Na sua Historia de la Alquimia en España, que já citei noutros posts, dedica um extenso capítulo a Ramon LLull e à sua variada obra, comentando no fim que Ramon não desdenhou de utilizar outros saberes: foi o caso da mística e do profetismo joaquimita, da simbólica alquímica e ainda da poesia de Abnarabi de Murcia, entre outros.
Citando Font: "Parece que Llull...no desdenãba los procedimientos de los 'sarraims' y pudo muy bien ocurrir que en sus sistemas de 'combinar' conceptos, a través de símbolos y figuras, admitiese elementos de muy diversa procedencia.
Na minha opinião é o que acontece quando, na ARBRE de CIÈNCIA utiliza as imagens da árvore com o seus ramos para suporte da exposição das ciências teológicas e naturais. Raizes, tronco, ramos, etc. formam a imagem base que depois de "ampliada" permite entender e solucionar questões.A sua árvore, que Font descreve como "pantaclo mágico", contém e reflecte todo o mundo criado, daí que se assemelhe à Arvore dos Sephiroth, que certamente conheceu.Diz Llull, da sua árvore: car totes quantes coses són, en ello són significades... ( pois todas as coisas que existem, nela estão significadas...).
Concluo com Font :
" No es dificil percatarse de que en la obra de Llull aparece el supuesto de cierta radical analogia cósmica que permite relacionar entre sí los distintos niveles de la realidad ".
Falta só acrescentar que essa influencia poderia dever-se à mística da Kabala judaica, florescendo na Espanha de então.
Ficarão mais claras algumas das afirmações deixadas como enigmas ao longo desta novela maravilhosa, como a que escolhi para exemplo : havia no Amado Misericórdia e Justiça, o que deixava o Amigo entre o Temor (da Justiça) e a Esperança (da Misericórdia, que é Amor ).
Wednesday, June 28, 2006
Tuesday, June 27, 2006
O AMIGO E O AMADO
"Disse o amigo que no seu amado havia misericordia e justiça" .
Lulio, com esta afirmação leva-nos a pensar nos nomes de Deus, segundo a Kabala, e no livro do Zohar, o esplêndido monumento da mística judaica do século XIII.
Na árvore dos Sefiroth estes são dois dos ramos sagrados pelos quais a divindade se manifesta na plenitude do seu ser.
Na segunda metade do século XIII surge em Castela o Sepher-ha-Zohar, ou Livro do Esplendôr.
Contém os diálogos do Rabi Siméon bar Jochai com o seu filho Eléazar e outros amigos do círculo de iniciados.Trata-se de uma obra complexa, múltipla e não contida numa única sequencia de um mesmo discurso : inclui escritos e comentários muito diversos sobre a Torah, o que fez com que durante algum tempo se discutisse se haveria ou não uma autoria única. Gershom Scholem veio finalmente esclarecer este assunto, com o estudo do estilo e da linguagem, afirmando que haveria uma autoria única em pelo menos dezoito dos escritos pertencentes ao Zohar, pela mão de Moisés de Leão, que terá escrito a obra entre 1274 e 1286.
A doutrina do Zohar é " a coroação do Kabalismo espanhol do século XIII " na opinião de estudiosos como Leon Gorny, seguindo G. Scholem.
De raiz gnóstica, terá sofrido influencias do Talmud babilónico e dos escritos de Maimónides, e ainda de um célebre tratado anterior, O Jardim de Nogueiras, de Gikatilia, também do século XIII.
No essencial, e resumindo um pouco à pressa, o Zohar contém uma doutrina teosófica da concepção de Deus e da criação do mundo, através da representaçao simbólica da árvore dos Sefiroth : são dez, com Kether, figurando a primeira Sephira, suprema coroa de Deus, e Malkuth, a última, sob a forma da Shekina, ou de Kneseth Israel, o arquétipo místico da comunidade de Israel.
Entre a primeira e a última Sephira se desenrola toda a criação, sendo um dos seus "ramos" mais importantes Tiphereth, a Misericórdia de Deus, que faz a mediação entre o Amor e a Justiça divinas.
