Monday, December 03, 2012

A Pedra no Caminho

Arnaldo Saraiva, a quem vai dedicado este post, deu a conhecer a obra de Carlos Drummond de Andrade numa época, anos 60, em que em Portugal só havia interesse pela literatura francesa e pouco mais. Por via de Paris a cultura chegava a Portugal, melhor dizendo, Lisboa, Porto, Coimbra - capitais universitárias. Aí se procuravam livros, ou chegavam livros e se lia.
Arnaldo conta como leu Drummond pela primeira vez, na tradução francesa, e eu posso acrescentar aqui um pormenor pessoal: o tradutor foi grande amigo nosso, além de apaixonado pelas letras e artes brasileiras.Seu nome: Michel Simon, que, para não o confundirem com o grande actor do mesmo nome apelidavam carinhosamente de Michel Simon-Brésil. Tinha um programa na rádio: Aquarelle Brésilienne e fora o grande tradutor de Manuel Bandeira, e de outros grandes daquele tempo.
Uma vez por ano viajava de barco para o Brasil: fazia escala em Lisboa, e aqui, na Yorkhaus, ficava para visitar o Museu de Arte Antiga: o seu quadro de paixão um Bosch que ainda hoje podemos ir contemplar, como ele fez durante anos, fielmente.
A nossa amizade datou de um encontro de acaso, num TEE em que ambos regressávamos de Milão; ficou sentado ao meu lado e espreitava o que eu ia escrevendo num caderno; a dada altura interrompeu-me, em português com sotaque: ah, esse poema é belo! 
Desculpou-se pela indiscrição: de idade podia ser meu pai, e ficámos a conversar, ora em francês, que sempre falei bem, ora em português, o que lhe dava prazer; os textos iriam ser mais tarde publicados em Irreflexões, e ele falou-me dos seus amigos brasileiros e da tradução de Manuel Bandeira, que me enviou depois.
Quando eu ia a Paris falava com ele; levou-me na Rue Mabillon, num sábado, ao restaurante onde os brasileiros se encontravam, para comer a boa feijoada e tocar e cantar pela tarde fora com uma alegria que animava o exílio forçado de alguns. 
E quando ele parava em Lisboa lá íamos admirar o nosso Bosch de sempre.
Não conheci Drummond pela tradução dele, eu nessa altura estava a ler Clarice Lispector. Mas vou procurar agora, pois será decerto tão fiel e inspirada quanto a de Bandeira, que tenho aqui ao meu lado!
Paremos então no poema da Pedra, que deu origem, como explicou Arnaldo Saraiva a tanta discussão, a tanto comentário, a tanto espanto também, por algo de tão simples e aparentemente corriqueiro vir a causar tanto "barulho" literário e literal.
Eis o poema:

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

Na realidade o que faz deste poema o grande desafio é a afirmação de que havia uma pedra no meio do caminho; uma afirmação simples e directa que grava uma imagem para sempre indelével, e que a repetição do verso ao longo do poema torna mais firme e intensa. Não mais sairá do nosso imaginário, pessoal e colectivo ( o poema fez caminho, na sociedade de então e ainda hoje, na nossa). O poema com a sua pedra.
Leio ou repito em voz alta (tão fácil de fixar) e não é pelo ritmo, pela repetição que o poema intriga, mais do que comove. Igual a um poema chinês, ou a um Haiku japonês, é a condensação da imagem, pedra e caminho, ou ainda o meio do caminho que tinha uma pedra, e aqui entra nova imagem, a que corta o caminho ao meio, quando devia estar (esperava-se) livre e desimpedido.
O meio do caminho: o meio da vida; 
a pedra no caminho: o desgosto ou a contrariedade inesperada, que fez (ou não) impedir a continuação do caminho. Esta suspensão do destino do caminhante aumenta o mistério do que é dito: viu a pedra e seguiu adiante? tropeçou na pedra, caiu e levantou-se? Ou ficou demorando magoado no chão?
Tal como nos ditos orientais a resposta não é dada, tem de ser encontrada por cada um, precisamente no seu caminho de leitura....a pedra, para nós, é o próprio poema, a interpelar a nossa vida.
Aqui entra a imagem forte do inconsciente colectivo (diria Jung):
todos, ao longo da vida, e segundo Jung em especial "no meio" da vida (é banal falar da crise da meia-idade) tivemos, temos, teremos "uma pedra no caminho", uma crise que poderemos ou não ultrapassar.
Drummond já mais velho e sábio ( de "retinas fatigadas") evoca essa pedra que teve no caminho. Ultrapassou, pois escreve o poema, mas não esquece. Com as suas palavras condensadas em tão breves imagens abre o coração ao mundo, forçando o mundo a que faça como ele: revivendo o caminho, fixando a pedra que lá estava no meio, procurar entender o destino.
Pois é disso que trata a pedra, desde sempre (e poderia então falar da tradição alquímica...). Do entendimento do ser : o ser no espaço da vida, do seu caminho, mas mais ainda no tempo (e não vou citar Heidegger), daí que a imagem do meio adquira tanta importância. 


