então a quarta ( o 4 da materialidade).
Coroadas, cobertas de jóias, aproximam-se enquanto o Duque cai de joelhos prestando-lhes homenagem.
Segue-se a narração do mistério, feita por Barba Azul:
A primeira mulher foi encontrada ao nascer do sol, a segunda ao meio-dia, a terceira ao pôr-do-sol, e a cada uma pertence o momento de que são soberanas: aurora, dia, poente.
E conclui, para Judith: tua é agora e para sempre a noite.É para ti a coroa de diamantes.Daqui em diante tudo é treva, treva, treva.

Assim se conclui o conto de Judith e as sete portas- título que poderia ter sido o da ópera.
O Duque é o guardião do espaço mítico, que não pode ser violado. Judith quebrou o tabú, não teve remissão.
Por outro lado, o facto de ela ser a quarta mulher, e transportar a noite, a treva, faz dela, neste libreto, o símbolo do Eterno-Feminino que o homem procura e não entende, recusando-o, como memória antiga que é dos primitivos cultos da terra fértil que era preciso regar com sacrifícios.


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Monday, October 22, 2007

Shekura


Chegados ao fim do romance de Pamuk ( descoberto o assassino misterioso, ultrapassadas as discussões sobre a arte e seu melhor serviço, seguindo a tradição antiga ou abrindo portas às inovações trazidas do Ocidente ) vemos como foi importante a história de amor que enredara Black e Shekura nas teias do desejo e da hesitação, com um casamento formal mas não consumado.
Resolvidas as várias questões prévias que alimentavam o enredo, é de novo Shekura que surge como figura mais forte, carregada do simbolismo que é próprio do Eterno Feminino : mulher, amante, mãe, assim é ela descrita no capítulo 59, o último, que tem o seu nome.
Finalmente, como a Sulamita, se entrega ela aos amores do seu amado, que lhe corresponde inteiramente. Em pormenor são descritas as longas tardes de paixão.
Contudo ao envelhecer é como Mãe que deseja ser vista: mulher com o filho mais novo ao peito, a quem dá de mamar, e o outro a seu lado, como compete a um de maior idade. Neste seu desejo, que seria de um retrato que não virá a ter, se projecta a sua dimensão mais real (e que só a arte de um retrato poderia consagrar) de Femino Eterno, de força primordial da criação.
A mulher dá a vida, e é a consciência da vida que confere eternidade ao momento que passa.

Sunday, October 14, 2007

Pamuk e o corpo da Sulamita


Comecemos por ler o Quinto poema do Cântico dos Cânticos na bela tradução de José Tolentino de Mendonça para situar a simbólica do corpo da Sulamita tal como surge nesse texto e o tratamento que Pamuk dará ao corpo da amada, no seu romance, situado na Turquia antiga, do século XVI .
Cântico dos Cânticos,
Quinto poema, VII

"...quão formosos são teus pés nas sandálias
filha de príncipe
as curvas dos teus quadris parecem colares
obra das mãos de um artista
teu umbigo uma taça redonda
que o vinho nunca falte
teu ventre monte de trigo
cercado de lírios
teus seios dois filhotes
gémeos de gazela
teu pescoço torre de marfim
teus olhos as piscinas de Hesbon
junto às portas de Bat-Rabim
teu nariz como a torre do Líbano
voltada para Damasco
levanta-se tua cabeça como o Carmelo
e teus cabelos côr de púrpura
um rei trazem cativo dos seus laços


como és bela como és desejável
amor em delícias
semelhante à palmeira é o teu porte
cachos de uvas são teus seios
Pensei vou subir à palmeira
vou colher dos seus frutos
sejam teus seios cachos de uvas
o hálito da tua boca perfume de maçãs
tua boca guarda o melhor vinho
que na minha se derrama
molhando-me lábios e dentes".

Luciana Stegagno Pichio observa num dos seus ensaios como as descrições poéticas da mulher, nos Cancioneiros medievais da lírica de Amigo e de Amor, raramente se demoram deste modo na descrição do corpo da amada. E quando o fazem o corpo é visto de cima para baixo, com destaque para a cabeça e o peito em alusão discreta (olhos, boca, seios) e só muito raramente repetindo este modelo do Cântico dos Cânticos, de grande sensualidade : permite ver o Amado aos pés da sua rainha, acariciando, à medida que fala, o corpo que venera dos pés à cabeça, como adorando nele a manifestação da própria vida, da Árvore da Vida.
As metáforas, em que prevalecem o vegetal e o animal, sublinham bem o que há de instintual neste desejo, neste impulso que transforma o texto num dos mais lidos e comentados ao longo dos tempos, ora como emblema da paixão de Cristo pela sua Igreja, ora como delírio místico dos santos que nele encontram a perfeição da alma na união ao seu Criador, ora a perfeição da Pedra alquímica ( como é o caso da Aurora Consurgens, escrito atribuído a S.Tomás de Aquino e estudado por Jung e M.L.von Franz).
A palmeira a que o amado sobe, na suprema entrega ao corpo da Sulamita , surge algumas vezes nas ilustrações dos tratados medievais de alquimia. E neles representa a Árvore da Vida. Salomão e a Rainha do Sabá - Conhecimento e Vida-prefiguram assim, neste encontro ao mesmo tempo sublime e sensual, a união de opostos que de algum modo regenera e redime o crime da Queda no primitivo Éden.
O primerio par, de Adão e Eva, é sublimado neste segundo par, de Salomão e Sulamita. E se no Génesis o conhecimento do corpo era tabú e foi "pecado", no Cântico dos Cânticos é o conhecimento do corpo que dá a redenção, amor e desejo fundidos num só só acto de entrega.