Vemos assim que a árvore dos Sephiroth representa o esquema simbólico da vida divina na plenitude da manifestação. O En-Sof é a raiz e a seiva e a árvore no seu todo a figuração simbólica do mundo. Tudo o que existe é extensão de uma Sephira, de um dos ramos da árvore.
O mistério maior do Zohar consiste na passagem da plenitude do En-Sof à revelação do universo criado, através da passagem por um Nada absoluto, um Nada místico, que permite a sucessiva emanação dos Sephiroth. Esse Nada é Kether, a mais alta Sephira, a Coroa suprema da Divindade.
Bibliografia:
Leon Gorny, La Kabbale, ed. Pierre Belfond, 1977
G.G.Scholem, La Kabbale et sa Symbolique, ed.Payot, 1966; Les Origines de la Kabbale, ed. Aubier-Montaigne, 1966
ZOHAR, Sepher Ha-Zohar ( Le Livre de la Splendeur ), trad. do texto caldaico e notas de JEAN de PAULY, introd. de A.D.Grad,
ed. Maisonneuve et Larose, 1975, 6 vols.
LE BAHIR (Le Livre de la Clarté ) trad. do hebraico e do aramaico por Joseph Gottfarstein, ed. Verdier, 1983
Sunday, June 25, 2006
LLULL , cont. II
Na "Relação" da Livraria de Frei Vicente Nogueira (1586-1654), confiscada pela Inquisição, encontram-se, entre outros tratados de alquimia, os textos de Raimundo Lulio: "Arte de Raymundo Lulio; Raymundo de Alchimia " ( in Y.K.Centeno, ALQUIMIA E HUMANISMO NO PORTUGAL RENASCENTISTA, 1988, 2. Centenário da Academia das Ciências de Lisboa ).
Haverá mais a dizer, mas fica para uma próxima vez.
LLULL, cont.
Nas BODAS QUÍMICAS (estudadas no seu simbolismo alquímico e místico por Rudolf Steiner e por Bernard Gorceix ), lemos no "quinto dia" a chegada à sala onde se encontra o tesouro do Rei,espalhado em torno do sepulcro de Vénus.Passo adiante a descrição do que vai acontecendo ao herói, para transcrever o cântico ao amor que funciona como "chave" dos mistérios que se seguem uns aos outros.
I
Não há melhor sobre a terra
Do que o belo e nobre amor;
Por ele igualamos Deus,
Por ele ninguém persegue ninguém.
Deixai-nos cantar o Rei,
E que todo o mar ecoe,
Nós faremos as perguntas, vós dareis as respostas.
II
Quem nos transmitiu a vida?
O amor.
Quem nos concedeu a graça ?
O amor.
De quem fomos nascidos ?
Do amor.
Sem quem estaremos perdidos ?
Sem amor.
III
E quem foi que nos gerou ?
O amor.
Com que nos alimentaram ?
Com amor.
O que devemos aos pais ?
O amor.
Por que são tão pacientes ?
Por amor.
IV
Quem é vencedor ?
O amor.
Pode encontrar-se o amor ?
Pelo amor.
Quem pode ainda unir os dois ?
O amor.
V
Cantai todos,
Fazei ecoar o canto
Para glorificar o amor;
Que cresça
nos nossos Senhores, o Rei e a Rainha,
Cujas almas foram separadas de seus corpos.
As estrofes VI e VII aludem já ao processo alquímico de Conjunção do dois em um, os corpos do Rei e da Rainha, o que permitirá que todo o sofrimento seja " transmutado " para sempre numa grande "alegria".
Podíamos considerar uma série de fontes de inspiração, desde o Cântico dos Cânticos, passando pelo Nascer da Aurora ( Aurora Consurgens, atribuído a S.Tomás de Aquino) mas de que fará parte com certeza o LIVRO DO AMIGO E DO AMADO de Raimundo Lulio.
Aliás julgo que haveria um estudo a fazer de Bernardim Ribeiro e de Camões neste sentido, para além da influencia da Kabala judaica que Lulio certamente conheceu. Árabes e judeus conviviam naquela Idade-Média de que autores como IBN UMAIL /SENIOR que já citei dão o melhor testemunho.
RAMON LULL, Raimundo Lulio
Libro de Amigo Y Amado, trad e prólogo de Eduardo Moga, ed.Barcino, 2006.
