Thursday, April 26, 2007
Mundo arquetipico I
Da universalidade do mundo arquetípico.
Dois quadros de Anselm Kiefer, inspirados em poemas de Paul Celan, levam-nos mais longe, atravessando o tempo e a memória arquetípica da condição humana.Das antigas raizes bíblicas, com a árvore de Jesse, somos conduzidos à leitura alquímica da obra da vida humana, simultâneamente dividida e una, à imagem e semelhança de um Criador interrogado e que nem sempre responde.
Vejam-se as ilustrações de um manuscrito anónimo do século XIV, que coloco em primeiro lugar e veja-se depois o conjunto de Kiefer sobre os textos de Celan.
A árvore que enraiza na cabeça é a do Conhecimento, a que enraiza no sexo é a da Vida. Da primeira o par primordial, Adão e Eva, comeram o fruto, ainda que proibido. (Re)conheceram-se a si próprios como "distintos" do resto da criação, ao adquirirem conscência da efemeridade da vida (simbolizada pela caveira). À segunda, da Vida, não tiveram acesso, sendo expulsos do Paraíso.Contudo, segundo lendas antigas, roubaram um pequeno ramo que levaram consigo e plantaram mais tarde, fazendo de uma árvore "seca" em aparência uma árvore verdejante e viva.
As duas árvores, com as suas raizes, constituem afinal o que é próprio da matéria humana, o ser corpórea e espiritual ao mesmo tempo.
Mundo Arquetipico II
E agora os quadros de Kiefer, meditando Celan, o incoformado com o silêncio da Deus.
Ambos datam de 1995: o primeiro, a grande flor na cabeça,tem por título Sol Invictus- ironia máxima, aludindo a um mundo que perdeu e talvez continue a perder a luz da razão (da racionalidade); o segundo tem por título Ash Flower, flor de cinza- aproximando-se então da essencia mesma da trágica poética de Celan, o que olha, vê e interroga permanentementa as cinzas, os restos, do que tinham sido as promesas de um Criador que não parece cumprir.
Como observa Andrea Lauterwein, no seu magnífico estudo " A divina promessa foi subvertida, pois embora a semente de Abraão seja numerosa como as estrelas, não brilham estrelas na noite escura, o contrato com Deus foi quebrado,'em nenhum lado/ se pergunta por nós' ".
( A.Lauterwein: Anselm Kiefer,Paul Celan, Myth Mourning and Memory,Thames and Hudson, 2007 )
As flores são girassóis, por dolorosa ironia. Não brilha o sol, apenas se elevam as cinzas que o sopro do vento espalhará sobre a memória do mundo.Inverte-se aqui o simbolismo alquímico da árvore de Jesse, que Celan refere num dos seus poemas ( RADIX MATRIX, 1961 ):
....
Quem
quem era, aquela
raça, a que foi assassinada, aquela
que negra se ergue no céu:
testículo e pénis -?
(Raiz.
Raiz de Abraão.Raiz de Jesse.Raiz
de ninguém -oh
nossa. )
Leia-se ainda outro poema em que a mesma presença, invertida, do símbolo se manifesta. Escrito em 1970, será um dos últimos que envia a uma amiga e confidente:
MUDANÇA DE LUGAR
Mudança de lugar entre as substâncias:
vai tu para ti, junta-te
à luz telúrica
desaparecida,
dizem-me que fomos
uma planta celeste,
terá de ser provado, a
partir de cima, ao
longo das nossas raizes,
há dois sóis, ouves,
dois,
não um-
sim, e depois ?
Nunca neste poeta se realizará a desejada Conjunção feliz, o corpo sofreu damasiado para que o espírito se liberte. Com Celan , nesta alquimia invertida, a Obra que é a Vida regressa à mais profunda Nigredo.
Monday, April 23, 2007
O Templo de Pessoa
Pessoa e a destruição do Templo.
Agora que estão na moda todos os esoterismos possíveis e impossíveis convém de vez em quando lembrar vozes, como as de Fernando Pessoa, que em toda a sinceridade alertavam para o que há de perigoso em todo e qualquer mistério. É no espólio, nos fragmentos (alguns que publiquei,com o título de O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa, ed.ETC. 1990 ) que iremos encontrar considerações que nascem de uma cuidada reflexão, por muito estranha que hoje nos possa parecer. Paulinho Assunção diria que somos todos "voltaireanos" -veja-se o texto do seu blog. Talvez tenha razão. Já ficam longe as utopias, deste Templo pessoano ou de outros, mais interventivos, mas em que também já poucos acreditam e ainda menos se dispõem a fazer por eles qualquer espécie de sacrifício.