Black, no romance de Pamuk ( de que já saiu a tradução portuguesa na editora Presença) encontra-se com Shekura, a amada, sob o signo de uma romãzeira, e mais tarde, já convencido de que haverá correspondência ao seu amor, pede um encontro que seria mais definitivo.
O encontro dá-se na casa do "judeu enforcado", entra-se nela por um jardim vazio, "cheirando a morte", descrição bem diferente do perfumado jardim da Sulamita.
Shekure tapa discretamente o rosto com o seu véu, e Black ao chegar, na quietude da casa pede-lhe que retire o véu, para a pode ver melhor. Esperar muitos anos por um tal momento. Black demora-se no rosto e nos olhos da amada, que é agora uma mulher amadurecida pelo casamento e pela maternidade. Abraçam-se, "sem sentir culpa", nas palavras de Shekura. Beijaram-se e o mundo pareceu banhado de uma luz suave, irradiação do próprio sentimento de amor: "como se o mundo inteiro mergulhasse numa luz divina".
Chegamos então à diferença do que acontece com a Sulamita e o que vai acontecer aqui, neste capítulo 26:
Black acaricia os seios de Shekura, mas não os beija, como ela desejava, demasiado atrapalhado para isso, e tomado de desejos mais rápidos e fortes: puxa-a contra si e fá-la sentir a " sua masculinidade endurecida", o que de início não a inquietou. Mas o que se segue corre mal, Shekura não se dispõe a satisfazer todos os desejos do amado, e eu poupo o leitor aos pormenores.
Foi como se o fantasma do judeu enforcado tivesse amaldiçoado aquele lugar, não permitindo mais do que uma directa e algo grosseira exposição do desejo de Black pela sua Shekura.
Haverá aqui algum oculto jogo de palavras com a Shekina, o rosto feminino de Deus, na tradição da Kabala? A Shekina que, afastada do Éden, perdida no mundo da materialidade, se lamenta em busca da unidade perdida?

Da perfeição dos pés da Sulamita, ao seu pescoço torneado, à cabeça de altivo porte construiu o rei-poeta um edifício, uma torre de grande nobreza, a do corpo que suporta, com a dádiva da vida, o monumento da Criação.

Quanto a Shekura:
O encontro com Black não projecta idêntica energia (uma romãzeira invernosa e melancólica, uma casa amaldiçoada) mas somos levados contudo a uma certa indulgência perante o comportamento que chocou de início a amada e Black tenta ele próprio compreender melhor; subtil artista, capaz de esperar longos anos por Shekura e levado num impulso a tratá-la como uma prostituta, a saber, nas suas palavras " como tendo perdido todo o sentido do decoro e autocontrole por ter dormido com todo o género de mulherio barato, da Pérsia a Bagdad".
Ao longo do capítulo 27 alguma coisa se corrije.
E É então Shekura que, invertendo o processo da descrição de um corpo de amada, pergunta a Black, já recomposto:
Ainda sou bonita? responde depressa.
Ele vai então dizendo o que ela pede (repare-se, é no dizer, não no fazer, que reside o maior encantamento; a sugestão da palavra, tão forte quanto a da imagem, no caso da pintura).
E a minha roupa?
ele diz-lhe.
Cheiro bem ?
etc.
Foi tão bom o noso abraço de há bocado, conclui então ela. E foge à nova tentativa de Black de recomeçar os seus jogos de amor.
Fora delineado, neste final de capítulo, o denominado "jogo de xadrez do amor", no dizer de Pamuk.

Wednesday, September 19, 2007

Um forno alquimico



Este e os outros desenhos anteriores são figuras frequentes nos ms. herméticos em que se deseja, pela imagem, abrir o sentido do texto.

Fases da Obra



O vaso do Graal e o sol figurando a sublimação,
em baixo as fases antecedentes, da albedo e da rubedo: rosa branca e aurora vermelha.

Fases da Obra



A árvore dos filósofos crescendo e transformando-se no nterior da terra-mãe, o vaso hermético.

Do Splendor Solis



cauda pavonis

do Rosarium Philosophorum



A Ablução dos filósofos ou Purificação.

A Pedra filosofal é andrógina, pois representa uma união de opostos.
A água em que se dissolve para se purificar é uma água que cai do céu, é divina, daí que se diga que esta é a fase da verdadeira sublimação.
Nas figuras seguintes ver-se-ia a "alma" da Pedra ascender, alada, ao céu.

Monday, September 17, 2007

Libro del Tesoro


Libro del Tesoro. fecho por mi D. Alonso que soy de España.

