Tuesday, November 30, 2010

O Olhar de Luciane


É uma escritora amiga, de voz carregada de emoção e turbulência, fazendo por vezes evocar Comte Lautréamont, ou o nosso Herberto Helder.
Brasileira, ainda assim, de longe, perto de Portugal.
Em breve a poderemos ler na MEALIBRA, aquela revista de pura resistência e amor à literatura e à arte.
Escreve Luciane o que significa simbolicamente "um olho surgindo de um redemoinho de um lago?".
Aí começa, ou termina, glorificada, a aventura que foi da alma.
Luciane tem uma sensibilidade carregada de uma intuição próxima dos surrealistas e aqui deveria eu citar naturalmente o filme de Buñuel, Le Chien Andalou, com a célebre cena do olho imenso a ser atravessado por fina lâmina. O filme foi, ao tempo, uma espécie de cadavre-exquis feito por ele e seu amigo, depois inimigo de estimação, Salvador Dali. Concebido mais para chocar a burguesia em dormência, repudiar a narrativa lógica e complacente a que se estava habituado.
Podemos também ir ainda buscar o estarrecido olho de Magrittte (Le Faux Miroir), o pintor que brinca com o seu e nosso imaginário, e gostava de dizer que não, não era surrealista.Mas tudo na sua obra permite, para além do exercício do jogo e do prazer do belo na sua aparente crueza (Jeu et Joie) uma leitura simbólica. O mesmo com esse seu olho: ele não nos vê, nós é que através dele vemos um céu azul de surpresa. Não é um olho que espreita,é um olho que convida a espreitar.
Mas na realidade, aquela imagem forte de Luciane, tirada das águas de um lago, num remoinho, como quem nasce de sopetão, e logo vê ( pois se trata de um olho) apela a outras e quem sabe mais sofisticadas interpretações. As águas de um lago são em geral dormentes - por aí se apela ao sonho.
E quanto ao remoinho, muito havia a dizer: como energia espiral que é ou afunda ou, como neste caso (pois emerge das águas do lago), sublima.
Pausa para mais uma sugestão: ler The Mystic Spiral, journey of the soul, da autoria de Jill Purce.
Neste sonho houve revolução: um remoinho que traz consigo um olho.
Esse olho, antes direi olhar, representa a experiência que se viveu, das águas profundas de um inconsciente quem sabe se adormecido, ou negligenciado nos seus sinais, e que de repente se materializa, se torna visível (se torna olho, olhar) para que se opere, na consciência, uma transformação. A que os alquimistas definem como de clarividência: ooculatus abis, partes munido de olhos, é assim que se conclui o Mutus Liber, oLivro Mudo assinado por Altus.
Remeto os leitores para o excelente estudo de um erudito brasileiro, José Jorge de Carvalho, que faz deste livro uma bela edição comentada , na ATTAR Editorial, São Paulo, 1995. Excelente para quem só possa ler em português, e se interesse por estas matérias herméticas.
Na décima Quinta Prancha, a última do caminho que o adepto percorre, na sua busca e meditação, encontramos, no interior de um círculo mandálico um sábio coroado, envolto numa dupla legenda que o adepto e a sua companheira erguem e na qual se lê: oculatus abis, partes munido de olhos, isto é clarividente, sábio.
Sabedoria adquirida (pela experiência de vida e seu entendimento, integração) é pois o que a imagem forte de Luciane - terá sido de um sonho? de um poema? de uma pintura sua? - pretende transmitir.
Na gravura, que aqui reproduzo, vê-se que o sonhador ( na alquimia tudo se reporta à visão arquetípica, ao sonho, ao mundo do inconsciente) está deitado no chão sob um sol e uma lua que indicam a complementaridade dos opostos; o seu corpo está nú porque ele atingiu o despojamento de uma materialidade despicienda, e pode agora, em sublimação perfeita, ascender a novas esferas de vivência espiritual e transcendente.
Abandonada atrás, no chão, uma escada: a de Jacob, a que é preciso subir lutando com o Anjo : a verdadeira luta pela vida, pela sobrevivência espiritual.
Esta última imagem fecha o círculo da primeira com que o Livro abre, onde se vê o adepto adormecido sob o um céu escuro, de noite ( a nigredo com que tudo começa)e erguido à sua frente um Anjo a tocar trombeta, a meio duma escada vertical (na última imagem a escada já repousa na horizontal, já não faz falta).
O toque do Anjo é um toque a despertar, a pôr-se a caminho.
Começou deste modo a Obra alquímica.
Terminará com a visão superior que o olhar simbolizado indica.
Mais do que o "Olho de Deus" que tantas vezes vemos reproduzido ou sugerido, em textos religiosos ou em poetas místicos, como um Celan, por exemplo (de um misticismo feito de sofrimento e negação) este olho-olhar de Luciane me parece mais a forte expressão de um caminho, de turbulência vivida e renascimento que também só a água, como elemento primordial que é, junto com o fogo, nos permite.

Thursday, October 21, 2010

Pessoa e mais Pessoa...