A moral relativista matou a utopia no homem.
Mas não havia ainda relativismo no tempo de Pessoa e a marca esotérica, sendo forte, alimentava a chama. Eis Pessoa, em parte das considerações de que simplifiquei apenas a escrita para facilitar a leitura:
"A Destruição do Templo
( Introdução à história moderna)
A simbólica da destruição do templo nos fenómenos da crucifixão no Quarto Evangelho.O 'sangue' e a 'água' que correm da ferida.
A destruição do Templo quer dizer a 'ruina' dos mistérios , e o desastre que foi o derramar pelo mundo e pela humanidade das doutrinas esotéricas, que por natureza se não destinam a ser divulgadas.(Divulgar é destruir, porque a doutrina oculta, divulgada, passa para quem não a pode compreender e que portanto (1) a deturpa na interpretação; (2) a deturpa ainda mais na acção.)
As duas 'divulgações' são a da esotérica como exotérica (ex.o Crisitianismo e sobretudo o Cristianismo bíblico, pois a Bíblia é ininteligível e absurda sem a chave 'alquímica', por assim dizer que a interpreta) e a da exotérica como falsa esotérica, nas irmandades secretas, etc. que já não eram depositárias da verdadeira doutrina esotérica, mas de fragmentos muitas delas.
A reconstrução do Templo, a segunda vinda de Cristo (os dois símbolos significam o mesmo sentido) dada pela mística cristã sob as duas formas de 'fim do mundo', ou 'fim da fé (?)', ou ainda 'Juizo Final'.
Das sociedades herdeiras (?) dos antigos detentores da Ciência sobrehumana só uma, cohecida vulgarmente por a Rosa-Cruz, verdadeiramente herda a verdadeira Ciência. Esta misteriosa Fraternidade, de quem ninguém pode ao certo afirmar nada, tampouco sequer sonhar que coneheceu um dos seus adeptos, vela-se por completo da realidade, veio através das épocas ocultas em meio da vida e dos povos.
A iniciação nas sociedades secretas é uma mímica deteriorada,uma figuração em plano inferior da iniciação verdadeira.-O ceremonial maçónico, por exemplo, como o trabalho alquímico, é 'simbólico' ; não significa nem mesmo o que os 'iniciados' neste nível supõem que ele significa.
Ao homem vulgar, que queira entrar as portas do Oculto, diremos uma só coisa: não tentes ! O oculto é que nos procura, não nós a ele; pois, desde a Queda, não há livre-arbítrio. Não somos nós que olhamos para a Matéria; ela é que olha para nós.Colocando-se na passividade chamada mediumnica pode julgar que atinge outro mundos; não faz senão aprofundar a Ilusão, que, como é contínua com o mundo, é para nós verdadeira.
Esta frase é para quem a entende: a 'sublimação é pelo mercúrio'. Toda a iniciação está nisto."
Saturday, April 21, 2007
Meyrink, as doutrinas e os romances
Entre os grandes pensadores do esoterismo que Meyrink não só leu como conheceu, encontram-se G.R.S.Mead e Rudolf Steiner.
Com Mead correspondeu-se durante anos.Estes autores encontram-se também na biblioteca de Pessoa, o que mostra como era universal a cultura e a busca do nosso poeta e como o esoterismo era a "moda" para não dizer a tónica principal dos meios artísticos mais relevantes.Se algumas doutrinas descambaram em utopias milenaristas reprováveis, outras pugnaram por um discreto caminhar, de distanciamento das correntes visíveis e de entrega a caminhos pessoais, críticos, lúcidos ainda que em permanente interrogação. Também nisto Pessoa e Meyrink se encontram, sem saber.
Dos ocultistas que Meyrink apreciou salienta-se ainda BÔ YIN RÂ, embora mais uma vez, no fim dos seus anos, o nosso autor o tenha declarado má influência na medida em que muito do que verificou ser a sua doutrina não passasse de ilusão, de discurso vago e de tão vago sem substância e sem sentido.