Esta é uma cópia desconhecida, até à data, que se encontra na Biblioteca da Ajuda, incluída numa miscelânea manuscrita juntamente com outros textos alquímicos.
Para melhor compreensão devemos ler, como disse num post anterior, os estudos de Luanco e de Juan Garcia Font.
Das notas ao Libro del Tesoro ó del Candado, o primeiro texto que ele aborda no volume de 1889, escreve que são conhecidos dois códices, indevidamente atribuídos ao Rei D.Afonso o Sábio: um está guardado na Biblioteca Nacional e foi descrito por D.Tomás António Sánchez; e o outro está na Academia Sevilhana de Buenas Letras, divulgado por D.José Amador de los Ríos.
Luanco faz uma transcrição anotada de ambos, colocando-os lado a lado na página para que se vejam as diferentes variantes .
Já no volume de 1897 um terceiro tratado é acrescentado a estes, e igualmente transcrito: o do códice de Palomares, sendo que neste encontro as semelhanças que farão do nosso ou uma cópia sua ou uma primeira versão, algo que merece ser estudado.
A D. Francisco Javier de Santiago Palomares pertencem os três tomos en folio, manuscritos "com a formosa letra espanhola do calígrafo Palomares..."em que se encontra outra versão do Livro do Tesouro, juntamente com uma preciosa quantidade de outros tratados alquímicos de autores de renome. Luanco considera esta a mais copiosa colecção alquímica jamais encontrada entre as espanholas que conheceu.
Luanco observa ainda que os volumes não foram numerados e é possível que não sejam os únicos saídos da mão do copista:"No están señalados los tres volúmenes con los números ordinales y acaso no séan los únicos que salieron de la mano del pacientísimo copista".
O mais interessante é ainda verificar o interesse que o copista demonstrou pela matéria alquímica ao copiar e traduzir, do latim e do francês para castelhano, os outros textos constantes destes volumes.
Tendo sido o autor de uma Arte Nueva de Escribir, foi-lhe fácil, nalguns casos, pôr em verso a matéria traduzida.

Deste modo veremos Luanco transcrever, para melhor comparação de variantes, o códice de Palomares, que ele considera o mais completo, contendo descriçoes e estrofes que faltam nos de Madrid e de Sevilha. Ao todo contam-se 77 oitavas, número muito da preferencia do Rei Afonso X (mas não esqueçamos que se trata de uma atribuição, ou como tal considerada até à data pelos especialistas).
Segundo Amador de los Rios o autor deste livro do Tesouro foi o famoso D.Enrique de Aragão, Marquês de Vilhena.

Quanto ao noso códice, é proveniente da Biblioteca do 2.Conde de Redondo, D. Tomé de Sousa (o que se vê pelo sinal da guarda).Esta biblioteca foi vendida pela sua viúva, depois do terrmoto, ao Rei D. José e integrada na Biblioteca Real.

Logo de início, e como era habitual entre os adeptos, para se resguardarem de possíveis acusações, o autor agradece a Deus as grandes misericórdias que lhe concedeu, a sua santa fé e e o alto bem do conhecimento da "pedra dos filósofos". Citando Salomão, recorda que não há Sabedoria sem bondade- daí que, mercê da Pedra, se tenha dedicado a muitas obras de caridade. Para que os segredos do Livro não caissem em mãos indevidas escreveu o autor em versos :
" Porque yo dixe ca syendo comun llegaria a manos de homes no buenos; y porque sepades en como fuy sabido deste alto saber, yo vos lo diré en eroicas, ca sabed que el verso face excelentes y mas bien oydos los casos".
Ainda nesta apresentação comenta que com este grande Tesouro aumentou os seus bens, guiado pelo seu Mestre. A referencia aos bens materiais proporcionados pela Pedra Filosofal aumentaria certamente a curiosidade de todos os que viessem a ler este Tratado. Mas o bom tom mandaria que o "trabalho" fosse iniciado em nome de Deus:
" En el Nome de Dios face principio la obra".
Das terras de Egipto chegou a notícia de um sábio astrólogo e bom profeta de feitos vindouros.O rei envia-lhe um mensageiro, convidando-o para a sua corte:
" aberes,faziendas, y muchos dineros
allí le offreci con sana intencion".

Vem então de Alexandria o sábio generoso, que avisou não querer ouro, nem prata mas apenas servir com boas graças o rei que o procurava. E diz o rei:
"La piedra que llaman philosophal
sabia facer, y me la enseño
ficemosla juntos; después solo yo
con que muchas veces crecio mi caudal
e viendo que puede facerse otro tal
de muitas maneiras mas siempre una cosa
yo vos propongo la menos penosa
por más excellente, y mas principal".

De notar que há muitas maneiras de fazer a Obra, tal como haverá muitas cores a marcar os sucessos, e muitos nomes a designar a Pedra.
Em seguida refere-se que os ensinamento não provieram de caldeus, nem de fenícios, nem de árabes, egípcios, sírios, indianos, sarracenos- nenhuma das gentes do Oriente. Talvez para afastar fantasmas de magia, que sempre acompanharam o imaginário relativo à Arte alquímica. Explica então:
"Ficieran mi obra, yberos tan buenos
Que honran las partes de nuestro occidente".

O segredo será transmitido em verso e em cifra, sendo esta a maior dificuldade que o adepto terá de vencer. Até hoje ninguém entendeu a cifra com que se fecha a primeira parte do tratado.
De estrofe em estrofe vai o autor resumindo a essencia da sua Arte.
Os vários nomes da Materia Prima da Pedra, com as várias qualidades que lhe são conhecidas, sempre desenhadas em pares de opostos: húmido e seco, representando as duas vias possíveis, que formam o um e o todo: "ca en un singular/contiene dos cosas de una vegada".
Assim encontramos o quente e o frio, o homem e a mulher, a água e a terra, - e de todos estes contrários a imagem de um "matrimónio" que já Hermes definira como sendo de Céu e Terra.
Chega-se à Quinta-Essência que é "essencia de todo /porque esta materia es en tal modo/ ca todas las cosas viene à componer".
Materia prima, "antigo caos", quinta-essencia : a Pedra resulta da sublimação desta primeira massa confusa da qual tudo,vegetal, mineral, animal, no universo criado, se origina.Este é o primeiro dos olhares dos sábios sobre o mistério da criação do universo.