A pergunta mais difícil é essa de quem foi, é, (visto que a sua actualidade não parece perder-se, Fernando Pessoa).
Os estudiosos que querem investigar a sua personalidade, carácter, comportamento face à realidade da vida e do seu quotidiano banal, tentando distinguir a vida da obra, têm dificuldades várias a ultrapassar. A mais importante é a de que Pessoa não queria separar vida e obra, fazendo da obra a sua verdadeira vida.
Foi biografado por João Gaspar Simões : Vida e Obra de Fernando Pessoa, História de uma Geração.
Trata-se de uma obra indispensável para qualquer estudioso, pois nela se retrata uma infância (mais tarde sonhada e perdida, que podemos ir acompanhando pelos diversos poemas dos diversos heterónimos), uma adolescência e uma vida madura, esta já plenamente integrada nas correntes (nos ismos) da época com os projectos que despontavam e regularmente se iam abandonando porque tudo era difícil num país que vivia ainda de um Messianismo mais do que ultrapassado, mas em que Pessoa, com alguns outros, teimava em acreditar.
Portugal não chegou a ter esse destino de eleição, mas Pessoa acabou por tê-lo, ainda que tardiamente, com a riqueza e complexidade da sua obra.
Omitindo agora a produção poética, é sobretudo nas suas leituras que descobrimos um espírito ávido de saber: dos clássicos aos modernos, há de tudo na sua biblioteca pessoal. E quando digo modernos digo Joyce, na literatura, Freud, na psicanálise ou Eisnstein na teoria da relatividade.
Não se pode esquecer a paixão pelo esoterismo que até na poesia veio a ter marca especial.
Começou pelas Histórias da Religião, depois passou aos Gnósticos, à Mísitica judaica, com a Kabala em pano de fundo, seguiu pelos caminhos que Goethe já seguira ( e Pessoa tinha o Fausto na sua biblioteca) dos Rosa-Cruz e da Maçonaria.
Fosse ou não iniciado, - ora dizia que não, ora deixava entender que sim, mas em quê? Na dormente Ordem do Templo, sobre a qual escreveu? Na Sociedade de Teosofia, que nega haver nos arquivos algum documento que se lhe refira?
Pouco importa.
Se querer conhecer é já ser iniciado, Pesoa foi, por tal desejo, que o acompanhou toda a vida, um iniciado na Espiritualidade.
É extensa a bibliografia disponibilizada ao longo dos anos pelos estudiosos da obra pessoana, encontra-se publicada por José Blanco: Fernando Pessoa, Esboço de Uma Bibliografia.
Junto com esta, mas sem a substituir, a edição de João Rui de Sousa, Fernando Pessoa, FOTOBIBLIOGRAFIA, 1902-1935.
Para além destas obras, de vasta informação, haverá outra obra indispensável, de Maria José de Lancastre:
Fernando Pessoa, Uma Fotobiografia.
Foi pioneira, com muito material inédito e pleno de informação sobre um quotidiano inscrito em cartas e fotografias e outros documentos que ajudam a ver o Pessoa-pessoa por trás do grande poeta.
Numa fotografia de 1907 vemos o Jovem Fernando ao lado da tia Anica, que será, até certo ponto sua confidente no tocante às materias mais herméticas, como as do espiritismo.
Mas o que escreve o jovem, nos seus apontamentos, só depois da sua morte conhecidos, mais concretamente quase cinquenta anos mais tarde, quando o espólio começou a ser estudado, àcerca de si mesmo?
“Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada.Não posso incomodar os meus amigos com estas cousas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome, no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a ter um verdadeiro amigo íntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu.(…)Acabemos com isto. Amantes ou namoradas é coisa que não tenho; e é outro dos meus ideais, embora só encontre, por mais que procure no íntimo desse ideal, vacuidade e nada mais.Impossível, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo!”
É bom saber que Alastor é o título de um poema épico de Shelley, e que representa o espírito da solidão: Alastor or the Spirit of Solitude, publicado em 1917, ajuda a datar a partir desse ano o pequeno fragmento de Pessoa,no seu desabafo.
Mas há mais.
O nome Alastor deriva da mitologia romana, significando “espírito do mal”, que podemos modernamente entender como um daimon, uma energia negativa da alma mas que, como em Platão, conduz o imaginário do poeta, é como que a fonte da sua inspiração.
O que nos conta o poema? A vida de um poeta que busca intensamente a esfera mais oculta da natureza, a mais obscura, as “ estranhas verdades das terras desconhecidas”, situadas no oriente.Vê em sonhos uma jovem coberta por um véu e isso representará para ele a visão da transcendencia para além do mundo natural. Algo como que o espírito e a matéria tal como deviam existir em união no amor humano.
Mas a visão perde-se, esfumada no sonho, e a busca do poeta, interminável, irá levá-lo por muitas aventuras, das quais a mais interessante é, ao quase morrer afogado, descobrir a mutável natureza do homem, na sua humanidade, que a transcendencia envolve, como que no berço da sua infância.
É então que o poeta aceita que só a morte o pode libertar das contigências do mundo natural.
Pessoa, na sua solidão, que vive e que descreve como o poeta de
Alastor, é já por estes anos uma figura pública das letras da época, com os amigos de Orpheu.
Sendo um poeta sensacionista não deixava de cultivar os mais extremos autores do romantismo ingles, como neste caso, identificando-se com os seus heróis, com as suas ânsias mais secretas.
É visível em muitos outros casos como este, a complexidade da natureza psíquica e artística de Pessoa. Tudo viver, para tudo dizer, com a consciência de que tudo viver é impossível.
Ficam então, para o mundo, as experiências e publicações dos heterónimos. E um namoro meio- sério, meio-brincalhão, meio- sofrido, com uma Ophélia “pequenina”.
Ocultas ficarão outras preocupações, as insólitas buscas de outra coisa, noutras esferas que se sabe de antemão serem inacessíveis.
Fernando Pessoa situa o início da sua produção juvenil “por volta de 1904”. De facto são dessa data os primeiros poemas ingleses de Alexander Search e já neles se definem, até 1910, os grandes temas em que parte das suas características se manifestam: reserva e mesmo repugnância física em relação ao corpo, à aproximação de outrém que pudesse existir; o gosto decadentista do macabro, como na novela A Very Original Dinner (1907) ou o gosto pela obra de Poe, de quem traduziu O Corvo e à sua maneira imitou o conto policial, e uma permanente e quase dolorosa interrogação sobre o sentido da vida, o mistério do universo – mistério àcerca do qual o heterónimo mais tarde assinando pelo nome de Alberto Caeiro dirá que pouco ou nada lhe interessa, fingindo, em fingimento puramente poético, que só interessa o que o olhar abarca, o que os sentidos sentem ou pressentem.
Este Alberto Caeiro, apontado por vezes como Mestre, é um mistificador do verdadeiro Pessoa: o poeta esconde-se por trás dessa máscara, cuja beleza e inspiração panteísta (algumas vezes descrita como de inspiração Zen) é impossível de negar, mas que não deixa por isso de ser máscara.
O que esconde? Esconde o que revela: uma constante preocupação com o sentido da vida, do espaço que na vida é concedido ao homem (ao homem, não ao poeta, esse inventa através dos heterónimos todos os espaços de que precisa), ao homem centro do mundo e do universo, tal como o entendem os filósofos herméticos.
O homem-Pessoa é, desde que começa a pensar e a escrever, meditando na sua solidão, um paradigma do filósofo hermético.
Na sua biblioteca encontraremos as leituras marcantes, dos clássicos gregos a Shakespeare e Milton, continuando pelos românticos, pelos Simbolistas franceses, sobretudo Baudelaire,
não esquecendo Mallarmé, a sua musicalidade, Maeterlinck e o exercício do silêncio, continuando com os Futuristas (que lhe inspiraram a ele e a Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro os vários ismos com que entre nós se apresentaram).
Mas recordo que Pessoa citará em especial Cesário Verde (esse de verdade o Mestre, diz Pessoa, sem que ele próprio o soubesse). E Antero de Quental, cuja obra teria agora de ser novamente lida, com outros olhos, os do nosso poeta, que o admira.
A curiosidade pelo Oculto e as práticas do Ocultismo, datam de longe.
Numa carta à sua tia Anica, de 1916, escreve como sente que está a desenvolver qualidades “não só de medium escrevente mas também de medium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam ‘a visão astral’ e também a chamada ‘visão etérica’.Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas”.
Podemos afirmar, pela quantidade de livros relativos ao Ocultismo em geral, guardados na sua biblioteca, que o interesse nunca se perdeu, fosse qual fosse o bom ou mau ou nulo resultado de tais investigaçõess ou práticas.
Há um pequeno documento encontrado no espólio em que afirma que a mediumnidade diminui as capacidades intelectuais e por essa razão não deve ser praticada.
Mas noutros textos explicará como a bebida funciona como dispositivo de “abertura”, mágico ou mesmo místico, pelo menos surreal, para a criação literária, no seu caso.
Não desconhecia a chamada escrita automática, que também praticou, e é talvez mais explícita nos arroubos de Álvaro de Campos. Como não desconhecia a meditação dos exercícios de Yoga – há os livros que comprovam ao menos a leitura, já que da prática não nos chega a falar.
Ao seu espírito de curiosidade insaciável tudo interessava, da cultura oriental como da ocidental.
Tentando compreender o homem, pela evolução do poeta e da sua poesia, a imagem que fica é a de um adolescente tímido, mas curioso, impetuoso na sua ânsia de criar em liberdade – sair era o seu desejo máximo - sair do seio de uma família burguesa que não o compreendia, sair do seio de um meio cultural, politico, artístico, igualmente limitado, sair para marcar a sua diferença nunca aceite.
Que eu tenha usado aqui, sem pensar nisso, a palavra seio – não será um acaso, mas quem sabe uma indicação já do poeta: renascer era o que ele profundmanete desejava; ser outro, um outro reconhecido e aceite como se reconhece e aceita o filho que se tem.
Não foi o caso, pois as incógnitas permanecem, e os poemas da maturidade o proclamam: o Pai Rosa-Cruz conhece e cala…
Ficamos então com um adulto prematuramente envelhecido – mas ele já era velho em criança, quando jovem e torturado adolescente… (de Jean Seul a Alexander Search a escolha dos nomes são indicação) - poeta para quem as imagens da infância se vão tornando recorrentes, repetidas em todos os heterónimos.
Podemos acrescentar, pelas cartas a Armando Côrtes –Rodrigues, que sempre foi, tal como o amigo, um espírito fundamentalmente religioso, consciente “da terrível importância da Vida” o que o impossibilitava de “fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós próprios e para com a humanidade” (carta a A.C.R., de 19 de Janeiro, 1915).
Essa consciência de um dever outro, para além da arte, embora a arte fosse a aventura que lhe consumiu a vida, é o que o torna mais uma vez diferente e o afasta dos seus contemporâneos.
Os excessos dos futuristas tiveram o seu tempo, e esgotaram-se nele. As fantasias de um novo movimento, o Sensacionismo, de que Sá-Carneiro seria expoente máximo, - esgotaram-se também, com o seu suicídio em Paris.
O que fica a Pessoa? A própria obra, a própria interrogação, a ânsia das respostas que não chegam.
Em Acrónios, livro de poemas do seu amigo Luís Pedro Moitinho, em cujo escritório Pessoa trabalhou, e para o qual escreveu um prefácio discreto, de parcos ou nenhuns elogios (pois lhe faltava a modernidade de linguagem desejada pelos de Orpheu), podemos ler um poema dedicado a Mário de Sá Carneiro (já falecido a esta data de publicação do livro, 1932) e a Fernando Pessoa:
A Tristeza de Nunca Sermos Dois
Eu sou o reflexo do alem
sôbre mim.
Distante e perto de ninguem
assim,
eu sou sombra e realidade,
penumbra e espectro.Sou tudo
fóra da homogeneidade.
Porque canto, mudo,
o que há-de
mostrar àquilo que só eu sou,
sinto-me afastar
para um logar
que ninguem
alcançou
aquem.
Outro de mim permaneço
no logar inicial.
Com sono, não adormeço
porque, outro, faço ruídos.
Embebedo-me de ideias
para conseguir um fim.
Com os sentidos
adormecidos,
assim,
fico mais perto de Mim.
(pp.37-38)
Eis como foi visto por este amigo, na sua relação com Mário – quem sabe se a única que de verdade teve e prezou como nenhuma outra.
Vingou-se, deixando para a posteridade uma arca com mais de vinte e sete mil documentos de que se ocupam agora os estudiosos, os curiosos, toda a sorte de gente.
O importante é que o leiam sempre.