Formalmente Meyrink não reconhece o que os seus romances contêm: cada um, um modelo de iniciação.É certo que este motivo, da iniciação, é sempre o mesmo. Mas o conteúdo que transparece no percurso do herói, sempre um inciando,varia conforme as doutrinas expostas:
Em Das gruene Gesicht ( O Rosto Verde) a doutrina é a do Yoga;em Der Golem ( O Golem, que dará nome e inspiraçao a um dos grandes filmes do Expressionismo) a doutrina é a da mística da Kabala; em Der weisse Dominikaner ( O Dominicano Branco) a doutrina é a do Tao mágico chinês com elementos da mística cristã; em Der Engel vom westlichen Fenster ( O Anjo da Janela do Ocidente ) a doutrina é a da transmutação alquímica.
Podemos apreciar mais ou menos, no estilo da Meyrink, a "marca" de época: alguma elaborada sofisticação que um leitor de hoje não apreciará. Mas há que chamar a atenção para a qualidade da prosa, sobretudo na descrição dos espaços: as suas cidades, seja Praga ( a Praga de Kafka) seja Amsterdão,ou outra tornam-se vivas e visíveis aos nossos olhos, a descrição é
cinematográfica, apelativa, envolvente.
Pondo de parte algum preciosismo, e last but not least, o facto de as figuras femininas servirem apenas para modelos sacrificiais que permitam ao herói uma "Conjunção" no além, um Casamento Químico, evitando no tempo e no espaço terreais a "contaminação" do impulso físico, não poderemos esquecer a lição que em cada romance é apresentada, e levaria um leitor mais atento a estudar ele próprio os complexos assuntos que o autor aborda.
Meyrink não facilita a vida ao seu leitor, dizia ao tempo alguma crítica.
É certo, mas os leitores devem merecer o que lêem...
BÔ YIN RÂ , voltando a ele e ao esfriamento de relações que se foi dando, foi capaz ainda assim de escrever em 1933, um ano após a morte de Meyrink: que tudo o que este escrevia resultava de "experiência própria" afastando a ideia de que só literariamente a escrita do seu ex-amigo e seguidor devia ser entendida.
A cadeia dos "Vivos" era longa e de longo magistério: tinham vencido vida e morte os seguintes: HU-TSU; ELIAS; HENOCH; MANI; APOLLONIUS; JOÃO EVANGELISTA; CHAITANYA; NOSTRADAMUS; CHRISTIAN ROSENKREUTZ; NICOLAS FLAMEL; etc.
Pela lápide no cemitério onde Meyrink foi enterrado supõe-se que o tenham considerado um deles.
Friday, April 20, 2007
Gustav Meyrink
Meyrink, um alquimista da alma.
Foi preciso chegar à decada de 90 para que a sua obra voltasse a ser divulgada. Para quem não leia alemão, a primeira tradução deste texto fundamental para a gnose moderna que é O DOMINICANO BRANCO data de 1994, e está disponível para quem deseje ler.
Neste romance, que decorre sob a égide de um monge catalão do século XII, Meyrink explora e explica um conjunto de tradições místicas, esotéricas,de cuja sabedoria se apropriou ao longo de muitos anos. A mais importante e talvez mais universal, pela antiguidade e simplicidade da "lição" é a do Taoismo. O Tao como Via de transmutação que permite ao indivíduo integrar-se na cadeia dos seres imortais cuja existência reconhece e a cuja revelação e identidade aspira, ainda que tendo de enfrentar múltiplos sofrimentos e perigos que a temível Medusa representa.
" O que em mim era corruptível foi consumido pelo fogo, transformado pela morte numa chama de vida".
" Dissolvido para sempre com cadáver e espada".
A quem já tenha lido o alquimista Zosimo este final se tornará muito mais claro. Ou o livro do Picatrix, outro texto de iniciação.
Naturalmente ler também o Tao Te Ching e ainda O Segredo da Flor de Ouro (estudado por Jung ) onde a magia do Tao se torna mais explícita.
De todo o modo será sempre de ler esta obra de Meyrink. O olhar de um ocidental sobre as antigas culturas e práticas orientais ajuda ao entendimento que possamos ter delas, sendo nós também produtos de um ocidente em busca de caminhos. Meyrink deixa o recado: não há utopias redentoras no imaginário do colectivo; só há caminhos individuais, cada elo da cadeia universal é forjado a par e passo, pelo esforço e pela escolha de cada um no seu momento.