Ramon Lull, de quem nos é dada agora esta edição bilingue, nasceu em Maiorca em 1232 e foi um dos autores mais celebrados do seu tempo. Terá escrito cerca de 250 obras em catalão, árabe e latim, como homem de muitas letras que era, além de visionario reformista e místico.
Uma das suas obras mais citada é o LLIBRE de MERAVELLES ou ARBRE DE CIENCIA, de que encontramos referencias em Portugal, ainda que nos livros proibidos e confiscados pela Inquisição.
O seu pensamento filosófico e hermético terá influenciado autores como Giordano Bruno, ele próprio vítima da Inquisição, e Leibniz, que sabemos ter sido bom conhecedor do rosacrucismo alquímico e da ciência da Kabala.
Segundo reza a lenda, Lull morreu depois de ter sido lapidado em África, possivelmente antes de 1316.
No prólogo de E. Moga podemos ler que Lull conheceu Jacques de Molay, o último Grão-Mestre dos Templários, queimado vivo em 1314, sob acusação de idolatria ( como adorador do Baphomet ).
Era grande o intercâmbio das diferentes culturas, do oriente e do ocidente, e grande o apreço dos europeus de então pelos sábios árabes que da antiga Alexandria tinham trazido boa parte dos conhecimentos mais antigos das ciências, médicas, químicas, outras, bem como da filosofia neo-platónica, gnóstica, alquímica.
Estes saberes circularam, de forma mais ou menos aberta, um pouco por todo o lado.
O Livro do Amigo e do Amado é um capítulo de outro maior, a novela intitulada LLIBRE D'EVAST e BLAQUERNA.
Encontramos nele, segundo o autor, os exemplos dos sábios sufis, místicos apreciados, que despertavam no leitor sentimentos de grande religiosidade. Estamos perante um caso de "livro dentro do livro", o que nos leva a pensar na função que desempenha, de verdadeira pedagogia moral e religiosa.
Rapidamente o Livro circulou já fora da novela, com mérito por si próprio.O seu conjunto de aforismos místicos assim o permitia, seduzindo os leitores que nele bebiam uma verdadeira filosofia do amor. Foram muitas as cópias manuscritas que se fizeram e muitas as edições, posteriormente.
Repare-se agora nesta subtil iniciação a que se vai assistir e de que veremos continuação nas BODAS QUÍMICAS de Christian Rosenkreutz (obra de Johann Valentin Andreae, fundadora do movimento Rosa-Cruz na Alemanha do século XVII ), em Mozart, na FLAUTA MÁGICA, e em Goethe, no poema a Mme.von Stein e no CONTO DA SERPENTE VERDE.
93.
En una gran fiesta reunió el amado una nutrida corte de nobles muy honrados, y les hizo grandes convites y regalos.
Llegó el amigo a la corte.
Le dijo el amado:-Quién te ha dicho que vinieras a mi corte?
Respondió el amigo:- La necessidad y el amor me han traído, para admirar tus facciones y tu porte.
94.
Preguntaron al amigo de quién era.
Respondió:- Del amor.
-De qué eres ?
-De amor.
-Quién te ha engendrado ?
-El amor.
-Donde has nacido ?
-En el amor.
-Quién te ha criado ?
-El amor.
-De qué vives ?
-Del amor.
-Como te llamas ?
-Amor.
-De dónde vienes ?
-Del amor.
-A dónde vas ?
-Al amor.
-Dónde estás ?
-En el amor.
-Tienes algo, además de amor ?
Respondió:- Si, culpas y agravios contra mi amado.
-Hay perdón en tu amado ?
Dijo el amigo que en su amado había misericordia y justicia, y que por eso moraba entre el temor y la esperanza.
Ramon Lull, de quem nos é dada agora esta edição bilingue, nasceu em Maiorca em 1232 e foi um dos autores mais celebrados do seu tempo. Terá escrito cerca de 250 obras em catalão, árabe e latim, como homem de muitas letras que era, além de visionario reformista e místico.
Uma das suas obras mais citada é o LLIBRE de MERAVELLES ou ARBRE DE CIENCIA, de que encontramos referencias em Portugal, ainda que nos livros proibidos e confiscados pela Inquisição.