Wednesday, November 07, 2012

Schubert, continuação de literatura e Arte


De Novalis ( 1772-1801) a Schubert (1797- 1828)

I

Novalis (pseudónimo de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg) figura maior do Romantimo alemão, teve a sua obra editada primeiro em 2 vols. pelos amigos Ludwig Tieck e Friedrich Schlegel, em 1802.
As obras de Novalis, bem como as dos irmãos Schlegel, tiveram marcada influência em Franz Schubert.
Vemos que na Bela Moleira/ Die Schoene Muellerin ( 1823) se recupera um imaginário de cariz popular, nacionalista ou melhor tradicionalista,  eivado de uma reflexão melancólica resultante da empatia profunda com a natureza,os seus ciclos, de que o Tempo e a Temporalidade são parte integrante e que o fluir da água do regato, na última canção (n.20, Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato)  evoca e representa.
Esta canção funde os vários motives da temática romântica por excelência: 
1. a contemplação da natureza e a elevação de alma que suscita
2. o desejo de um repouso que se aproxima do sono, depois do sonho que foi a Viagem (evocadora da busca da Flôr Azul, no célebre romance inacabado Heinrich von Ofterdingen e que são referidas na estrofe em que cita “ as pequenas flores azuis” pedindo que não olhem para ele)
3. apelo à noite, com a lua cheia a erguer-se no céu imenso, noite que. tal como o sono que pode ser antecipação da morte, dissolverá para sempre alegrias e desgostos.

Este Moleiro-Poeta  é uma recuperação do Viandante de Goethe.
Quando na primeira canção Das Wandern/ Viajar (que eu gostaria mais de traduzir por algo como Vaguear, pois é mais de vaguear que se trata, caminhando solto na paisagem,  de floresta, de ribeiro ou de mar, deixando corer o pensamento) se alude a esse ímpeto de correr mundo, já se adivinha, pela imagem escolhida da água cujo curso é imparável, da roda, que não cessa o seu rodar (como a roda da vida, que é a roda do Tempo) da pedra da mó, também ela redonda e girando cada vez mais depressa- já se adivinha, dizia que esta não sera uma viagem qualquer, mas um percurso que é decurso simbolizado da vida.
Pelo meio um atravessamento de amor, sem consequência a não ser a de despertar saudade, saudade do regresso a uma casa que é muito mais do que o lar que se deixou para trás, é morada de repouso, quem sabe se definitivo, uma paz de alma reconciliada que só a morte concede. 

Os poemas de Wilhelm Mueller (1794 -1827), um dos grandes amigos do compositor, constituem um verdadeiro ciclo, em que o fio narrativo não se perde, ampliando a temática central da viagem pela vida e do horizonte da morte. Dos vinte e cinco textos da edição original do poeta (1821) Schubert escolhe 20, que organiza numa “introdução” e fecha com um “epílogo”, o que sublinha a dramaticidade lírica e musical da obra.
O tema fulcral é o da Viagem, como já se disse.
O Wandern alemão não significa o mesmo que Reise, mas seria difícil traduzir por vaguear, viajar ao acaso, pois o Moleiro não parte ao acaso. Caminha em direcção ao moínho onde estará a sua amada. Daí que se tenha escolhido o termo Viagem, e não o Vaguear, embora este ficasse melhor no caso do Viandante, que não temos traduzido por Viajante.
Mas deixemos a questão, respeitando o que tradicionalmente está aceite.
Na canção n.1 começa a descrição da caminhada do Moleiro, junto ao riacho, e aí se glorifica a água, elemento primordial, através do que a água simboliza se glorifica o movimento perpétuo, o caminhar ( a roda) da vida:
Das Wandern / Viajar

Viajar é a alegria do moleiro,
Viajar!
Só pode ser mau moleiro
Aquele a quem viajar não agrade,
Viajar!