A melhor biografia de Meyrink é de Frans Smit, Gustav Meyrink, auf der Suche nach dem Uebersinnlichen ( EM BUSCA DO SOBRENATURAL ) ed.Langen Mueller, 1988.
Nasce em 1868, vinte anos antes de Pessoa (que nasce em 1888) e morre em 1932 (Pessoa morrerá em 1935). Vivem na mesma época tendo as mesmas preocupações culturais, filosóficas e místicas, sob influencia do teosofismo de Blavatsky e Besant, do misticismo mágico da Golden Dawn,com os seus cabalistas, e procurando no imaginário da alquimia renascentista, de que John Dee é um expoente, a revelação mais ansiada.
Data de 1917 uma primeira edição completa da obra de Meyrink em 6 volumes. O Dominicano Branco, posterior, é publicado em 1921. Em 1923 publica o seu ensaio NA FRONTEIRA DO ALÉM e em 1925 o volume de contos HISTÓRIAS DO ALQUIMISTA.
Numa entrevista de 1922 afirma: " Estou cada vez mais convencido de que não sou "eu" quem escreve mas alguma coisa dentro de mim". Eco bem pessoano de muitas afirmações : há um espírito do tempo naquele período de entre as duas guerras que se manifesta em muitos criadores ainda que sem se conhecerem uns aos outros. Comungam da mesma inquietação, da mesma ansiedade de saber mais, de empurrar as fronteiras do conhecimento do além dentro de si.
Meyrink repudiará, a dada altura, a busca e a prática da mediumnidade, da magia, seja branca ou negra, até do Yoga a que se entregou anos e anos a fio. Pediu que não se iludissem com a ideia de um mantra de auxílio; dizia: em todas as religiões há mantras, derivam do poder da palavra e não de outra força qualquer; a palavra amén, no crisitianismo, é um mantra tão poderoso como os outros.
De olhos abertos preparava já a sua morte, que desejava entregue e tranquila.
Wednesday, April 04, 2007
Kiefer-Celan, Das Einzige Licht
Este poema de Celan, A ÚNICA LUZ, escrito em Bucareste em 1946, inspira Kiefer nesta obra que é já, a seu modo, uma transmutação do negro, uma sublimação da matéria que assim se inscreve num espaço alquímico, simbólico, mítico, no sentido bachelardiano do termo.
Andrea Lauterwein exprime deste modo a sua percepção da obra de um e outro, Kiefer e Celan:
" A literarização do campo metafórico das obras de Kiefer encontra paralelo na materialização da fenomenologia poética de Celan. Os dados físicos dos paradigmas celanianos- a escuridão, o fosso, o resíduo, a profundidade, a pedra, a terra, o cabelo, a areia- oferecem uma estrutura de acolhimento que Kiefer transfere para a concepção do quadro...É com esta imaginação da matéria, no sentido Bachelardiano. que a poesia de celan inventa uma nova categoria de sublimeqie permite exprimir o horror...A partir desta dimensão mnemotécnica destes materiais Kiefer inventa a suas alegorias privadas: a palha, o chumbo e a areia...A palha transforma-se em cinza, o chumbo é purificado e a areia não arde." ( pp.225-6 , in Anselm Kiefer et la poésie de Paul Celan, Éditons du Regard, cit.infra).
Vale a pena falar do chumbo sublimado que é o segredo da obra, de ambos os artiatas: um dando voz ao horror, outro recuperando a memória.O que se procura na obra de Celan não é a biografia, embora ela não possa ser esquecida, mas o SENTIDO que a move e orienta, essa luz única, ora clara ora negra,que se materializa na espessura da matéria do poema. Se o Deus de Jacob se retirou só a palavra do homem poderá preencher o seu vazio, só a palavra que o interpele, como fez Job, no auge do sofrimento.
Paul Celan em português:
SETE ROSAS MAIS TARDE,trad.João BARRENTO/Y.K.CENTENO,ed. Cotovia
A MORTE É UMA FLÔR, trad.João BARRENTO,ed.Cotovia
ARTE POÉTICA, trad.João BARRENTO,ed.Cotovia
Kiefer e Celan
Continuando com esta relação entre Kiefer e Celan vejamos os quadros mais recentes, de 2005, na série que foi dedicada ao poeta. Um dos mais belos óleos tem por título O SANGUE CELESTE DE JACOB ABENÇOADO PELAS ACHAS-PARA PAUL CELAN.
