Já referi, neste blog como no outro, de Literatura, a importância, para os estudiosos, da edição crítica das obras de Pessoa.
Os volumes vão saindo intermitentemente mas só por eles, na realidade, podemos avaliar como era complexa a mente do poeta, a sua sensibilidade, a sua energia criadora e como se desdobrava na voz dos heterónimos sem perder o fio, sem perder uma funda unidade estruturante de consciência.
Já abordei o caso Jean Seul, com características próprias do que se chamaria de fase rudimentar de criação, e dei como exemplo de interesse para os temas continuados de dimensão maior o heterónimo Alexander Search e a sua produção em língua inglesa.
Vejamos agora o vol. I da poesia de Fernando Pessoa, editado pela mão de João Dionísio, abarcando os anos de 1915-1920.
Num poema de 1917 , ao mesmo tempo que pela mão de Álvaro de Campos se gritava bem alto o Futurismo, com Almada Negreiros e outros, sofria Pessoa noutro espaço de silêncio ( o poema que vou citar estava inédito no espólio, só agora é transcrito) da solidão aprofundada pelo suicídio de Mário de Sá Carneiro, o amigo inesquecível. E não só: sofria ainda da consciência que tinha do vazio desse estertor social que viria a ser de curta duração.
Pessoa nunca se afastou de si mesmo, na sua escrita mais sincera e mais oculta, e uma atenção especial a imagens e símbolos que atravessam obra ortónima e heterónima permitem confirmar o que digo. Daí a actual e indispensável utilidade da edição crítica.
Estamos pois em 1917: já existem todos, Ricardo Reis, Cairo, Campos, Pessoa ele mesmo.
Alexander Search tinha definitivamente deixado de existir :
EPITÁFIO
Aqui jaz A(lexander) S(earch)
De Deus e dos Homens abandonado,
Da natureza troçado em dôr;
Não acreditou em igreja ou estado
Em Deus, homem, mulher ou amor,
Nem na terra aqui ou no céu além.
Do seu saber isto lhe vem:
(...) é rotina o amor,
Nada no mundo há de sincero
Salvo luxúria, ódio, medo e dor
E mesmo estes ultrapassados
Pelos danos por eles causados.
Ele morreu aos vinte e tal anos
Sentindo ao morrer só esta certeza:
Maldito o Homem, Deus e a Natureza.
(trad. Luisa Freire)
Não está datado, mas como Pessoa atribuiu a Search a data de nascimento de 1887 - um ano antes da sua própria data - podemos imaginar que teria morrido em 1910 e este epitáfio poderá talvez ser remetido para esse ano.
Voltando ao que interessa: na poesia de Search há temas variados , é certo, mas alguns de preocupação recorrente com o mistério de Deus, da Natureza e do Homem, como em Goethe, sobretudo no Fausto. E Pessoa também tentará o seu Fausto, de que se conhecem os fragmentos.
Eis o poema que me chamou a atenção ( relembrando que Search, num primeiro momento, tinha escrito um poema à Mão: To A Hand).
Este já é do próprio Fernando, e data de 1917:
O Poeta sente a Mão de um destino que lhe pesa:
Na sombra e no frio da noite os meus sonhos jazem.
Um frio maior cresce do abysmo, e decresce.
Toca-me o coração de dentro a Mão que conhece.
As estrellas sobem. Por cima de mim se desfazem.
Ah de que serve o sonho? O que acontece
Não é o que nós queremos, mas o que os Deuses fazem.
....
Jaz no chão com meus sonhos a cinza de todas as vidas.
(ed. João Dionísio, vol.I )
Estudei o simbolismo desta imagem da mão em antigo ensaio do meu livro com S.Reckert, Fernando Pessoa,Tempo. Solidão. Hermetismo. (1978) e noutro posterior, Fernando Pessoa, O Amor, A Morte, A Iniciação (1985) com mais detalhe. O citado poema de Search, demasiado longo para que o transcreva aqui, é de 1906.
E já nele consta o exercício de contrários que pesam na alma, que a ensombram, que impedem que um desejo real correspondente ao pedido do primeiro verso " give me thy hand" se materialize de uma forma ou de outra, nas estrofes seguintes em que se adivinha algum desejo de amor ainda que intimidado pela ânsia, hesitação ou medo
Pede a mão, afirmando que vai ler nela (como um visionário ocultista,ou um vidente) tudo o que contém: um mundo de esperanças , de sentimentos e sofrimentos, mas o que deseja é acima de tudo descobrir o mistério dos mistérios (The mistery of mysteries).
De estilo marcadamente decadentista, a mão é descrita como delicada e branca, mas contendo o dia e a noite, com algo de selvagem e irreal ( o que logo revela a distância que o poeta assume em relação a esse toque delicado) e pior ainda, revelando que a mão não é uma mão mas a expressão de um Facto que o aterroriza.
Esse Facto se tornará em Fado, em Abdicação e Destino, na produção posterior, já em português, a língua que é a sua verdadeira ( e oculta) pátria.Termino com DOBRE, de 1913 (ed. Maria Aliete Galhoz, de Cancioneiro, em Poesia de Fernando Pessoa):
DOBRE
Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma fôlha.
Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.
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