Wednesday, August 18, 2010

Fernando Pessoa na Edição Crítica

Já referi, neste blog como no outro, de Literatura, a importância, para os estudiosos, da edição crítica das obras de Pessoa.
Os volumes vão saindo intermitentemente mas só por eles, na realidade, podemos avaliar como era complexa a mente do poeta, a sua sensibilidade, a sua energia criadora e como se desdobrava na voz dos heterónimos sem perder o fio, sem perder uma funda unidade estruturante de consciência.
Já abordei o caso Jean Seul, com características próprias do que se chamaria de fase rudimentar de criação, e dei como exemplo de interesse para os temas continuados de dimensão maior o heterónimo Alexander Search e a sua produção em língua inglesa.
Vejamos agora o vol. I da poesia de Fernando Pessoa, editado pela mão de João Dionísio, abarcando os anos de 1915-1920.
Num poema de 1917 , ao mesmo tempo que pela mão de Álvaro de Campos se gritava bem alto o Futurismo, com Almada Negreiros e outros, sofria Pessoa noutro espaço de silêncio ( o poema que vou citar estava inédito no espólio, só agora é transcrito) da solidão aprofundada pelo suicídio de Mário de Sá Carneiro, o amigo inesquecível. E não só: sofria ainda da consciência que tinha do vazio desse estertor social que viria a ser de curta duração.
Pessoa nunca se afastou de si mesmo, na sua escrita mais sincera e mais oculta, e uma atenção especial a imagens e símbolos que atravessam obra ortónima e heterónima permitem confirmar o que digo. Daí a actual e indispensável utilidade da edição crítica.
Estamos pois em 1917: já existem todos, Ricardo Reis, Cairo, Campos, Pessoa ele mesmo.
Alexander Search tinha definitivamente deixado de existir :
EPITÁFIO
Aqui jaz A(lexander) S(earch)
De Deus e dos Homens abandonado,
Da natureza troçado em dôr;
Não acreditou em igreja ou estado
Em Deus, homem, mulher ou amor,
Nem na terra aqui ou no céu além.
Do seu saber isto lhe vem:
(...) é rotina o amor,
Nada no mundo há de sincero
Salvo luxúria, ódio, medo e dor
E mesmo estes ultrapassados
Pelos danos por eles causados.

Ele morreu aos vinte e tal anos
Sentindo ao morrer só esta certeza:
Maldito o Homem, Deus e a Natureza.
(trad. Luisa Freire)

Não está datado, mas como Pessoa atribuiu a Search a data de nascimento de 1887 - um ano antes da sua própria data - podemos imaginar que teria morrido em 1910 e este epitáfio poderá talvez ser remetido para esse ano.
Voltando ao que interessa: na poesia de Search há temas variados , é certo, mas alguns de preocupação recorrente com o mistério de Deus, da Natureza e do Homem, como em Goethe, sobretudo no Fausto. E Pessoa também tentará o seu Fausto, de que se conhecem os fragmentos.
Eis o poema que me chamou a atenção ( relembrando que Search, num primeiro momento, tinha escrito um poema à Mão: To A Hand).
Este já é do próprio Fernando, e data de 1917:

O Poeta sente a Mão de um destino que lhe pesa:
Na sombra e no frio da noite os meus sonhos jazem.
Um frio maior cresce do abysmo, e decresce.
Toca-me o coração de dentro a Mão que conhece.
As estrellas sobem. Por cima de mim se desfazem.
Ah de que serve o sonho? O que acontece
Não é o que nós queremos, mas o que os Deuses fazem.
....
Jaz no chão com meus sonhos a cinza de todas as vidas.
(ed. João Dionísio, vol.I )

Estudei o simbolismo desta imagem da mão em antigo ensaio do meu livro com S.Reckert, Fernando Pessoa,Tempo. Solidão. Hermetismo. (1978) e noutro posterior, Fernando Pessoa, O Amor, A Morte, A Iniciação (1985) com mais detalhe. O citado poema de Search, demasiado longo para que o transcreva aqui, é de 1906.
E já nele consta o exercício de contrários que pesam na alma, que a ensombram, que impedem que um desejo real correspondente ao pedido do primeiro verso " give me thy hand" se materialize de uma forma ou de outra, nas estrofes seguintes em que se adivinha algum desejo de amor ainda que intimidado pela ânsia, hesitação ou medo
Pede a mão, afirmando que vai ler nela (como um visionário ocultista,ou um vidente) tudo o que contém: um mundo de esperanças , de sentimentos e sofrimentos, mas o que deseja é acima de tudo descobrir o mistério dos mistérios (The mistery of mysteries).
De estilo marcadamente decadentista, a mão é descrita como delicada e branca, mas contendo o dia e a noite, com algo de selvagem e irreal ( o que logo revela a distância que o poeta assume em relação a esse toque delicado) e pior ainda, revelando que a mão não é uma mão mas a expressão de um Facto que o aterroriza.