A descrição dos utensílios é a que normalmente se encontra desenhada, ou apenas referida:
um vaso esférico de vidro ( que muitos denominam de útero,de ventre ou de matriz ), um tacho de barro onde o vaso é metido, um forno de barro, um fogo lento, de lenha, para a cosedura secreta.
No vaso de vidro foi colocado mercúrio: é ele, o produto lunar ( a matéria húmida da obra ) que terá de ser unido ao enxofre solar e seco em posteriores operações.
A esta primeira parte de trabalho da materia chama o autor "tierra/ sulfur,muger, calido y seco...Penélope,...viuda palida y flaca". Por uma razão, terá de dar-se logo a conjunção com os outros elementos ( opostos ) que a completem, em partes iguais.
Teremos então a marca da nigredo, o negro, indicativo da "corrupção" da materia primeira, a larva que se transformará em borboleta alada ( as várias cores, e a representação da Pedra sublimada, pois ganhou asas que a elevam da terra ou da água, conforme o caso ):

Veredes la obra en la su negrura
Trocando aquel ser de como nació
ca no será ya la cosa que obró
en su principio la Madre Natura.
....
Non vistes la carcel que fiço de seda
para si el gusano adonde murió
e alli su cadaver por muerto fincó
en fuesa que fiço adonde se enreda
ca la corrupcion en este non veda
de le resurgir en forma distinta
de la su primera, pues naçe y se quiere
vivo, e con alas en forma mas leda".

Na vida da Obra nasce um espírito novo a partir de uma nova substância, marcada pela côr negra.
Surgirão em seguida muitas outras cores, designadas pelo termo de cauda pavonis e que o autor descreve deste modo:

" Despues de pasada aquesta color
vereis otras muchas en sus diferencias
ca son semejantes en sus aparencias
al Argos, y al Iris en su resplendor
Ca la sequedad del liquido humor
face ser esto de varia pitura
fasta llegar à cierta blancura
adonde aumentad un poco el calor".

Da nigredo e da cauda pavonis à albedo, o branco da sublimação desejada, indicando a perfeição da Pedra:

" Ca à la fizacion entonces se obra
e no puede ser jamas desunida
aunque mil años fuese escondida
porque la Union entonces se cobra".

A transmutação continua, indicada pelas cores amarelo-citrino (citrinitas) e vermelho, ou neste caso "roxo muy puro (rubedo), terminando a Pedra por fixar-se no corpo de um rubi.
Outras indicações foram deixadas, mas significam o mesmo processo de transmutação da albedo à rubedo: elixir de prata, para o branco, pedra citrina para o ouro que se deseja obter no fim.

Se desejar a continuação da sua Obra, deve então o adepto prosseguir calcinando a Pedra, agora colocada em vasilha de barro tapada por outra igual ed eixada a cozer em fogão de lenha.
Como se tudo voltasse ao princípio, da Pedra se regressa ao pó (da calcinação), às cinzas, cujo poder terá sido aumentado de tal forma que a materia se torna divina, quinta essencia "que a todo se aplica,e todo es potencia/ e ser de la cosa a do se encamina".
Mágica qualidade a deste princípio da Natureza transfigurada pela mão do alquimista:

" En este principio de Naturaleza
no es oro, ni plata, ni otro metal
ni forma sujeta a algun vegetal
mas disposición que a todo endereza.
Si al oro se aplica,del toma firmeza
para convertir en oro las cosas.
Si al home lo mismo por obras famosas
le da sanidad con suma entereza".

Mudou-se então a matéria em Elixir de longa vida, a outra variante tão procurada, tão ambicionada quanto a riqueza acrescentada do ouro pelo toque do ouro.
Ao caminhar para o fim da lição, deixa o autor a indicação da Pedra, como tal, do Elixir, se essa fôr a escolha, e mais um último segredo: o da projecção, a saber do aumento proporcional da quantidade de Elixir, ou de Pedra calcinada que se deseje obter.
Basta um grão para garantir saúde, sorte, fortuna...

"A todo se aplica, e todo convierte
en un natural bien complesionado
un grano partido deaquesto es tomado
por boca le face al home ser fuerte
al flaco, e debil le pone de suerte
que tanta salud no tuvo ninguno.
Si el tiempo que à todos es importuno
a este le lleva sano à la muerte.

Finis laus deo "

Repare-se na fina ironia do último verso, recordando que a morte a todos levará, quando chegar a hora, estejam doentes ou muito bem de saúde...Findo o exercício alquímico o que o autor nos lega é o mistério de sempre: o da utopia de que ao homem é permitido "mudar" a natureza, interferindo ( ainda que para o melhorar, o "redimir", como diziam alguns) no projecto da criação divina.

Seguem-se no manuscrito um conjunto de considerações ilegíveis, incluindo o tal discurso cifrado, e apresenta-se de seguida a 2a. Parte del Rey D.Alonso.