O seu pensamento filosófico e hermético terá influenciado autores como Giordano Bruno, ele próprio vítima da Inquisição, e Leibniz, que sabemos ter sido bom conhecedor do rosacrucismo alquímico e da ciência da Kabala.
Segundo reza a lenda, Lull morreu depois de ter sido lapidado em África, possivelmente antes de 1316.
No prólogo de E. Moga podemos ler que Lull conheceu Jacques de Molay, o último Grão-Mestre dos Templários, queimado vivo em 1314, sob acusação de idolatria ( como adorador do Baphomet ).
Era grande o intercâmbio das diferentes culturas, do oriente e do ocidente, e grande o apreço dos europeus de então pelos sábios árabes que da antiga Alexandria tinham trazido boa parte dos conhecimentos mais antigos das ciências, médicas, químicas, outras, bem como da filosofia neo-platónica, gnóstica, alquímica.
Estes saberes circularam, de forma mais ou menos aberta, um pouco por todo o lado.
O Livro do Amigo e do Amado é um capítulo de outro maior, a novela intitulada LLIBRE D'EVAST e BLAQUERNA.
Encontramos nele, segundo o autor, os exemplos dos sábios sufis, místicos apreciados, que despertavam no leitor sentimentos de grande religiosidade. Estamos perante um caso de "livro dentro do livro", o que nos leva a pensar na função que desempenha, de verdadeira pedagogia moral e religiosa.
Rapidamente o Livro circulou já fora da novela, com mérito por si próprio.O seu conjunto de aforismos místicos assim o permitia, seduzindo os leitores que nele bebiam uma verdadeira filosofia do amor. Foram muitas as cópias manuscritas que se fizeram e muitas as edições, posteriormente.
Repare-se agora nesta subtil iniciação a que se vai assistir e de que veremos continuação nas BODAS QUÍMICAS de Christian Rosenkreutz (obra de Johann Valentin Andreae, fundadora do movimento Rosa-Cruz na Alemanha do século XVII ), em Mozart, na FLAUTA MÁGICA, e em Goethe, no poema a Mme.von Stein e no CONTO DA SERPENTE VERDE.
93.
En una gran fiesta reunió el amado una nutrida corte de nobles muy honrados, y les hizo grandes convites y regalos.
Llegó el amigo a la corte.
Le dijo el amado:-Quién te ha dicho que vinieras a mi corte?
Respondió el amigo:- La necessidad y el amor me han traído, para admirar tus facciones y tu porte.
94.
Preguntaron al amigo de quién era.
Respondió:- Del amor.
-De qué eres ?
-De amor.
-Quién te ha engendrado ?
-El amor.
-Donde has nacido ?
-En el amor.
-Quién te ha criado ?
-El amor.
-De qué vives ?
-Del amor.
-Como te llamas ?
-Amor.
-De dónde vienes ?
-Del amor.
-A dónde vas ?
-Al amor.
-Dónde estás ?
-En el amor.
-Tienes algo, además de amor ?
Respondió:- Si, culpas y agravios contra mi amado.
-Hay perdón en tu amado ?
Dijo el amigo que en su amado había misericordia y justicia, y que por eso moraba entre el temor y la esperanza.
Saturday, June 24, 2006
McCLUNG,The Architecture of Paradise, 1983
Subtitle: Survivals of Eden and Jerusalem.
I read the book, I then had the pleasure of meeting the author himself and later on publish his Paper, together with others, in a volume on the Symbolism of Space (cities, islands, gardens ): A SIMBÓLICA DO ESPAÇO,cidades, ilhas, jardins, ed.Estampa, Lisboa 1991.
I hope the volume has not been destroyed , as it so frequently happens, when a publisher needs more space (with no symbolism at all...).Back to McCLung.
In Survivals of Eden he quotes Schiller on Aesthetic Education:
"Mankind has lost its dignity,but Art has recovered it and conserved it in significant stones ". Little or nothing has changed,really...
MacClung:
"Paradise is a strange land but a familiar presence; few have been there, but many people have an idea of what it is like. As a garden at one end of time and a city at the other, Paradise is in one sense remote from wordly concerns.But Eden has not been allowed to rest in memory, nor Jerusalem to choose its time of arrival....Both literature and architecture have mainteinde Paradise in our lives as a real presence. In both media the translations, or re-creations, are both literal and metaphoric."