Aprendemos com a água,
Com a água!
Que não pára dia e noite,
Pensando só na viagem,
A água.

O mesmo fazem as rodas,
As rodas!
Que nunca ficam quietas,
Não se cansam de rodar,
As rodas.

E até as mós,tão pesadas que elas são,
As mós!
     Giram numa dança alegre,
     E querem ir mais depressa,
     As mós.

     Oh viajar, viajar, minha alegria,
     Oh viajar!
     Meu senhor, minha senhora,
     Deixai-me partir em paz,
     Vou viajar.


Se o tema central é o da Viagem, o símbolo vital será a Água.
Mas é uma água complexa, que tanto corre para a vida como esconde já alguma pulsão sombria: é o que se adivinha na canção seguinte, n.2, 

Wohin/ Para Onde:

Ouvi murmurar um regato,
Corria da fonte do rochedo
Em direcção ao vale
Fresco e maravilhado.

Não sei o que me aconteceu,
Nem quem me deu o conselho,
Também tive de o seguir,
Com o bordão de caminheiro

A descer e sempre em frente,
e sempre atrás do regato,
A correr com o seu murmúrio,
De uma alegre limpidez.

É este então o caminho?
Diz-me, regato, onde vou?
O teu murmúrio suave
Perturbou os meus sentidos.

Que digo do teu murmúrio?
Não pode ser murmurar
São Ondinas a cantar
Nas profundezas do Reno

Deixa cantar, companheiro,e 
murmurando segue o teu caminho!
Rodam as rodas do moinho,
Em todos os regatos de água clara.

Repare-se como nesta alusão a uma água feliz já está contida, pela alusão às Ondinas do Reno, a pulsão da morte que um Heine descreverá como ninguém na sua Lorelei.

Outras imagens simbólicas poderão surgir, como a floresta, ou o bosque (que seria a Terra) ou o Céu (que seria o Ar) ou mesmo o Fogo (quando se arde de paixão ou de paixão se morre). Vemo-las também noutros poetas, que Schubert muito amou, como Goethe ou Heine em quem uma consciência alquímica da vida se torna muito patente.
Mas fiquemos nesta meditação do Wandern.
Impossível não evocar aqui o poema de Goethe que melhor reflecte este estado de espírito:

Canto Nocturno do Viandante / Wanderers Nachtlied (1776 )

Tu que és do céu,
E todo o o sofrimento e dôr acalmas,
Que ao duplamente infeliz
Duplamente consolas,
Ah, estou cansado de tanta agitação,
De que servem a dôr e o prazer? –
Doce paz,
Vem, ah vem desce ao meu coração!

E ainda este, que completa o anterior e lhe amplia o sentido da brevidade da vida ou do desejo de morrer:

Outro Igual /Ein Gleiches ( 1780 )

No alto dos montes
Reina a paz,
Nas árvores
Não se pressente 
nem um sopro.
Os  passarinhos calam-se no bosque.
Espera, que em breve
Também tu repousarás.

Com este mesmo estado de espírito, de abandono à noite do desgosto e da melancolia, e de ânsia pelo repouso eterno (da morte) é concluída a última canção, n. 20:
 Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato

 Descansa em paz, descansa em paz! Fecha os teus olhos!
Viajante, que estás cansado, chegaste a casa.
Aqui reside a fidelidade,junto a mim repousarás,
Até que o mar engula todos os regatos.

Lavada de fresco será a tua cama
Com largo travesseiro no quarto azul de cristal,
Vinde, vinde agora, vós que sabeis embalar,
Embalai nas ondas o rapaz até que ele adormeça.

Se uma trompa soar no bosque verdejante
Farei um barulhão à sua volta.
Não olheis para mim, florzinhas azuis!
Estais a dar pesadelos ao meu adormecido.

Afasta, afasta, o trilho do moinho!
Fora, fora, rapariguinha má,
Que a tua sombra não o venha acordar.
Mas dá-me o teu lencinho fino
Para os seus olhos tapar.

Boa noite! Boa noite!Até que tudo desperte.
Que o sono te consuma as alegrias e as dores!
Ergue-se a lua cheia, dissipa-se o nevoeiro
E o céu lá em cima tão vasto que ele é.