Esse Facto se tornará em Fado, em Abdicação e Destino, na produção posterior, já em português, a língua que é a sua verdadeira ( e oculta) pátria.Termino com DOBRE, de 1913 (ed. Maria Aliete Galhoz, de Cancioneiro, em Poesia de Fernando Pessoa):
DOBRE
Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma fôlha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.




Wednesday, July 21, 2010

Para R.R.



A este leitor amigo, curioso de simbologia, alquimia, esoterismo em geral, desejo lembrar que, ao ocupar-se da obra poética de Fernando Pessoa, deve ter em conta:
1.
que ele foi um leitor insaciável; observando os títulos dos livros que sempre o acompanharam se verifica como era vasto o seu conhecimento das diversas matérias relativas à história das religiões, aos mitos e símbolos das mais diversas culturas, do ocidente como do oriente e, na síntese proposta pelos teósofos, como julgou aí poder descobrir algum novo sistema, universal e adequado à nova sensibilidade da época.
2.
que apesar do estudo das antigas tradições não se afastava do tempo que era o seu, das correntes de pensamento que eram as do seu tempo, e de um desejo de permanente actualização, por meio de livros e da correspondência regular com os amigos mais próximos, entre eles Mário de Sá-Carneiro, o mais admirado de todos.
3.
com a revista Orpheu, que se esgotará no projecto do n. 3, sonhava Pessoa, com os seus amigos, renovar o panorama da criação literária e artística em Portugal e no mundo ( a Europa); a ideia - não se chegará nunca a uma doutrina sistematizada- era a da prática livre e mesmo libertária da escrita, uma escrita de fontes e de inspiração tão complexa quanto a de um William Blake, que Pessoa cita ou de um Walt Whitman, que cita igualmente e cuja obra Leaves of Grass será a marca maior da produção de Álvaro de Campos, o heterónimo semi-futurista; digo semi- porque nem tudo o que é atribuído a Álvaro de Campos se pode considerar futurista, tendo em conta os Manifestos conhecidos; há muito de panteísmo em Campos, um prazer dos sentidos e identificação com a natureza que se pode colocar sob outras bandeiras, a de Verlaine, por exemplo, em alguma da sua poesia de decadentismo simbolista.
4.
Agora que se vai dispondo gradualmente de uma edição crítica dos materiais do espólio pessoano não há razão para que não se tente encontrar nos fragmentos datados, mais antigos, a semente do que se vai seguir, maduramente, mais tarde.
Eis um exemplo, de um dos primeiros heterónimos, o francês Jean Seul ( já era Seul, sozinho; mas há razão para que seja francês, a influência do que Pessoa lia à data):
SEUL
Rien n'est; tout passe,
Tout est son cours,
Le jour se lasse
D'être le jour.
Les pleurs qui coulent
Déjà s'écroulent,
Les yeux qui (...)
Le temps -vautour.
Roule donc boule
Roule donc, roule
Toujours, toujours.
5.
No volume VIII da edição crítica, que contém os fragmentos de Jean Seul, há de tudo um pouco:
Projectos, de longo fôlego mas nunca realizados, referências a livros, a ideias, a autores como Nordau e suas teorias da degeneração e, interessante por corresponder a uma ideia feita sobre a sociedade francesa do tempo, várias referências à corrupção moral, aos costumes devassos, à contraposição da matéria e do espírito - buscando o Sublime ao citar, ainda que de forma irónica um Maeterlinck, entre outros.
Há que ler, para ter a noção de como a imaginação do poeta e a mão que ela conduzia por papéis infinitos, numa língua muito mal dominada, o francês, se perdiam enquanto procuravam; mas na procura residia o mérito e nessa incessante leitura de procura se viria a fundar a grande poesia que hoje conhecemos.
6.
Neste fragmento incipiente, pois não é mais do que isso, já encontramos no entanto um dos núcleos centrais da poesia de Pessoa: a reflexão sobre o tempo, o tempo que passa, que tudo devora (o tempo- abutre). Para situar este poema que ainda não é, está em devir, teríamos de entender o tempo como roda e rio ao modo de Marie-Louise von Franz, obra que já referi neste blog; e de Verlaine, para directa inspiração o poema il pleure dans mon coeur....bem como um outro, célebre e rodopiante, tournez, tournez, bons chevaux de bois...
Dir-se-á : não há provas explícitas; pois talvez não, mas há as leituras, a contaminação própria de símbolos e arquétipos, como neste caso o dos cavalos do circo da alma, e outros tantos que, nesta fase juvenil de criação se identificam com o que Verlaine chamou a "grande ville" e Pessoa sentia como a grande Babilónia, a grande prostituta do Apocalipse.
7.
Noutro texto, Pourriture psychique, do mesmo Jean Seul, o título já indica o ambiente do que descreve o fragmento:
Quand la matière a fait son rôle,
Eternisé /dans un moment
Dans le / passage/ court et drôle
Un être qui n'est que néant,
Et dans l'éternel mouvement
Qui est sans...
(Et la matière vide et nue)
Par où la beauté a / passé/
Dans la matière est / dissolue/
...
Et l'esprit - oh, je n'en sais rien
Était-il appui ou soutien?
Était-il forme ou apparence?
N'a-t-il(...)

Et la pensée dissolue Mais (oh! miracle pas d'un Dieu)
Dans chaque lieu entière et (...)

Et cette pourriture de l'âme
Est moins laide que la Beauté.