I will leave those interested in reading with a final quotation:
" The line of transmission from mythical to metaphoric models of Paradise is neither single nor direct...It is my belief that the wide range of the present study, though diffusing the pedigree of modern architecture through many areas of inquiry and achievement, will contribute to an understanding of its ultimate source."
The reader will find here a wide range of information on literature, starting with Homer, arts and archeology, as well as on architectural modern and contemporary creators, that will make him or her, as it did with me, a faithful follower of MacClung' work.
Saturday, June 17, 2006
PARACELSO
Edição inglesa dos escritos herméticos e alquímicos de Paracelso o Grande, em tradução de Arthur Edward Waite, com um prefácio biográfico, notas, vocabulário e index (The Alchemical Press, 1992).
Num momento em que tanto parece ser útil (ou ser moda) discutir a arte, e porque pode haver arte sem discussão, mas não sem imaginação (criadora) achei interessante trazer aqui as considerações de Paracelso sobre a imaginação:
"A imaginação do homem é uma virtude expulsiva".
Entenda-se, por esta afirmação, que é forte o poder desta virtude, e operante, no sentido em que produz efeito nas acções, como nas substancias de que o homem seja responsável.
Deste poder de imaginar surge, naturalmente, e sem magia, a criação. De certo modo o próprio universo resulta desse poder, mas agora em Deus.
E afirma ainda o nosso autor:
"A imaginação residente no cérebro é a lua do microcosmo".
Outros, como Dorneus, dirão que a imaginação é a estrela no homem.
Assim se equipara um poder nobre, como o de imaginar, a uma matéria real, celestial, de impacto terreno e humano, quer no bom como no mau sentido, ainda no dizer de Paracelso.
Ao fazer do cérebro a" residencia " da imaginação estava já o filósofo a antecipar as investigações de António Damásio em matéria de neurobiologia.
Quanto às curiosidades alquímicas, não as irei resumir, este volume existe, e pode ser encontrado.
Tuesday, June 06, 2006
Bibliografia...
" Get knowledge, get wisdom; but with all thy gettings, get understanding", diz o velho Mestre citado por W.L.Wilmshurst no seu estudo sobre o significado da Maçonaria: THE MEANING OF MASONRY, Gramercy Books, New York, 1980.
Mas este Entendimento é algo de especial, depende da dádiva da Luz Sobrenatural que por sua vez deve corresponder a um desejo e apelo profundo que se manifeste no indivíduo. Há muito de semelhante com o apelo e a dádiva da fé. Uma das lições é a do estudo, tal como nos alquimistas; incita-se a que não se esqueçam os antigos mistérios e ensinamentos de que todas as práticas simbólicas partiram, pois sem uma tal memória e entendimento tudo se tornará em forma oca, esvaziada de sentido.
Vem isto ainda a propósito do nosso Wagner: no dicionário da Maçonaria de ROBERT MAGOY há uma entrada sobre os Mistérios Odínicos (relativos à mitologia nórdica) com muito interesse para o desenvolvimento da mitologia germânica e a leitura que Wagner fará dela.
A árvore de cinza que vemos na gravura é YGGDRASIL, na qual se supunha que a terra repousava.
É um dos símbolos mais importantes na poética mitológica, este da árvore suporte da vida do universo.
Corresponderia, no imaginário bíblico, à Escada de Jacob , mas enquanto nesta o que se verifica é a ligação que estabelece entre o humano e o divino, o plano material da vida e o plano espiritual que obriga a "lutar" para ser adquirido, com Yggdrasil o que temos é a figuração, segundo os antigos EDDA, de uma ponte que se estende sobre o poço da eternidade.Os seus ramos abarcam o mundo, a sua copa ergue-se acima dos céus.Tem três raizes, uma entre os deuses, outra entre os gigantes, e uma terceira debaixo de Hela (o inferno das trevas, Hoelle, Hell ).
Na raiz do meio, a dos gigantes ( note-se bem e recordemos como são importantes no Ouro do Reno e como desejam o brilho do ouro e Freia, deusa da vegetação e da vida eterna ) está a FONTE DA SABEDORIA, o poço de Hymir.