Sunday, September 02, 2007

Biblioteca da Ajuda

Na década de 80, ao longo de vários anos, procurei na Biblioteca da Ajuda obras de filosofia hermética que a meu ver teriam de existir, pois Portugal nunca esteve alheado do que se passava no resto do mundo culto e oculto da Europa medieval e renascentista.
Ainda no século XVIII Anselmo Caetano dava testemunho da existência desses conhecimentos e dessa cultura, no seu tratado da Ennoea.
Anteriormente a ele Duarte Madeira Arraes, médico de Dom João IV, no tratado do Vitriolo philosophorum mostrava não ignorar a medicina paracélsica.
O caso não é diferente com Dom Franciso Manuel de Melo, ilustre homem de letras.A ele se deve o Tratado da Ciência Cabala, onde todos os aspectos da Cabala judaica são abordados com grande erudição, exceptuando a Gematria, a ciência numérica, condenada por ser de magia, devendo por isso (e por muito temor à Inquisição) ser posta de parte pelo autor . Mas não duvido que até essa parte da matéria o nosso erudito conheceria.
Procurando recuar no tempo, apresentei a dada altura na Academia das Ciências uma comunicação em que tentava mostrar como na época do Humanismo as matérias gnósticas e herméticas circulavam, em meio restrito, é certo, mas a cultura sempre foi apanágio de meios restritos e isso em nada diminuiu a importância que de facto teve, influenciando o pensamento e a obra de muitos autores celebrados à época (Dante, por exemplo, seria um deles).
Pude então afirmar que alquimia e humanismo foram marcas do Portugal Renascentista ( Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1988 ).
Na "Rellação" da Livraria de Frei Vicente Nogueira, que encontrei em Paris, no fundo português da B.N.P., podemos ler uma lista grande de autores, medievais e não só (muitas obras de Paracelso ali se encontram citadas), o que justificava a apreensão que foi feita pela Inquisição.
De igual interesse, no nosso século XVI, é a obra de Frei António de Beja, estudada pelo Prof.José V. de Pina Martins, que detecta a influência de Pico della Mirandola e através dele do Corpus Hermeticum, traduzido por Marsilio Ficino.
Diz Pina Martins:" Não temos elemntos para poder documentar a existência em Portugal de textos herméticos, anteriormente à citação de Fr.António de Beja..."
E ainda que " o pensamento de Marsilio Ficino se insinuou na poesia europeia e portanto também na portuguesa do Renascimento, de Sá de Miranda a Camões, e no pensamento humanístico português, através do influxo directo ou indirecto de alguns dos seus discípulos, como Pietro Bembo, Leão Hebreu e outros".
Continuando ainda no século XVI, iremos encontrar em João de Barros, na Ropica Pneuma, a prova provada de tais conhecimentos. No discurso que a Razão faz ao Tempo, e na resposta deste, encontra-se referenciado o processo alquímico. Só que se trata de uma "má alquimia", de uma inversão de processos, e não do modo justo de seguir o caminho da virtude e da sabedoria que a boa alquimia permite ( ver João de Barros, Ropica Pnefma, edição do INIC,vol. II, pp. 135-36) .

E chego então ao ponto que interessa, da Biblioteca da Ajuda.
Dois códices, de manuscritos inéditos de matéria alquímica e profética, sebastianista, aguardam os estudiosos.
Um deles contém as Profecias de Merlin sobre as Espanhas, e deve-se à Prof.Rita Costa Gomes a datação (c.1650) e a transcrição do mesmo.
As profecias de Merlin foram compostas entre 1366 e 1370, havendo os seguintes impressos:
El Baladro del Sabio Merlin ( 1498 )
El Baladro ( 1535 )
Prophecias ( 1500 )

Como primeira bibliografia em português para estas matérias sugiro W.Entwistle, A Lenda Arturiana nas Literaturas da Península Ibérica, Imprensa Nacional, 1942.
Em língua espanhola, A.B. y San Martín (eds.) La Demanda del Santo Graal ( contém o Baladro, ed.Sevilha de 1535 ), Nueva Biblioteca de Autores Españoles,tomo VI,Madrid 1907.
E de B. Balaguer, Los Textos Españoles y Gallego-portugueses de la Demanda del Santo Grial, Madrid,1929


No mesmo códice se encontra um ms. de maior dimensão, do Livro do Tesoro atribuído a Afonso X.
Fiz eu a transcrição que, tal como a de Merlin, se encontra inédita.
Para este tratado e suas variantes conhecidas ver :
José Ramón de Luanco, La Alquimia en España (fac-simile de los dos tomos de 1889 y 1897 ), Barcelona, 1998

Na Biblioteca da Ajuda é grande e interessante o repositório dos textos alquímicos.
Basilio Valentino, em tradução francesa ( o que ajuda quem não saiba latim);
Livre de la vraie pratique de la noble science d'alchimie (tem desenhos dos utensílios que se usam);
La Fontaine des Fontaines composée par un frère de Rose Croix...
e outros, aguardando estudiosos com disponibilidade e empenho.

Quanto à matéria profética, temos ainda na Ajuda O Incuberto, de Anonymo Utopiense...( 1649 );
e uma Colecção de Profecias e Vaticínios sobre el-Rey D.Sebastião ( 1808 ).

Muitas outras obras de igual interesse se encontram em Évora, na bela colecção de Incunábulos que contém, por ex., de Raimundus Lullus, a Arbor Scientiae (1482 );
o Herbarius de Arnaldus de Villa Nova (1499 ); as Opera de Picus de Mirandula (1498), só para dar alguns exemplos.
Numa época em que o Esoterismo parece despertar de novo, por boas ou más razões,um renovado interesse, é um desafio para os estudiosos dedicar parte do seu tempo a estas investigações. Os materiais estão aí, à sua disposição.