Wednesday, October 17, 2012

John Dee, o Mago da Rainha

Os livros são assim: amam quem os ama, ainda que por vezes distraidamente, como eu.
Tenho na minha biblioteca, há anos, um livro que comprei, a biografia romanceada (mas pouco) de John Dee (1527-1609) matemático, astrónomo, astrólogo e vidente da Rainha Isabel I da Inglaterra.
Nessa altura estava eu a ler a fotocópia do seu Diário, que tinha trazido de Inglaterra, procurando aí referências que me ajudassem a melhor entender o espírito e a cultura da época. O romance ficou na estante.
Havia outro romance, de Gustav Meyrinck (agora renasce o interesse pela sua vida e obra) que se ocupava deste mago, e que eu lera primeiro, O Anjo À Janela do Ocidente, na tradução francesa. Li depois todos os romances de Meyrinck, quando percebi que em cada um deles expunha uma doutrina hermética precisa, desde a Kabbala ao taoismo tântrico, ou à alquimia.
Mas agora é deste outro romance que pretendo falar, de Claude Postel (ed. 1995) mais recente, fluido na sua escrita, e tal como em Meyrinck com referências fiéis e fundamentadas, extraídas do seu Diário, dos seus Tratados (hoje em dia mais acessíveis do que no meu tempo de outrora).
A par da vida extraordinária deste cientista, de cultura universal, viajado por toda a Europa e conhecido de todos os grandes do seu tempo, adquirimos informação preciosa sobre o que se lia e escrevia e divulgava, desde o antigo Euclides aos modernos Cornelius Agrippa, Trithemius, Guillaume Postel (proscrito), Hermes Trismegisto, sem esquecer o nosso Pedro Nunes nem os árabes alquimistas. A lista seria grande, basta dizer que John Dee reuniu uma blibioteca com mais de 4000 livros, raros e caros (como ele diz) que a própria Rainha desejou visitar.
Outro dos grandes méritos deste autor, Claude Postel, é a completíssima Bibliografia com que completa o livro, e a não menos completa Biografia de todos os que são citados ao longo da narrativa, por se terem cruzado com o mago, na sua casa de Mortlake, na Côrte, ou nas suas viagens.
O mundo já era global naquele tempo que nos parece longínquo e por vezes bárbaro (mas em matéria de barbaridade o que dizer do nosso?)...
Para quem prefira a língua inglesa deixo a indicação de outra obra, de Benjamin Woolley (ed. 2001) não menos interessante e completa, grande fresco de uma Inglaterra e de um mundo todo em renovação humanística, científica, cultural e a que a Magia, mais uma vez, não era alheia. 
Devo dizer que, mais uma vez porque os livros estão atentos aos nossos interesses, nós é que somos esquecidos, distraídos, ou ingratos, foi numa anotação do espólio de Fernando Pessoa, entre milhares de outras, que reparei no nome de John Dee.
Pensei que não era acaso, pois não se escreve o nome desse personagem sem que se tenha lido alguma referência, algures, ou mesmo alguma obra dele. Obra dele não encontrei na biblioteca particular de Pessoa: mas encontrei várias outras, que já tenho citado, de autores estudiosos das doutrinas herméticas e em que John Dee aparece como grande referência. Fernando Pessoa, e eu com ele, partimos então nessa busca de um mago visionário de que o Poeta se sentiria próximo, pois também ele era astrólogo, fazia horóscopos a pedido, se dizia visionário com poderes de Medium, etc.
O que se fez para Pessoa e eu tanto referia, ao longo dos anos, como essencial para conhecer o seu pensamento e a sua formação, a saber a publicação dos livros da sua bilioteca, fez-se para John Dee em 1990, pela London Bibliographical Society:
JOHN DEE'S LIBRARY CATALOGUE.
Neste catálogo está o enorme testemunho de uma cultura do tempo e de todos os tempos - para aqueles que de verdade desejem aprender algo mais sobre a vida, o mundo, o cosmos na sua plenitude.
A obra mais complexa que nos deixou, para meditação, leitura e releitura é a Monas Hieroglyphica, (de 1564, ed. Kessinger Rare Reprints).
Só com especial preparação filosófica e matemática se chegará, como ele diz, à sua secreta lição.

Monday, October 01, 2012

Dia Mundial da Música

Contribuo com uma obra-prima de Schubert, inspirada noutra, de Goethe e com o seu quê de simbologia de transformação, como na alquimia que sublima o corpo ( a matéria)  elevando-nos a todos a esferas mais altas.