Perto da raiz dos deuses está a fonte sagrada junto da qual os deuses reunem e anunciam as suas decisões. Desta fonte erguem-se três belas virgens, as NORNAS ou DESTINOS, cujos nomes são: URDUR, o PASSADO; VERDANDI, o PRESENTE; e SKULD, o FUTURO.
Seguem-se as representações animais, nos ramos da árvore: a águia,o falcão, o esquilo,a serpente, cada qual com sua função simbólica.
A cidade no alto da Montanha é ASGARD, e a ela apenas se pode aceder atravessando a ponte BIFROEST, ARCO-ÍRIS.
Veja-se como é indispensável situar no seu contexto as matérias simbólicas de que se ocupam os grandes criadores; muito do que aqui se descreve ajuda ao "entendimento" de Goethe como de Wagner, nas suas obras maiores.
Aos pés de Asgard fica MIDGARD, TERRA MÉDIA , o espaço reservado aos mortais.
O palácio dos deuses, de cúpula dourada, é o VALHALLA, onde reside ODIN ( será o futuro WOTAN ) e para onde as Valquírias conduzem os bravos que sem medo enfrentam os perigos das trevas e da morte.
Será preciso dizer mais sobre o que se impõe estudar para ler por dentro uma obra como a de Wagner ?
Ficarei por aqui.
Wagner, a Ponte
Sublinhando ainda a importância das referencias simbólicas existentes no texto wagneriano, veja-se como a PONTE, tão importante no Conto da Serpente Verde de Goethe, assume aqui um importante papel, de FORMA INICIÁTICA, CONDUTORA para a qual Donner chama a atenção dos deuses ainda assustados com o efeito perverso do anel:
" ...
Irmãos, por aqui!
Que a ponte vos indique o caminho!
(A nuvem desaparece de repente, fazendo surgir de novo Donner e Froh; a seus pés nasce, com cintilante esplendôr, um arco-íris que forma uma ponte sobre o vale até ao castelo, agora reluzindo iluminado pelo crepúsculo...)
Froh (dirige-se aos deuses, após ter indicado com a sua mão o caminho sobre o vale que o arco deve traçar)
A ponte conduz-nos ao castelo,
leve e segura
para os vossos pés:
confiantes e sem medo,segui o vosso caminho!"
(trad. de João Paulo Santos para o libreto de 2006)
Embora subtil, para quem não estude o símbolo no seu contexto, a diferença entre as duas pontes é grande e significativa: a ponte de Goethe, feita do corpo da serpente transfigurada e oferecida a uma causa maior, une as margens do rio (da alma pacificada finalmente, com a série de conjunções que se verificam no progresso da Obra) permitindo o acesso do povo ao Templo que se ergueu das águas . A ponte adquire uma dimensão FELIZ, como diz Goethe a respeito dessa imagem, de esperança e de realização plena, colectiva.
Ao contrário deste autor que certamente o inspirou, Wagner faz da ponte um elemento de puro acesso ao PODER que o castelo representa ( a oposição templo/castelo é aqui pertinente); o coração dos deuses não se comove com a ponte, embora ela seja "transportadora", isto é, pudesse ajudar à modoficação.Ficam absortos na contemplação do castelo:
"O sol,ao esconder-se,
doura dos seus raios
sumptuosos o castelo.
...Assim te saúdo, ó castelo."
(trad.João Paulo Santos)
Só Loge fica para trás, enquanto os outros avançam para o castelo, com a clarividencia do crepúsculo que se abaterá sobre eles.
É de grande interesse, neste caso, estudar a figura mítica de Loge, ( é o deus Lug da Germânia, aparentado ao deus Hermes dos gregos ); é um deus que inicia, profetiza, acelera a transformação,nem sempre positiva.Eis o que diz, no fecho desta ópera, toda ela cheia de prenúncios e de indicações para um futuro ameaçador e já presente, pois no Eterno Viver dos deuses tudo o que será já é,como Erda lembrou.
Loge (ficando para trás, observando os outros deuses)
Precipitam-se para o seu fim,
os que crêem a sua vida tão segura.