Sim, teremos de buscar em Baudelaire a fonte primeira de inspiração no horror da Beleza, na podridão dos cadáveres sobre os quais essa Beleza dança.
Deixo a indicação, não citarei aqui esses poemas.
Finalmente, uma chamada de atenção para o notável trabalho de transcrição dos investigadores do Espólio. Escolho uma das páginas para que o meu leitor tenha a noção das dificuldades com que se deparam; e aproveito, na esperança de que haja futuras reedições, para corrigir um erro de leitura na transcrição desta página: o ms diz:
les coeurs puent (os corações cheiram mal) e não, como leram, les coeurs prient (os corações rezam); é um detalhe, mas altera o sentido do que se deve compreender.
8.
A maior parte dos fragmentos reunidos pretende ser uma sátira moral aos costumes da época, numa França que já os decadentistas tinham glosado.
Pessoa, através de Jean Seul, insiste num vocabulário com que pretende escandalizar o leitor, abundam (sempre em francês) excrément, merde, ordure,etc.,etc.
De vez e quando uma aparente conclusão:
L'excrement, c'est la littérature qui aujourd'hui abonde.
Perdoem-se os erros de francês, e evoque-se outro autor, certamente banido nos meios burgueses daquele tempo: o Marquês de Sade!
Cedo a palavra ao ao nosso poeta:
Le lecteur aura remarqué un peu scandalisé et (...) que j'emploie incessament des termes sales, tels qu'ordure, merde, etc.(...) C'est une chose étrange que quand j'écris sur ces auteurs je ne pense qu'à ces saletés. Je ne peux penser à ces M.M. sans penser à merde et à de l'ordure. Du moment que ma pensée se dirige sur ces M.M. elle (...) trouve immédiatement de la merde, de l'ordure, de la saleté. C'es un phenomène d'association d'idées sur lequel j'appelle l'attention des personnes compétentes.
9.
O que diriam os nosso leitores se eu sugerisse que afinal este ou estes M.M. não é outro senão Maurice Maeterlinck, o da sublime influência, o que está seguramente na origem da discussão do simbolismo, do símbolo e cia. e do notável texto, o drama estático O Marinheiro?
O drama que será objecto da ironia de Álvaro de Campos, o insubmisso, que dirá tranquilamente:
"A Fernando Pessoa
depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orfeu 1
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa Magia:
'de eterno e belo há apenas o sonho.
Por que estamos nós falando ainda?'
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
(1915)
10
Agora sim, para concluir: veja-se como é complexa e tem de ser múltipla e aberta qualquer abordagem que se queira fazer da obra poética de Fernando Pessoa.
Mas esse é o desafio.













Tuesday, June 22, 2010

O Mito da Terra Perdida

Da autoria de Davide Bigalli, sugestão para estudiosos que gostem de continuar a ler em férias, obras de temas sedutores, como este, da Terra Perdida, da Atlântida de Platão a Thule, que reencontramos na balada do rei de Thule de um poeta como Goethe.
A nostalgia da Terra Perdida, que se transforma em Terra Prometida pelo milagre da nossa imaginação é agora satisfeita com esta obra, cuja leitura recomendo.
O logo da edição fala por si: Secretum, com o S no centro da serpente ouroboros.
Feito o périplo, da Atlântida ao Paraíso, como diz o autor, recomendo em especial o último capítulo da Parte III :
a terra oca ( la terra cava) e os mitos do século XX.
Era escondido numa caverna da montanha que o adepto alquimista de outrora, como na Atalanta Fugiens de Michael Maier e outros, poderia redescobrir o universo ao redescobrir-se a si mesmo.
Mas os mitos da Terra Oca são algo de diferente:
pressupõem um espaço oculto, de redenção e perfeição, no centro mesmo da terra onde uma nova humanidade-fundadora daria origem a uma nova terra, a esperada, a Prometida.
Humanidade e Perfeição Ilusórias que, no caso de um Horbiger, que o autor cita, e Hitler e seus seguidores, levaram o mundo aos pior dos horrores: a crueldade e o caos da Segunda Guerra Mundial, cujos efeitos ainda se fazem sentir.
Os mitos têm isso de complexo, na sua essência:
a sombra nunca anda muito distante da sua luz, o horror ( o culto e o serviço absoluto da Ideia Pura) integra o êxtase da Revelação ansiada.

Sunday, June 13, 2010

Círculos e mais círculos, para a Luciane G.




Para qualquer dúvida que tenhamos sobre algum símbolo, o seu significado, que pode ser múltiplo, é sempre útil consultar um bom dicionário de símbolos.
Há muitos, um dos meus preferidos é o de Jean Chevalier, nas edições Laffont.Mas há outros e o importante é que o grupo de colaboradores seja constituído por eruditos de reconhecido mérito.
Infelizmente basta alguma matéria se tornar moda para que apareçam logo imensos "sábios" disponíveis e de cultura vaga e confusa. Esses prejudicam quem queira mesmo estudar.
Vem isto a propósito de uma pergunta sobre o ouroboros, a serpente que se enrola devorando a própria cauda, e o alargamento dessa imagem à dos círculos.
A imagem que se tornou conhecida provém dos textos dos antigos alquimista, dos séculos II-III da nossa era. Havia, nessa altura, alguma identificação com o imaginário dos gnósticos, por sua vez contaminado pelas marcas orientais da grande roda do tempo, estudada por exemplo por Marie-Louise von Franz: Le Temps, le Fleuve et la Roue ( O Tempo, o Rio e a Roda).
Vejamos um pouco do que a autora nos diz:
No interior do círculo vemos todas as manifestações da criação, na sua múltipla e colorida variedade. E bem ao centro a serpente.
Estamos perante o Tempo, nos vários tempos: o cíclico, o histórico, linear, os seus ritmos e periodicidade ( nas Estações, por exemplo), as suas medidas, da mais pequena à maior que se possa conceber ( os éons de que falavam os gnósticos, mas hoje os astrofísicos falarão de outro modo).
Inicialmente o tempo era a representação da vida e do seu mistério: de como se nascia e se morria. Os antigos gregos identificavam o tempo a Oceanos, o rio divino que rodeava a terra bem como o universo inteiro sob a forma de rio circular ou de uma serpente que mordia a cauda e trazia nas costas o Zodíaco. Também o encontramos com a designação de Cronos.
Nos cultos Órficos este deus é Aion, a energia vital que tudo permeia, o que os psicólogos hoje definiriam como "princípio de energia psico-física". Aion é o "Senhor deus dos Éons".
Noutros cultos esta divindade, ou este princípio e origem da vida conhecida é identificado ao Sol. Temos em Râ o equivalente egípcio, o senhor do tempo que abria as portas da vida e da morte, e assumia todas as formas como senhor das metamorfoses: nascia escaravelho, anoitecia crocodilo, e depois da meia noite era o leão duplo do passado e do futuro "de ontem e de amanhã", como se dizia nos hinos.
Este mesmo simbolismo arquetipal do tempo como divindade e fluxo ininterrupto de vida e morte se encontra na religião hindu.
Na tradição cristã Deus, antes de criar o universo, concebeu um modelo mental em que todos os arquétipos, ou germens das coisas do porvir existiam em simultâneo.
"era um unus mundus, intemporal". Com o mundo real foi criado o tempo, os seus ciclos, o seu fim, numa concepção em que só o tempo transcendente se concebe como eterno.
Jung fará dos círculos, as formas mandálicas de meditação, um estudo profundo, no seu célebre Livro Vermelho, recentemente editado. Ao desenhar e pintar esses Mandalas prosseguia no seu próprio caminho de perfeição e completude; o círculo é uma imagem da completude divina, primordial, mas também humana, quando pela meditação a nossa consciência se altera, se aprofunda e se transforma.
Nos tratados de alquimia surgem por vezes círculos, como sóis, flutuando sobre as águas de um rio.
Aqui a figuração quer dizer simplesmente que se procedeu na Obra alquímica à sublimação da matéria. É o caso da Atalanta Fugiens, por exemplo, em que numa gravura os círculos são 4 bolas de fogo, sendo o fogo o elemento da sublimação por excelência (entre os quatro conhecidos, água, terra, fogo e ar).