Sobre as achas de lenha que alimentarão o fogo do sacrifício, do extermínio, ergue-se o LIVRO , negro, ele próprio queimado e tornado ilegível no seu conteúdo antigo, prometido.
Negro, esse Livro das Promessas falhadas aguarda transformação.
Mas num primeiro momento o que é preciso é recordar.A memória do tempo, feita espaço, como no reino do Graal wagneriano, obriga Deus ao confronto consigo próprio, interpelando-o-pela palavra e pela imagem, obriga a consciência a confrontar-se com o seus impulsos mais profundos, operando a mutação necessária no inconsciente que lhe dá forma e suporte.
Celan e Anselm Kiefer
De Andrea Lauterwein a belíssima edição em francês ( Éditions du REGARD,Paris,2006) do que foi inicialmente a sua dissertação de Doutoramento sobre a obra do pintor Anselm Kiefer e a poesia de Paul Celan que ela, como tantos de nós, considerou um dos grandes do século XX.
Kiefer trabalha por grandes ciclos poetico-simbólicos os temas que foram fundadores de uma nova maneira de dizer. Contrariando os que entendiam que depois do holocausto não mais se poderia escrever, ainda menos " sentir " o impulso do poema, Celan veio mostrar que o Dizer era imperativo, pois dizendo relia-se a história ( a vida ) e a humanidade nesse confronto consigo mesma, seus percursos de negra contradição, poderia talvez nalgum futuro distante vir ainda a ser salva.
Não espantará o estudioso que Kiefer tenha sido também, nos seus quadros, um intérprete do mistério wagneriano, interrogando a lição mais profunda que tanto se encontra na Tetralogia como no Parsifal : a do sentido do mito. Também o que encontramos na obra de Celan é essa dolorosa e permanente interrogação. Wagner tenta decifrar a alma pagã (dita mais pura) para chegar a uma ideia universal de cristianização, Celan debate-se com a promessa do Deus do Antigo Testamento, promessa feita a Jacob, na escada de mediação entre o céu e a terra - e Anselm Kiefer interroga ambos os criadores, um que foi o "pai mítico" de uma geração enganada e outro que foi a vítima inocente dessa mesma geração.
No capítulo da "Mémoire des Mythes" lemos em epígrafe a nota de Kiefer:
" O meu pensamento é vertical
e um dos planos era o fascismo.
Mas vejo todas as camadas."
Ou ainda: "A minha biografia é a biografia da Alemanha".
Anselm Kiefer nasceu a 8 de Março de 1945 em Donauschingen, num país aniquilado, que em 1949 será a República Federal da Alemanha.Ficando do lado ocidental, Kiefer fará parte da "segunda geração" que vai crescer com a memória da derrota e da culpa, embora não tenha já crescido sob a influência do regime nazi.
Nesta geração, os artistas transitam da herança do mito germânico da arte para o mito da herança da arte ocidental, muito sob a influência dos Estados Unidos. Mas Kiefer entende defender o direito à especificidade da arte e da cultura de cada nação e também, como é óbvio, da sua. Assim se demarca dos caminho dos outros e segue o seu caminho, difícil como o caminho que ele desenha para Siegfried, na busca de Brunhilde.
Não veremos nele a marca da arte do Bauhaus, o movimento fundador do modernismo alemão, e ainda menos qualquer marca do "Formalismo" vigente, mais próprio do design do que de outra coisa, na sua opinião. Para ele era imperioso ultrapassar essa "hora zero".
E o mito veio então preencher esse vazio, enterrando a sua raiz profunda na pintura e na poesia, da mais ambiciosa à mais modesta palavra proferida.
Em 1989, numa instalação que intitulou PAVOT ET MÉMOIRE/ L'ANGE DE L'HISTOIRE, inspirada em Walter Benjamin e em Paul Celan, Kiefer inscreve, nas palavras da sua estudiosa, A.Lauterwein, " a simultaneidade histórica da Shoah no coração do mito Beuysiano" (p. 51 ). Lembro que Beuys era à época o artista que trouxera à arte o elemento do quotidiano banal como realidade suprema. Kiefer não aceita a banalização da arte, como Celan não aceitará a banalização da palavra poética.
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