Fulgurações de Mignon

O romance de Wilhelm Meister, tal como o drama de Fausto, foram obras que acompanharam Goethe ao longo da sua vida, dos anos mais turbulentos do Sturm und Drang aos amadurecidos da plenitude do conhecimento adquirido: pela experiência de vida, pela inquirição científica, filosófica, artística dos múltiplos pontos de vista, mesmo que contrários e contraditórios.
Aliás a sua maior lição é mesmo essa: da contradição que leva à plenitude do reconhecimento do Todo e do Uno, na esfera do grande como do pequeno mundo.- para usar uma expressão corrente no seu tempo ( e que conhecemos de Shakespeare e dos filósofos herméticos).
A leitura dos seus escritos autobiográficos permite entender melhor as características da sua formação; cresce num meio burguês de cultura cuidada, onde desde cedo estuda música, aprende línguas, segue direito filosofia, teologia, embora se oriente mais tarde para outras escolhas.
Mas a formação ficou lá e moldou o seu pensamento e a sua imaginação criadora. Não é por acaso que à data em que escreve as primeiras versões de Wilhelm Meister é a criação teatral que o apaixona, fazendo com que contraponha a escola francesa de Gottshed e a proposta de um teatro clássico aristotélico ao modelo muito mais livre e sedutor de Shakespeare, que Wieland dera a conhecer na Alemanha.
 Um encenação de Hamlet é discutida longamente com a troupe de quem Wilhelm se torna amigo, viajando com eles. Entre eles viverá o seu primeiro amor e o seu primeiro desengano. Através deles conhecerá Migon, e o Harpista – duas figuras emblemáticas da obra, de que falarei adiante.
A Par das discussões sobre o teatro como arte e expressão da vida no seu todo, no que tem de melhor e pior, e como arte suprema, pois inclui a palavra, a música, a dança - é uma arte total – desenha-se ao longo da narrativa um pensamento filosófico, inspirado na Ética de Spinoza, que  que está a ler, como diz na autobiografia e ainda em Rousseau, sobretudo nas Confissões.
Temos assim a apresentação e discussão de modelos filosóficos, estéticos e éticos (bem como pedagógicos, inspirados no suiço Pestalozzi) que ora Wilhelm ora outros intervenientes introduzem numa narrativa por vezes confusa e que só com a evolução do contar, sobretudo nos Anos de Viagem se aclara finalmente.
Contempla-se em Wilhelm Meister  um grande fresco da sociedade da época:
1 do pequeno mundo do povo, do teatro ambulante que se deseja maior do que é e mais interessante, como projecto de vida;
2 à burguesia culta, dividida entre o Iluminismo da Razão Pura e o Pietismo, doutrina de misticismo laico mas muito actuante na Alemanha do norte ;
3 sem esquecer a discreta mas real proliferação da maçonaria e suas Lojas, em que se proclamava a liberdade, a igualdade, a fraternidade, e sobretudo uma utopia moral e social que em Wilhelm Meister é representada pela misteriosa Sociedade da Torre.

Tudo isto vem a propósito de se sentir que as personagens de Mignon e do harpista que a acompanha, sendo como são inspiradoras, carecem de um enquadramento que as justifique no seu mistério e sobretudo no desenrolar do romance.
Pois na narrativa servem de fio que une os anos de Aprendizagem e de Viagem do herói, apesar de, numa leitura apressada, poderem parecer mais dispiciendas.

Como surge Mignon e como é descrito?
De início como criatura meio andrógina, Wilhelm não sabe dizer se é rapaz ou rapariga, roupas trapalhonas, ar algo selvagem; mas vendo melhor opta por menina; de facto é uma menina, criança que anda com a troupe fazendo habilidades, e que Wilhelm, compadecido do seu destino, e logo atraído por ela a compra por 30 tálers (30 dinheiros de Cristo…), libertando-a do jugo cruel do seu dono, que era o dono do circo.
(Mas permanence o nome de Mignon: de origem francesa, Mignon era na corte o favorito do rei; detecto aqui no romance alguma ambiguidade de relação, implícita, mas que não se pode confirmar).
Ela será a favorita de Meister, e a ele se devota de todo o coração.
Pela mão dele sera educada, vestida como deve ser, ainda que sempre de branco, alusivo a uma outra origem, mística, mais sublime. Um embrião de alma descido a um mundo de imperfeição.
Mignon não fala, ou muito pouco, e sempre de modo hermético, carregado de alusões: canta, como se fosse o seu modo natural de expressão, mais intuitivo e expressivo do que seria um dizer articulado.
O seu mundo é o da pura emoção. Daí que ao longo dos tempos tenha inspirado tantos e tantos compositors, sendo Shubert um deles.