Wednesday, May 12, 2010

A Pedra

A Pedra é
fundadora
é fundamento
e raiz

sobre ela
se constrói
a vida
e se destrói

Monday, February 15, 2010

A Eternidade

De Rimbaud, escrito em Maio de 1872, o deslumbrante poema L'Éternité ( A Eternidade):

Elle este retrouvée.
Quoi? - L'Éternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Âme sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,
Brises de satin,
Le Devoir s'éxhale
Sans qu'on dise: enfin.

Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.

Elle este retrouvée.
Quoi?- L'Éternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Eis a tradução de Augusto de Campos:

A Eternidade

De novo me invade.
Quem ? -A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias
já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? - A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Como em qualquer tradução, há que ter um pouco de liberdade, por questões de ritmo ou de rima.
É o caso, nesta tradução, o que não impede que seja um belíssimo exercício.
Mas para o que pretendo agora decifrar no poema, as imagens que têm poder alquímico, preciso de citar alguns versos de um modo mais literal.
Assim, na primeira quadra:

Reencontrei.
O quê?- A Eternidade.
É o mar fugido
Com o sol.

Posso então trabalhar sobre esta imagem do mar com o sol - ambos fugidos (entenda-se em conjunção).
Sendo que esta conjunção de mar e sol, de água e fogo - simbolizam a Eternidade de que Rimbaud nos fala.
Na quadra seguinte um outro momento refere a noite e o dia - outro par de opostos que o poeta coloca em contraposição na alma ( anima). Aqui a tradução de A. Campos permite leitura alquímica, aludindo ao "jogo" que é na realidade a contraposição de opostos, embora o poeta fale de "confissão" e não de jogo; mas é na realidade um jogo" confessado" este da experiência alquímica vivida no segredo da alma do poeta.
A alma voa, ao acaso, como é dito a seguir. E ainda, que não haverá orientação, ou seja indicação do caminho, pois cada um terá de descobrir e seguir o seu, até à revelação desejada.
Recordemos o que Gurnemanz diz ao jovem e perplexo Parsifal quando este o interroga àcerca do reino do Graal e do significado deste vaso:
"não há caminho que para lá conduza..."; e adiante: " o tempo aqui torna-se em espaço".
Do mesmo modo neste poema sobre a Eternidade, a iluminação será dada a cada um segundo o seu mérito de ciência e paciência: ao entender-se que os opostos, neste jogo, se completam e se unem, como o dia e a noite, o mar e o sol, ou a água e ofogo, - elementos muito do agrado de Rimbaud, noutros poemas que podemos ler em conjunto com Marine, pertencendo ao conjunto das Illuminations ( 1873): neste poema em verso livre, toda a imagética é simbólica e alquímica no "casamento" apontado de terra e mar, de carros e de proas de barco fendendo as ondas e arando a terra, num movimento circular em direcção a Oriente (o Oriente da alma) aos pilares da floresta (de novo a terra) às pedras do molhe ( de novo o mar) - em cujos ângulos de cruzamento se projectam turbilhões de luz ( de novo a Revelação, a Eternidade, que é só luz).
Sabemos que na antiguidade se praticou um culto em que Neptuno, deus do mar, surgia na praia como divindade terrestre, com um arado e arando a terra entrava pelo mar dentro. Celebrava-se deste modo a dupla realidade de um deus primordial, elementar.
Os poetas, ainda que sem o saberem, ou talvez por ter visto alguma representação (como Pessoa diz que aconteceu com ele, no caso de O Menino de sua Mãe) exprimem, na sua linguagem simbólica, experiências da alma, arquetípicas memórias de arquivo do nosso inconsciente.
Iremos encontrar em Chuva Oblíqua, o poema interseccionista de Fernando Pessoa, o mesmo jogo complementar de opostos, com um porto infinito, velas de navios, cais e árvores antigas avistadas ao longe; e ainda, a sombra de um lado da paisagem em contraste com o sol do outro lado... e só para dar mais um exemplo a afirmação de um eu que, "liberto em duplo" se abandona da paisagem abaixo, caindo como Alice pelo poço profundo da alma, saindo da realidade exterior para o mais íntimo da sua realidade interior ( a da infância, segredo de todas as descobertas).
Remeto, no caso deste poema de Pessoa, para a obra Fernando Pessoa.Tempo.Solidão.Hermetismo, com Stephen Reckert, Lisboa, 1978.








Friday, February 12, 2010

Alchimie

Edição revista e aumentada duma obra fundadora dos estudos de filosofia hermética e de novo acessível. Ainda assim não é recente, é de 2007 (a primeira edição fora de 1964).
Canseliet apresenta e comenta os principais tratados conhecidos e deslinda, pelo caminho, o segredo escondido nas imagens que os acompanham.
Quer se trate da Pedra, do Elixir, ou da simples Sabedoria (filosofia hermética), quer se trate da Idade-Média ou da Modernidade dos séculos 18 e 19, toda a boa informação é dada por este insigne erudito, de quem a dada altura se disse que era ele o célebre Fulcanelli de cujas obras se tinha ocupado na década de 60.
Revisitar esta Alquimia é como passear nos antigos jardins de iniciação, em que a alma, depois de alguns tormentos (a dificuldade de entender) finalmente compreende os mistérios ou o mistério da subtil relação do homem consigo mesmo, com o universo (a natureza) e a divindade que tudo criou, de forma harmoniosa e ordenada : o número, eis o suporte da criação.
Nos tratados o número está sempre presente: os 3 princípios, os 4 elementos, a Quinta-essencia (5).
O Um (1) e o Todo (10) e os vários modos de "intensificação" de cada uma das partes.
E assim por diante.
Cada leitor escolherá o seu texto preferido, o que o fizer pensar melhor, a sua imagem mais inspiradora, que não esquecerá.
Citando Marie-Louise von Franz, na alquimia é da imaginação activa (actuante) que se trata.
Energia interior, emanando do inconsciente, pode assumir qualquer forma, por mais simples ou humilde que seja: é assim que no conto em que a princesa se veste de pele de burro a pele de burro adquire sublime significado. E sem que seja preciso falar do Burro de Ouro de Apuleio (ainda que falar fosse uma ajuda...).