Wednesday, August 29, 2007

Maria Profetisa


A cmondim, esta gravura de Maria Profetisa.
Leia nos comments o 5, onde lhe dou alguma informação sobre o tema.
E pergunte sempre.
Na gravura Maria indica o segredo da Obra: união do inferior e do superior, do céu e da terra, como quinta essencia (as cinco flores dentro do círculo de fogo). Por outras palavras, a união de opostos como figuração do andrógino primordial, em que o filosofo adepto se revê.

Monday, July 23, 2007

Maria Profetisa



Esta é uma descoberta, feita numa das nossas bibliotecas, que dedico e disponibilisarei, com tempo, aos verdadeiros amantes da alquimia.
Trata-se de Livro Abreviado de Maria Profetisa, constando de dois folios e verso.
Aqui fica, enquanto parto, por um tempo.
Mas podem contactar-me, para mais informações; há mais, na biblioteca de onde este proveio...

Monday, July 09, 2007

Sunday, July 08, 2007

Wednesday, June 06, 2007

Comentarios aos Sete Cantos de Taut


O leitor mais atento percebeu com certeza que são Cantos dedicados a Thot, o deus Hermes dos antigos egípcios, pai fundador da arte alquímica.
Os poemas são colocados sob a égide de Virgílio e Dante- os grandes condutores da experiência mística e mítica da alma.Pois é dessa experiência profunda que se trata, por meio de uma imaginário que pode ser descrito à luz do modelo de Bachelard, entre outros.
Logo no prelúdio é celebrada a Terra, como Grande-Mãe, e de seguida a Água, como fonte de vida jorrando do seu seio.
Terra e Água serão as propiciadoras da grande transformação. Mas também fica apontada a utopia, a retomar no último dos Cantos, de uma cidade onde se poderá erguer a voz num cântico de estrelas.

Escolhi para ilustrar o Canto I a gravura VIII da Atalanta Fugiens em que o adepto ergue, para abrir o ovo da vida, o glaivo endurecido ao fogo da lareira (da alma) alquímica. Esse é o gesto que permite iniciar o trabalho da Obra.
A legenda reza " pega no ovo e e bate-lhe com um glaivo de ferro" ; este gesto, com esta espada, permitirá que nasça o pássaro que vence a dureza do ferro ( a alma endurecida ) e o excesso de calor do fogo ( a pulsão ainda não sublimada ).
Poderia ter escolhido outra gravura, a X, dedicada exclusivamente ao elemento fogo e seu papel na transformação necessária.

Aqui a legenda reza: " Dá fogo ao fogo, mercúrio a Mercúrio e isso é suficiente". Vemos o adepto junto à lareira acendendo o fogo e dois Mercúrios ( Hermes ) com o caduceu na mão, contemplando o trabalho.

No Canto II são reforçadas as imagens da água ( o mar ) e do fogo num novo casamento de opostos, desenvolvido melhor "nas bodas do sol e da augusta Terra" da terceira estrofe. Essa é a mensagem: a das Bodas Químicas, narradas por J.Valentin Andreae num célebre tratado que fez furor na época da sua publicação, continuando pelo tempo de M.Maier.

Mas esta primeira união ainda não é a definitiva, é um vislumbre apenas do que poderá ser, se bem sucedida a Obra de sublimação, o futuro do adepto como fundador e construtor da cidade da paz.

As imagens mais fortes são a do negro chumbo, do mau cheiro da podridão de cadáver que tem de ser decomposto - a "obra ao negro, enfim- a descida ao abismo da "massa caótica" de um inconsciente descontrolado, entregue às suas pulsões mais baixas- veja-se a referencia ao "porco"chafurdando na lama, como parte do bestiário desta poética hermética. Há um eco de Rimbaud - Le Bateau Ivre - no apelo do mar, da descida ao abismo, da visão do inferno.

A evocação de Dante, no Canto III, recentra o tema do homem no coração do mundo, o homem no centro da esfera da criação, conduzido à luz pela energia positiva do amor "num rodopio eterno". A experiência do negro permitiu esta nova fase em que a cidade ideal se aproxima , fraterna. O poeta exclama:" mundo, nada está fora de mim" - visto o mundo, descoberta a esfera da cadeia dos seres, a alma roda como uma estrela que cintila.

A sementeira faz-nos regressar ao elemnto terra, sua fecundidade, ouro na espessa treva.
E descreve-se, no Canto IV o templo, obra das próprias mãos, a arca com o tesouro, o hino eterno que sublima os ares.Mudou-se de fase, a presença dos elementos espirituais que o templo representa permitem um grande avanço no caminho.

O Canto V proclamará a santa Liberdade: noite vasta/ dia abençoado (conjunção de opostos, sempre desejada, sempre repetida) o adepto segue, vai com o vento ligeiro e aqui ficaria bem reflectir de novo com M. Maier noutra sua gravura, cuja legenda reza : "E o Vento levou-o no seu ventre" ( aludindo ao embrião da Pedra Filosofal, a matéria da Obra a sublimar ).


O embrião contido no ventre poderá depois ultrapassar os heróis pela força do seu braço, do seu espírito, do seu corpo, da sua arte.
Quando o poeta exclama: " Morte, atravessei-te.Meu domínio é sem fim", fez entrar a dimensão do espaço na dimensão do tempo que vivera. E o espaço é amigo, o espaço concretiza, fixa o volátil na " ordenação medida" com que o circunda ou enquadra.A vivência do tempo místico é vertical, espiralada, mas a "ordenação" do espaço é o que permite imaginar a quadratura impossível do círculo. Ainda que descrito como espaço sem fim vemos pelos restantes versos que esse espaço é o da natureza, a terra aberta ao infinito do céu (nas Bodas já citadas).