Quase tenho vergonha de me dar com eles;
de me transformar de novo
numa labareda crepitante,
sinto um desejo irresistível:
para consumir
os que me conseguiram dominar,
em vez de me afundar
com eles estupidamente,
sejam eles os mais divinos dos deuses! "
(trad.J.P.Santos)
Sendo o fogo (no Conto de Goethe ) uma das forças SUBLIMADORAS não o consegue ser na ópera de Wagner: o comportamento insensato dos deuses (a humanidade, como Wagner a vê) não o permitirá.
E finalmente a ponte, uma vez atravessada, servirá apenas para reforçar, no castelo que tanto tinha sido desejado, um isolamento e um egoísmo cegos.
Os deuses riem, enquanto as filhas do Reno choram o ouro ( a alma) perdida.
Nota: Nos Altos Graus da Maçonaria a Ponte tem uma função maçónica,sendo um símbolo importante.
Se é certo que Goethe não desconhecia tal facto, no caso de Wagner podemos apenas suspeitar que a simbólica maçónica lhe fosse acessível. Mesmo não sendo maçon, certamente teria conhecido "Irmãos", teria nas conversas de salão aprendido o suficiente, e nos autores mais em voga ( como Zacharias Werner, entre outros, para não repetir Goethe ) completado os seus conhecimentos.
Em PARSIFAL veremos desenvolver-se todo um processo iniciático simbolicamente conduzido na perfeição, se me é permitida tal linguagem.
Gilbert Durand, wagneriano assumido, não descarta a hipótese de Wagner também ter sido iniciado; tanto na corte, como entre as élites artísticas, era frequente o interesse por essa marca de distinção e superioridade. Recordo Lessing, e a importância que os seus escritos maçónicos tiveram nas gerações posteriores.
Graham Vick
Louvando o mérito desta iniciativa de trazer de novo a Portugal a TETRALOGIA, embora num decurso de anos, tenho algumas objecções às escolhas do encenador:
prejudicou sem dúvida, pela enorme distância que separava a orquestra dos cantores, o equilíbrio musical do que se ouvia dos vários pontos em que o público foi colocado;
não me incomodou o tratamento kitsch, post-moderno, de algumas das figuras, embora se anulasse com isso o simbolismo de que deviam revestir-se, como entes de sombra, pulsões de uma natureza primordial, forte e apelando à sublimação;
já me incomodou mais a aplicação de uma grelha puramente política , de ocasião ( Bush não será eterno, a obra de arte sim) em vez de uma apreciação filosófica e estética como Wagner merecia ( algo que Patrice Chéreau compreendeu magistralmente );
tornou-se visível o porquê de um palco desmesuradamente alongado, obrigando a modificações caríssimas da estrutura de cena, sem outra justificação que não a de fazer caber lá o imenso foguetão com que o encenador desejou arrancar os aplausos de uma plateia sempre disponível para as propostas "diferentes".
Thursday, June 01, 2006
Erda
Erda:
Wie alles war - weiss ich;
wie alles wird,
wie alles sein wird-
seh ich auch
...
Alles, was ist, -endet !
Como tudo foi-eu sei;
como tudo é
como tudo será-
também eu vejo
...
Tudo o que existe,- acaba!
Erda, a Terra-Mãe (terra diz-se Erde em alemão, mas foneticamente lê-se como Wagner escreveu, não por acaso, é claro), é a voz primordial de toda a criação, e assim se define, como Jahveh ao dizer" eu sou aquele que foi, é e será", ou seja, o que os define é a própria essencia da eternidade, daí que possam profetizar, um e outro, sobre os tempos vindouros.
Neste caso a profecia é a do fim inevitável, que Wotan, na sua avidez, ajudou a precipitar.
Erda aconselha-o a desfazer-se do anel, mas os dados do destino sombrio estão lançados.
Wotan subirá ao castelo,mas as filhas do Reno, a quem o ouro foi roubado, não esquecem tal afronta e o Prelúdio da Tetralogia termina com o apelo, vindo das profundezas da água : "gebt uns das Gold/ O gebt uns das reine zuruck! " Devolvei-nos o ouro /Dai-nos de volta o puro.
A questão de uma unidade harmoniosa e pura é assim posta, renegada e temporariamente esquecida por aqueles deuses que "riem" enquanto atravessam a ponte para o castelo e "rejubilam".
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