Thursday, January 28, 2010

S.Tomás de Aquino


I
Poucos saberão que o Doctor Angelicus, do Fausto de Goethe, supremo guia na ascensão do herói às mais altas esferas celestiais é uma referência a S. Tomás de Aquino que, na SummaTheologica, se afirmou como supremo sistematizador do pensamento teológico e filosófico do seu tempo, o século XIII.
Discípulo de Santo Alberto Magno, em Colónia e em Paris, não seguiu por completo, segundo os exegetas, a tendência do pensamento neo-platónico do Mestre, procurando na racionalidade de Aristóteles uma primeira compreensão do homem, do universo e de Deus.
Outros saberão ainda menos que posteriormente lhe serão atribuídos Tratados alquímicos: a Aurora Consurgens, de que se ocupou um erudito como Bernard Gorceix, traduzindo a obra para francês (L'AURORE À SON LEVER) e Marie-Louise von Franz, discípula de Jung e colaborando com ele (no terceiro volume de MYSTERIUM CONIUNCTIONIS).
Há ainda um outro pequeno conjunto de tratados, DA PEDRA FILOSOFAL e SOBRE A ARTE DA ALQUIMIA que na tradução para castelhano inclui um prefácio de Gustav Meyrink, teósofo austríaco do século XX (com obra de ficção em que expõe as doutrinas ocultas das várias vias místicas, ocidentais e orientais, que conheceu e praticou).
Este mês de Janeiro é o mês de S.Tomás, por isso me ocorreu recordar o seu nome e parte da sua obra, genuína e/ou atribuída.
Uma das palavras-chave da sua doutrina - que o será em toda a doutrina dos Dominicanos, como dos Franciscanos- é a palavra caridade (bebida em Santo Agostinho). O propósito, na elaboração da doutrina de Alberto Magno é conseguir uma relação sólida entre a experiência filosófica e teológica de raiz aristotélica e a visão mística de raiz platónica.
A teologia, para Alberto Magno como para Tomás de Aquino tem de estar em relação directa com a mística, preparando a contemplação da divindade, na manifestação da sua glória.
Contudo, mesmo ao místico a essência do divino não será revelada, pois, citando as palavras de Deus a Moisés: "o meu rosto não poderá ser visto". Ao místico é concedida a imagem no espelho, o reflexo, o efeito da manifestação de Deus, mas não Deus -ele-mesmo.
Tomás de Aquino, confiante, com Aristóteles, na capacidade ilimitada do entendimento humano, dirá que o homem"é capaz de Deus": capax Dei.
O que não o impede de mergulhar no estudo das Escrituras para, junto com os outros estudiosos e ascetas, encontrar uma via de sistematização dos conteúdos do que se chamava "a palavra divina", que na realidade era, como ainda é, múltipla e complexa, aberta a muitas e variadas divergências.
Tomás de Aquino procura "a luz da sabedoria divina". Segundo os estudiosos da sua obra há no seu vocabulário três palavras essenciais: beatitude, contemplação, amor.
Podemos entender este amor como sinónimo da caridade em Santo Agostinho, pois o verdadeiro amor é sem dúvida uma forma de caridade, ou de piedade absoluta em relação ao outro, sob a forma de total entrega e aceitação.
É discutindo o sentido da que Tomás de Aquino pretende universalizar a ideia do conhecimento possível de Deus por parte do homem: o homem é .
Esta capacidade funda-se no desejo profundo, no apelo, na aceitação do que a Vontade Suprema lhe imponha ( mesmo que seja a noite escura de São João da Cruz... ou do grande lamento de Job no Antigo Testamento).
À impossibilidade reconhecida pelos seus pares de que o homem, na sua vida, na sua materialidade carnal, pudesse aspirar ao conhecimento e revelação da essência divina, contrapõe Tomás de Aquino esta ideia de que tal seria possível: pela Fé.
Contraria deste modo uma verdade do tempo que santos, místicos, gnósticos, não punham em dúvida. Declara que pela fé a todos os homens é dado chegar ao pleno conhecimento de Deus, pois tal é o seu destino último, a beatitude eterna, ainda que não participe dela nesta vida. A via da contemplação prepara-se neste mundo e terminará depois no outro, "nas vivas chamas do amor".
Devíamos começar por ler o CÂNTICO DOS CÂNTICOS, obra de beleza inegualável e que reza a lenda terá sido a que Tomás de Aquino comentava dirigindo-se aos seus alunos, já no leito de morte.
Os seus comentários são eles próprios uma forma de revelação do Belo e do Amor que se apossam da sua alma, tornando mesquinhas as outras considerações que tantas vezes fizera ao discutir a natureza de Deus. O Belo, o desejo do Belo, variante do Amor que já fora citado - era esse o supremo segredo, a suprema revelação, o rosto oculto de Deus.
Era luz e era treva, essa forma divina, energia em busca da materialidade a sublimar, uma vez (re)conhecida.
Conhecer era na verdade reconhecer - por via da Iluminação recebida e quem sabe se apenas possível no seu leito de morte.
II
A Aurora Consurgens, que traduzo por A Aurora Nascente, é uma atribuição, mas são muitos os dados citados por Marie Louise von Franz e retomados por Bernard Gorceix que nos permitem pelo menos situar o tratado na época em que S.Tomás viveu, o século XIII. M.L.von Franz propõe como data de redacção c.1230. E justifica-se pelo facto de nele não serem referidos autores célebres dos séculos posteriores, apesar da muita divulgação na Europa culta. A Aurora cita exclusivamente obras do século XII ou quando muito do início do século XIII.Não chega a abordar Geber, Arnaldo de Vilanova, Raimundo Lúlio, outros. Reporta-se a um conjunto de autores que representam o primeiro florescimento de uma alquimia ocidental cristã, logo a seguir aos textos dos primeiros alquimistas gregos conhecidos ( no caldo cultural de Alexandria).
Do meu ponto de vista (o que talvez explique o secretismo com que os manuscritos circularam) é mais interessante a referência aos filósofos árabes que o ocidente naquele tempo estuda e imita, como Razi (ou Rhasès), Avicena (Ibn Sina), o príncipe Calid, Senior (cujo verdadeiro nome é Ibn Umail) do que propriamente a célebre Turba dos Filósofos ou mesmo a Tábua de Esmeralda.
O tratado conhece a sua primeira impressão em 1625, mas isso não significa que não seja anterior; von Franz dedicou anos de investigação em busca dos manuscritos que acreditava existirem, por força do conteúdo das matérias, que não eram recentes pois nada da época do Humanismo e Renascimento continham. Sabemos hoje que na Biblioteca Nacional de Paris se encontra um ms. que é uma cópia do século XV, oriunda da abadia de Saint-Germain-des-Prés; que existem igualmente, fragmentos ou ms. completos em Viena, Veneza, Zurique, Leyden, Bolonha, Londres.A esta insigne investigadora se ficou assim a dever a edição crítica moderna, de 1957, com que se "fecha" a obra magistral de Jung já referida, Mysterium Coniunctionis (O Mistério da Conjunção).
Para os psicanalistas o texto representa uma espécie de "drama psíquico", produto do inconsciente, dando conta da complexidade e contradições profundas de uma personalidade como a de S.Tomás de Aquino, ao mesmo tempo místico, visionário, e homem de formação aristotélica difícil de conciliar com tais características. Um teólogo ordenador do pensamento que enfrenta a experiência de que nem tudo no pensamento, e ainda menos na emoção, pode ser regulado.
Há momentos especialmente significativos deste ponto de vista, bebidos na Bíblia (O Antigo e o Novo Testamento eram fonte suprema, como se pode calcular) de Joel sobre a urgência da conversão, de Jonas sobre o naufrágio da alma, dos Salmos sobre a corrupção da terra, o pântano dos abismos, ou do Evangelho de Lucas sobre as trevas que cobrem o universo. Entrecortando estas descrições, de puro apelo e terror, numa montagem que Gorceix compara às de um puzzle, surgem então as visões de um alquimista que transformam, citando ainda Gorceix, "a cosmologia cristã numa cosmogonia alquímica". Com os alquimistas o "temor de Deus" transforma-se em "ciência de Deus", e por aí diante, em numerosos exemplos de subtis transformações e citações.
Não é por acaso que a obra se estrutura numericamente no 12, 5, e 7.
12 capítulos, contendo 5 alusivos às afinidades entre a Sabedoria do crente e a ciência do filósofo (entenda-se filósofo hermético, ou alquimista); e 7 outros capítulos que são parábolas, visões alusivas a um imaginário em que a devoção ortodoxa e a revelação alquímica se defrontam e fundem ( ou confundem). Os temas alquímicos sobrepõem-se à descrição de um universo criado por Deus de uma determinada forma, numa determinada ordem, da luz saindo das trevas e de uma matéria de que o homem viria a ser criado, à imagem de Deus. Ora é esta mesma imagem de Deus, do universo e do homem que na alquimia é alterada, disso dando testemunho este tratado.
12 são os signos astrológicos, 7 os planetas que interagem com eles, 3 os principios que na arta alquímica tudo definem.
Podemos dizer, com Gorceix, que esta obra pertence à tradição dos Livros Sapienciais:
" O culto da Sapiência divina, depois de ter florescido no Egipto e na Mesopotamia, desenvolve-se no Antigo Testamento. Dos Provérbios ao Eclesiástico todos os livros ditos sapienciais se referem à transcendência da amiga 'como uma esposa de Deus'; ela participa da natureza divina, preside à criação e ao governo do mundo, ela é a condutora do crente".
Ora quando a alquimia, pela mão dos árabes, passou do oriente ao ocidente, depressa absorveu estes elementos fecundos da tradição cristã. E todos os eruditos concordam em que tal se verifica já neste primeiro testemunho, tão belo e inspirado, do tratado da Aurora, no século XIII da nossa era.
O sopro da sua prosa poética é de grande elevação e hermetismo.
Ainda que nem tudo seja de fácil acesso ao leitor menos entendido, muitas das imagens e descrições mais fortes viverão comnosco, no nosso imaginário, alimentando o nosso inconsciente, tal como aconteceu ao anónimo autor que dizem ser S.Tomás.
III
Fiquemos com um excerto do capítulo 12, a parábola 7 e a riqueza do seu significado.
Estamos aqui perante o segredo da União, da Conjunção, da fusão dos opostos, que o rebis alquímico, na imagem acima colocada, representa.
O universo é um todo, a sua energia é feminina e masculina, feita de treva e luz, razão e emoção, discurso e iluminação. M.L.von Franz falaria da revelação da Anima no autor do tratado, como Goethe no Fausto falará do Eterno Feminino, soma de Beleza, Caridade e Amor ( sua mais secreta e íntima descoberta).
Tal como no Cântico dos Cânticos é a Amada que fala:
"Que direi então ao meu bem-amado? Eu sou a mediadora dos elementos, eu reconcilio os contrários. Arrefeço o que é quente e vice-versa. Humedeço o que é seco e vice-versa. Amoleço o que é duro e vice-versa. Eu sou o termo. O meu bem-amado é o princípio. Em mim se escondem a obra inteira e a ciência toda, a lei no sacerdote, a palavra no profeta, o conselho no sábio.
Farei viver e farei morrer, da minhamão ninguém se liberta. Ao meu bem-amado estendo os lábios, ele apertou os seus contra mim, ele e eu formamos um só: quem nos separará do amor? Ninguém, nenhuma força. Porque o nosso amor é forte como a morte!"
Adiante, num tom igualmente exaltado de paixão, chegaremos à frase que exprime o segredo mais bem guardado de toda a alquimia:
"Eis como é doce, como é agradável viver dois em um! Ergamos então três tendas para nosso uso, a primeira para ti, a segunda para mim, a terceira para os nossos filhos! Uma corda tripla resiste melhor! ".
O mistério do dois em um, de que se formará o três em um (pois que em apertada união, a tripla corda) aponta para o outro mistério da Tábua de Esmeralda, "o que está em cima é como o que está em baixo...." redefinindo o olhar que se tenha sobre Deus e o universo criado: dois em um igual a Tudo em Um, o Um e o Todo da serpente ouroboros primitiva.
Ainda que podendo ser excessivamente hermética, evocarei o Axioma de Maria Profetiza: do um nasce o dois e do dois nasce o três como quatro (quarto...)...sendo este, na doutrina de Jung, o número da completude - seja humana, seja divina...
Deus também tem a sua Anima, a sua Shekinah, disso poderemos falar noutra altura.