Do ciclo que vamos ouvir, a canção mais célebre é a da nostalgia de um país maravilhoso, solar, em que florescem limoeiros e laranjeiras, se erguem belos palácios e antigas lendas e mitos encantam a imaginação. É para aí que Mignon deseja ir, levando Wilhelm, Amado, Protector, e Pai.

Conheces o país onde os limões florescem,
E brilha na folhagem escura o ouro das laranjas,
Do céu azul sopra um vento suave,
A murta silenciosa e o altivo loureiro,
Conheces?
Partir! Partir,
O meu desejo é ir para lá contigo, meu Amado.

Conheces a casa? Sobre colunas está pousado o tecto,
A sala brilha, refulge o aposento,
As estátuas de mármore fitam-me com o seu olhar:
Pobre criança, que fizeram contigo?
Conheces isso? 
Partir,  partir,
É o que desejo, contigo partir, meu Protector

Conheces o monte, o carreiro entre as nuvens?
A mula procura o caminho na névoa;
Nas grutas vive a antiga raça dos dragões;
Despenham-se os rochedos e em torrente as águas,
Conheces?
Partir! Partir,
Seguir nosso caminho! Ó Pai, vamos embora!

Nos últimos capítulos do romance saberemos do que se trata e quais foram as peripécias trágicas da vida de Mignon.
Mas a resolução final do mistério, ou dos mistérios, da sua vida terrena, que tanto aproximou Wilhelm da sua própria iniciação nas mais altas esferas da vida Superior (a que a protecção da Sociedade Torre não é alheia) não impede a dúvida que permanece:
Afinal o que representa, na iniciação do herói esta jovem Mignon? Raptada (do seu mundo perfeito, que ela evoca numa canção), sofrendo em silêncio os males (a degradação) do mundo (evocados noutra canção), protegida pelo herói , que a entrega aos bons cuidados de uma alma generosa, Natalie (com quem Wilhelm virá a casar) morrendo nos seus braços do amor excessivo que a consumia em silêncio – afinal o que representa ela?
No segundo capítulo do livro VIII  Mignon surge diante das outras crianças da casa vestida de Anjo, numa figuração alegórica (como era costume, ao tempo, para surpresa e divertimento nos salões, perante amigos e convidados).
É travado um diálogo que remete para o Maerchen, conto maravilhoso datado de 1795, próximo da escrita dos Anos de Aprendizagem,   carregado de simbólica alquímica e maçónica em que diálogos cifrados também cumprem um papel.
Natalie explica a Wilhelm que Mignon, na companhia das meninas da casa de que ela se ocupava, se habituara a gostar das roupas femininas, antes tão difíceis de lhe impôr. E para festejar o aniversário de umas gémeas a vestira de Anjo, de longas vestes brancas, a que não faltava um cinto dourado, tendo-lhe colocado também na cabeça um diadema igual. Tinha ainda duas asas a compor a imagem. Nas mãos levava um lírio e um cestinho com prendas.
À sua chegada Natalie exclama: Aqui está o Anjo!
E seguem-sa as perguntas das crianças, que reconhecem Mignon.

-Tu és um Anjo?
-Quem me dera, responde Mignon.
-Por que trazes um lírio?
-Se o meu coração fosse tão puro e sincero eu seria feliz.
-E as asas? Mostra lá!
-As mais belas são as que ainda não se abriram.