Os cantos VI e VII são o fecho de glória de um caminho percorrido : vazio fecundo, terra firme, ponto no centro do Todo, rosa ( a de Dante no Paraíso, mas também a que dá o mel às abelhas, no Rosário dos Filósofos...).
O indefinível é cantado com emoção e agora afirma-se o glaivo de ouro ( antes fora espada de fogo ), o véu rasgado (deixando ver a luz), o silêncio quebrado (revelando a palavra): " le dedans est dehors, o interior está no exterior", na conclusão final.

A alma dissolve-se no ar em pó de diamante e eis a combustão : a palavra francesa, embrasement, permite um aprofundameno em embrassement ( o abraço dos amantes, a fusão ) que o trocadilho anterior entre Aimant , Íman , e Amant, Amante, já vinham indicando.

Termina-se de novo com Dante e Virgílio, egrégios antepassados.E glorifica-se a Obra do Poeta:

"Poeta, tu bem sabes: a morada do homem
É uma teia tecida em ouro pelo Espírito.
Tem piedade, comigo, desses reis sem domínios:
No seu deserto que oiçam o meu grito.

Ergueremos então sobre as ruínas antigas
Uma cidade, espelho da ordem verdadeira
Onde a sombra e o sol, brincando sob os pórticos
Ofereçam às almas a imagem da paz".

Thursday, May 31, 2007

E. Perrot, L'Invocation




Dante, le jonc sacré que te montre Virgile
Et qui t'ouvrit les portes du soleil,
Daigne en ceindre aujourd'hui ce beau vase d'argile,
Vide mais pur au sortir du sommeil.

Le silence du gouffre a chatié ma langue,
Les mots anciens ont perdu leur éclat.
Brûlés, devenus plomb, j'ai tiré de leur gangue
Des flèches d'or qui ne se perdent pas.

Maître archer, comme moi pèlerin des trois mondes,
Guide mon bras, rends audacieux mon front.
Que l'enfer et le ciel, que ce siècle répondent
Lorsque ma voix a dit leur juste nom.

Poète, tu le sais: la demeure de l'homme
Est un réseau tissé d'or par l'Esprit.
Prends avec moi pitié de ces rois sans royaume:
Dans leur désert, qu'ils entendent mon cri.

Nous bâtirons alors sur les ruines antiques
Une cité, miroir de l'ordre vrai
Où l'ombre et le soleil jouant sous les portiques
Offrent aux coeurs l'image de la paix.

E. Perrot, Sept Chants de Taut, VII


VII
L'Insaisissable

Qui cernera les bornes de cette âme ?
Qui saura de ses mains emprisonner le vent ?
Qui pourra contenir le cours de cette flamme
Et te dicter sa règle, universel Aimant ?

Suivant le bon plaisir de ta jeune Sagesse,
Tu plonges, tu jaillis, clarté tu te fais nuit,
Tu places des fruits lourds aux branches d'allégresse
Ou laisses l'arbre vide en un désert d'ennui.

Mais cessons d'invoquer, car il n'est que présence:
Dans ma secrète main j'ai pris le glaive d'or.
J'ai déchiré le voile et brisé le silence:
Tout bouge, tout vrombit; le dedans est dehors.

Où donc est cet amant ? Où donc est l'âme en quête?
Dissous dans l'air ténu! poudre de diamant!
Le mur qui les créait en suspendant la fête
A croulé, vermoulu: voici l'embrasement!

ICI S'ACHÈVENT LES CHANTS DE TAUT, FILS D'ISI

E. Perrot, Sept Chants de Taut, VI



VI
Cantique des Aigles

Des quatre vents de l'univers,
De vos retraites ignorées,
Rouges aigles, accourez vers
Ces carcasses humiliées.

Engouffrez-vous de toutes parts,
La place est béante et déserte:
J'ai découronné ses remparts,
Mes mains ont fabriqué sa perte.

L'oeil mortel ne pourra le croire:
Vous étiez là depuis toujours,
Fondus en un soleil de gloire,
Sphère vibrante et sans contours.

Vide fécond, Terre affermie,
Réseau d'or animant le Tout,
Infime point, rose, cadmie,
Merveille vive au coeur du fou !

E. Perrot, Sept Chants de Taut, V


V
Cantique de l'Immortel

Comment te chanterais-je, ô sainte Liberté ?
Tous les mots pour te dire abandonnent ma plume:
Ta gloire est infinie, entière ta clarté,
Nuit vaste, jour béni, Saison sans amertume.

Je ne sais d'où je viens, où je vais ne m'importe:
Au plus léger des vents je cède sans efforts,
Qu'à la cime du monde il m'invite et m'emporte,
Qu'il m'aspire en l'abîme où sommeillent les morts.

Trépas, je t'ai franchi.Sans borne est mon domaine.
J'ouvre et ferme en riant les demeures du ciel.
Triomphant moissonneur de cette haute plaine
J'engrange le blé d'astre au goût divin de miel.

Mère qui me portas, sein tiède, face obscure,
Val humide et profond où je dormis longtemps,
Le voici donc ton maître et ton époux, Nature,
Ce ver informe et vil, dernier de tes enfants.

Wednesday, May 30, 2007

E. Perrot, Sept Chants de Taut, IV



IV
Cantique des Semailles

Esprit du monde, artisan de beauté,
Anime cette voix qui te célèbre:
Ta gloire emplit mon coeur: viens en jeter
Les graines d'or dans l'épaisse ténèbre.