Monday, January 18, 2010

Anubis




Do sonho aos poemas, e destes a uma raiz ancestral.

A Sombra com os seus Cães

Chega de manhã cedo
não bate à porta
é uma Sombra discreta
na mão o cesto das compras
e na trela os seus dois cães

não gosta de discutir
anda muito devagar
sem ajuda sobe a escada
até ao último andar

- Diz-me o que são esses cães
que te acompanham
te guardam
esses cães que tu não deixas
e que também não te largam
não estão presos
mas não fogem

- São cães do sono profundo
nascem na treva sagrada
naquela prega do tempo
onde se esconde o futuro


Segundo Jung não haverá coincidências, mas fenómenos de sincronia que se tornam especialmente carregados de sentido para quem se detenha neles. Pode tratar-se de um sonho, da interrogação contida num poema e neste caso da resposta que se procure encontrar. Por vezes nada sucede. Fica a pergunta, outro tempo virá em que a resposta surja.
Aconteceu que uma vez escrito o poema, e dada a sua ligação a um sonho determinado, que os primeiros versos descrevem como acto banal de um dia aparentemente como os outros - me vem à mão o Livro Egípcio dos Mortos na edição francesa de Albert Champdor que contém os papiros de Ani, de Hunefer, de Anhai, actualmente guardados no Museu Britânico.
Uma verdadeira colecção de rituais iniciáticos, alusivos ao percurso que a alma teria de fazer depois da morte, conduzida pelo deus-cão Anubis até ao lugar do Juizo Final.Nesse lugar a sua alma seria pesada numa balança que num dos pratos teria a pena da deusa Mâat e só se os pratos se equilibrassem obteria a alma a salvação desejada, podendo encaminhar-se para o jardim do Éden, onde a vida continuaria saciada e feliz.
Anubis, o Guia dos Caminhos, é simbolizado por um cão (pode ainda ser cão-chacal ou cão-lobo) e é ele que permite a revelação da Luz, depois da cerimónia mágica da "abertura dos olhos" .
Esta bela edição, que reproduz e transcreve, como se de uma banda desenhada se tratasse, os papiros encontrados em finais do século XIX, oferece ao estudioso, tanto como ao simples curioso, muita matéria de alimento para a sua imaginação.
No antigo Egipto o Livro dos Mortos, que em papiros ou em frescos nos túmulos acompanhavam a alma do defunto, era parte integrante de um ritual iniciático sem o qual a alma ficaria abandonada, perdida num submundo assustador.
A sua leitura hoje em dia, numa sociedade laicizada, pode ajudar a entender alguns dos fantasmas que ainda nos habitam, com os seus sonhos, as suas premonições.
As almas, de outrora como de agora, pedem um guia.

Completando, com um último poema:

Caiu a noite:
Isis vem aí.
Bateu à porta
é preciso abrir