Cumprido este momento mágico ( e de verdadeira iniciação, como acontece no Maerchen), quiseram despir Mignon das suas vestes, ao que ela se opôs, pegou na sua cítara, sentou-se numa escrivaninha e cantou uma canção de grande suavidade: “ So lasst mich scheinen, bis ich werde / Zieht mir das weisse Kleid nicht aus! “
Nesta canção se exprime o alto conhecimento adquirido por toda uma experiência de vida que trouxe Wilhelm Meister até aqui, ao reencontro com Mignon, e com o destino que junto de Natalie o tornará maduro e sábio, pois entenderá as emoções que desde a juventude (na agitada vocação teatral o tinham perturbado). Mignon for a a sua Anima : incipiente, indefinida, como um Daimon ( a que Goethe se refere, noutros escritos) exprimindo-se por impulsos intensos a que cedia. Mignon morrerá para ele sobreviver: pois a pulsão tem de ser integrada ( sofrer morte simbólica, como na alquimia) para se progredir no domínio da Razão superior, da Sabedoria que só a vida concede. No Maerchen, de que se respira aqui muito da sua influência, as palavras de redenção iniciática são maçónicas: a Sabedoria, a Aparência, a Força ( na maior parte dos tradutores de “die Weisheit, der Schein, die Gewalt” , a que no Conto se irá acrescentar outra palavra, o Amor, como força criadora). Rudolf Steiner, Oswald Wirth, teósofos e maçons é assim que traduzem  estas palavras de iniciação.
João Barrento, na sua tradução escolhe a palavra que me parece mais adequada: “ a Sabedoria, a Luz e a Força” (p. 318, vol I, ed. Relógio d’Água).
Porque o verbo scheinen, e  especialmente aqui, nesta canção de Mignon,tem tudo a ver com o brilho, o brilho da luz da alma, da pura essência em que ela, ao morrer se tronará para sempre, ascendendo à esfera em que não se distinguem mais as formas masculinas/femininas, partilhando todas a mesma fusão do Uno e do Todo na perfeita completude primordial.

Assim também eu traduzo de um modo que me parece mais fiel ao ideário iniciático de Goethe, esta canção que fecha o ciclo, aberto no capítulo IV do Livro Segundo, quando Wilhelm, ao ver Mignon surgir de surpresa e logo fugir dali, não sabe dizer ao certo se a criança é rapaz ou rapariga. Opta pelo sexo feminino, a que ela se irá moldando com o tempo (sobretudo com Natalie). O que faz todo o sentido, pois Mignon será um daimon prefigurando uma Anima que Natalie incarnará por completo, já no fim.
Curiosamente, ao traduzir esta canção, João Barrento que no Maerchen optou pelo brilho da luz, aqui cede ao jogo da rima entre parecer e ser (scheinen /werden) recuperando o termo dos tradutores que acima referi.
Prefiro manter a sedução da luz e do brilho das altas esferas, até porque o termo werden implica, como no Fausto, transformar-se, não é um verbo estático, como sein, em que o ser (a essência) já se dá por adquirida.

Deixai então que brilhe até me transformar,
Não me tireis ainda as brancas vestes!
Da bela terra apresso-me a sair
Para descer àquela escura casa.

Deste termo, “feste Haus” casa segura, há uma variante, que prefiro recuperar: “ dunkle”, escura. Pois é na descida à escuridão da alma ( a casa) que toda a sublimação se dá.

Aí descansarei por um momento,
Até que que em mim se rasgue um novo olhar
E deixarei então as vestes puras
O cinto  e a coroa de enfeitar.

E aquelas formas celestiais
Que não distinguem homem ou mulher
Ou roupagens ou pregas envolventes
Receberão o corpo sublimado.

É certo que vivi sem esforço nem cuidado,
Mas sofri dores bastantes nesta vida
E de desgosto envelheci antes de tempo;
Fazei-me jovem de novo eternamente!
Aqui está finalmente a chave do romance e a sua conclusão: que o mistério da vida é insondável, que o destino é força que tem de ser entendida e assumida na sua complexidade, que inclui a treva ( o sofrimento) como inclui a luz, a Vida Eterna por todos desejada.
Jeanne Ancelet-Hustache, grande germanista, tradutora de Wilhelm Meister,(ed. Aubier Montaigne) relembra no Prefácio os poemas órficos de Goethe, nos últimos anos de vida (1815-1831). Um deles é especialmente interesssante para esta figuração, fulguração de Mignon como daimon-pulsão sublimadora: o título é Daimon, e  tem o seguinte verso: “ a ti não fugirás, assim terás de ser” (trad. Paulo Quintela).