Le temple pur ouvrage de tes mains,
L'arche parfaite aux vivantes colonnes
S'offusque, en proie aux injures de nains
Qui pour leur front ravirent ses couronnes.

Ecrin de choix rempli de tes trésors
L'homme, ton fils bien-aimé, ton vicaire
Verse un oubli le plus noble des sorts:
Nul chant de source en cette morne terre.

Fais refleurir les sables du désert!
Peuple de tours les villes dévastées !
Et que ruisselle, aux demeures de l'air,
L'hymne éternel des gorges visitées!

E. Perrot, Sept Chants de Taut, III



III
Hymne au Monde
Danti

O sphère dont je suis le coeur
Seul Fils à l'image du Père,
Vivant parfait, durable fleur,
Couronne heureuse de lumière,

La ronde où t'entraîne l'Amour
Ne connaîtra jamais de cesse,
Montrant et voilant tour à tour
Les présents de l'auguste Liesse.

La nuit m'a livré tes secrets:
En elle j'ai saisi les pôles.
Cloué sur l'axe dur, je sais
Répondre au chant de tes corolles

Et lire le poème écrit
Dans le volume que déroule
Pour le seul oeil du coeur guéri
L'Année en sa paisible houle.

Sourires du ciel mon foyer,
Cités proches et fraternelles,
Astres, ici vont se noyer
Et luire en retour vos prunelles.

O monde, rien n'est hors de moi:
Amas de biens, je te résume!
L'ayant vu, je cède à la Loi
Et tourne, étoile qui s'allume.

E. Perrot, Sept Chants de Taut, II



II
Saturnia Regna
in finem.Pro iis qui commutabuntur.
( Ps. XLIV, 1 )

O furieux amant, desserre ton étreinte:
Je suffoque, noyé dans le nuage d'or.
Aurais-je trop osé quand j'écartai la crainte
Pour consentir à toi, hâtant l'heure de mort.

Ta présence m'accable et disloque mon être
Comme la mer s'engouffre au coeur d'un vieux voilier.
J'appelais ce naufrage, et maintenant, ô maître,
Le feu noir de l'effroi ronge ce corps lié.

Les noces du soleil et de l'auguste Terre,
Le jeu divin, les hymnes du jour, les couleurs,
Tout a cessé d'un coup. Le temps n'est plus: j'adhère
A l'abîme, pays nouveau, maison des pleurs.

Le froid, le plomb, la puanteur sont mon partage.
Je vais tel un cadavre au milieu des vivants.
Leur parole ne m'atteint plus dans cette cage
Qui dérobe à mes bras ses murs tissés de vents.

Est-ce donc là le rendez-vous que tu désignes
Lorsque dès le matin tu presses de partir ?
Le cellier bienheureux, l'enclos pourpre des vignes
Figuraient cette tombe où je vins m'engloutir.

Suprême dérision: ce chercheur de merveille
Dans la boue enlisé grogne comme un pourceau.
Son front lourd de stupeur ne sait rien qui l'éveille:
Pierre muette, il gît, hébété, sous le flot.

- Il lui faut s'impregner du fiel de cette eau grasse,
Etreignant son destin, qu'il s'occupe à pourrir!
Qu'il s'accoutume à n'être plus qu'informe masse
Et laisse tout espoir de voir l'enfer s'ouvrir !

E. Perrot, Sept Chants de Taut, I



I
Liminaire Pour Epiménide

Epiménide de Gnose, étant sorti dans les champs,
entra, dit-on, dans une grotte et s'y endormit.
Le sommeil ne le quitta pas avant quarante ans.
Après quoi il écrivit des poèmes et purifia des villes,
au nombre desquelles Athènes.
( Pausanias: Descriptio Graeciae, I, XIV )

Lumière de l'automne, or souriant du soir
Où la branche en jouant répand sur moi des signes,
Tu m'annonces la paix et, douce, me désignes
Des jardins baignés d'eaux, mon nouveau reposoir.

J'ai durement peiné pour gagner ce royaume:
De mille vieilles peaux j'ai marqué les chemins.
Mais le grand vent des dieux brassa ces parchemins,
Nu comme les héros, sans traces, je suis l'homme.

O Terre des parfums et des fruits, Terre acquise
Par mes pleurs et mon sang, dis, que veux-tu de moi ?
Libre de tout devoir, recevrai-je ta Loi
Pour la porter en cet enfer où tout se brise ?

Le goût du paradis m'a quitté dans la mort,
Pierre durcie au feu j'ignore le plaisir.
D'une frêle herbe en moi tu fis un glaive fort:
Il est prêt pour ta main, si tu veux le saisir.

E. Perrot, Sept Chants de Taut, Prelude



Da autoria de Étienne Perrot, cuja obra foi pioneira nos estudos de divulgação da alquimia da alma, transcrevo estes poemas que ele escreveu na década de sessenta já a caminho do que seria o seu futuro de grande estudioso e divulgador destas matérias. Pela sua mão li eu, como tantos outros frequentadores do seu seminário de psicologia junguiana, a Atalanta Fugiens, Atalante Fugitive, de Michael Maier, de que ele tinha feito a tradução francesa para uma edição bilingue (agora de novo reeditada).

Prelude Virgilien

Grande Mère des fruits, grande Mère des hommes,
Je te salue, ô Terre de Saturne : j'ose
Entrer pour ton amour dans l'antique domaine
De gloire et libérer les sources d'eaux vivantes.
Dans des cités de fer je chante un chant d'étoiles.