Saturday, November 03, 2007

Gilgamesh



Nova tradução inglesa, em verso, que se lê com a facilidade de uma novela fascinante.
O mérito é de STEPHEN MITCHELL, de quem já se conhecem outras versões de clássicos como o TAO TE CHING, THE BOOK OF JOB, BHAGAVAD GITA e a SELECTED POETRY OF RAINER MARIA RILKE.
(Ver stephenmitchellbooks.com)

Mais uma vez, neste texto, nos deparamos com a memória viva de um mito: Gilgamesh, herói dos tempos bíblicos, rei poderoso que tudo e todos vence, em tudo manda, e que a dado momento inicia uma viagem especial em busca do seu alter-ego, o homem natural, nascido e criado na floresta e não na cidade poderosa já corrompida pelos vícios que a civilização trouxe consigo.
Uma primeira lição, ancestral: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Uma segunda lição: o poder (a absoluta racionalidade, razão vs. emoção, numa leitura simples) não substitui, no homem, a necessidade vital da alma, a entidade superior que permite e condiciona a verdadeira existência. Sem alma não há vida humana, citadina, social, que seja fértil. Daí a necessidade de Gilgamesh ir procurar Enkidu, que virá a ser o companheiro perfeito, ao ponto de se sacrificar por ele ( o que no mito significará uma suprema integração).

Como observa um dos críticos da versão deste texto de há 3500 anos, não nos podemos considerar cultos sem o ter lido, depois da Bíblia, de Homero e de Shakespeare...
A civilização floriu no que hoje é o Iraque, naquele espaço situado entre o Tigre e o Eufrates, onde Hammurabi escreveu o seu código de leis e a épica de Gilgamesh, a mais velha história do mundo, foi escrita em tabuínhas de argila e vezes sem conta narrada, até chegar assim aos nossos dias.
Gilgamesh reinou na cidade de Uruk da Mesopotâmia, por volta de 2750 A.C.
Na epopeia diz-se que teve um amigo íntimo, Enkidu, um "homem nú, selvagem, que teria sido iniciado na civilização graças à arte erótica de uma sacerdotiza de um templo".
Aqui está a primeira forma do mito do "bom selvagem", marca que reencontraremos na TEMPESTADE de Shakespeare, onde o selvagem Caliban é iniciado por Próspero no modelo da civilização (mas sem sucesso). Rousseau, séculos mais tarde recupera a ideia, mas como vemos  no imaginário humano tem matriz bem antiga.
Com Enkidu, Gilgamesh vence os monstros com quem tem de lutar para se manter reinando vitorioso. Mas Enkidu morre, e Gilgamesh, inconsolável, parte para uma viagem em que espera encontrar o único homem que lhe pode dizer como vencer a morte.
Este é um dos núcleos fundamentais da história: a morte, o medo da morte, única vencedora de toda grandeza do percurso humano. Mas há outros, e em íntima relação com o que sentimos, somos ou não somos, relativamente aos grandes motivos universais do amor, da fragilidade da vida, da ambição de saber.
O rei herói desta epopeia é talvez mais um anti-herói, que aprende à sua custa, como num Bildungsroman, que a infinita prosápia do poder não leva a nada, só ao grande sofrimento de descobrir como é limitado o momento da nossa vida, seja qual fôr a condição em que se viva, de maior ou menor grandeza.
É uma história que contém uma moral: a da cidade civilizada pela fraternidade, temperança e sabedoria. O texto começa e acaba com a cidade e, entre o seu princípio e o seu fim, decorre a aventura da humanidade com os seus fundamentos, naturais, religiosos e sociais.

2 comments:

uf! said...
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argumentonio said...

bem mais que uma recensão, um simples e (talvez também por isso) prodigioso exercício de relacionamento e articulação de saberes, sensibilidades e ânimo incentivador de busca e descoberta, incluindo porventura a redescoberta - há sempre um ganho em lembrar e revisitar, sobretudo sob um novo olhar, sábio e gentil, obrigado tamanho ;_)))