  


Thursday, August 30, 2012

William Blake, Uma Imagem Divina

Os meus leitores habituais já sabem que muitas vezes passo de um blog para outro: neste caso, passo de literatura e arte, onde coloquei um apontamento sobre William Blake e o seu poema O TIGRE, que traduzi em versão fiel, mas livre, para este blog onde continuarei a reflectir sobre o Fogo que arde nos olhos do Tigre, figuração da treva primordial.
 O conjunto de poemas que Blake intitulou Canções de Inocência e de Experiência exprime, como ele diz, as duas faces da alma humana: a luminosa e a obscura, feita de treva.
Uma treva que preside à criação, é parte da substância mesma de Deus, pairando no ar a ideia de que o Mal é imanente, é consubstancial ao Bem, o da pureza inocente do outro ciclo de canções.
O ciclo das canções de Experiência fecha com um poema sobre A IMAGEM DIVINA, que passo a traduzir:

Uma Imagem Divina

A Crueldade tem um coração humano,
E o Ciúme um rosto humano;
O Terror é a divina forma humana,
e o Mistério a humana roupagem.

O vestido humano é ferro forjado,
A forma humana é uma forja ardente,
O rosto humano uma forja selada,
O coração humano seu abismo voraz.

Bem na continuação de poemas anteriores, sobretudo o do Tigre, Blake exprime o seu entendimento do Humano como substância contaminada: pela crueldade, pelo ciúme, por uma arbitrariedade que é própria do mesmo desígnio divino e misterioso com que foi concebido o Tigre, em simultâneo com o Cordeiro.
O Tigre foi forjado a um lume perverso, e o mesmo se verifica aqui, onde impera o imaginário de um fogo perpétuo e igualmente nefasto (não purifica, não sublima, deforma):
a segunda estrofe, concludente, desenha a forma humana como ferro forjado, forja ardente, forja selada ( de onde essa tal forma não poderá ser retirada) sendo que tudo é vorazmente engolido por um coração ainda mais negro, centrípeto de movimento, onde a emoção primordial se afunda.
Podemos ler este poema em contraponto com outro, o XIV do ciclo das canções de Inocência: tem o mesmo título, A IMAGEM DIVINA e não será por acaso.
A Imagem Divina

À Misericórdia, Piedade, Paz e Amor
Todos rezam quando em desespero;
E a essas virtudes divinais
Demonstram a sua gratidão.

Pois Misericórdia, Piedade, Paz e Amor 
São atributos de Deus, nosso Pai bem amado,
E Misericórdia, Piedade, Paz e Amor 
são do Homem, seu Filho bem cuidado.

Pois a Misericórdia tem coração humano,
A Piedade  um rosto humano,
E o Amor, a divina forma humana,
E a Paz, a humana roupagem.

 Então cada homem, de qualquer região,
Que reze no seu desespero,
Reza à divina forma humana -
 Amor, Misericórdia, Piedade, Paz.

E todos devem a humana forma amar,
Seja em  pagãos, Turcos ou Judeus.
Onde reinem Misericórdia, Amor, Piedade
Aí Deus reinará também.

Face a este poema, de apelo às Virtudes cristãs mais anunciadas, em que claramente é dito que no Homem justo e bom a divindade está presente, o que concluir do poema em que tudo é desmontado e relegado para uma impureza fundadora e cruel, na raiz da criação humana?
Que perdido a Inocência  do Jardim das Delícias a Queda foi abissal e permitiu que uma visão luciferina revelasse a outra face do Humano: a impiedosa, a cruel, a de um deus ele mesmo ciumento e devorador das suas criaturas.
Não é fácil abordar a lírica de Blake, e muito passaria pelo estudo da sua formação esotérica, que não poderei fazer aqui.
Mas deixo à curiosidade dos leitores a porta aberta para quem deseje aprofundar estas matérias.



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Thursday, August 16, 2012

O Mais e o Menos

Menos deixa espaço para Mais:
Mais não deixa espaço para nada.

Tuesday, August 14, 2012

Alice através do espelho

Para a Rita Roquette de Vasconcellos
Quando se fala de Transformação é impossível não recordar Alice, a heroína de Lewis Carroll, que no limiar do sono e do sonho vive uma aventura sem igual: corre atrás dum coelho para um mundo onde tudo acontece, ou pode acontecer, basta que se imagine, se tema ou se deseje...
Quanto tenho saudades de ler, releio as aventuras de Alice.
Escrevi há dias um texto sobre o Ovo Alquímico, a partir de um sonho que se tornou difícil de entender. Fiz um enquadramento de contexto cultural, através da pintura de Bosch, das gravuras de M.Maier, dos quadros de Magritte; mas ocorria-me sempre à memória o Humpty Dumpty de Alice: tão súbito, também ele, como nos sonhos, e tão enigmático no seu discurso.
O que eu tinha apontado, no meu enquadramento, era a "humanização" da imagem simbólica do ovo: em Bosch, ligado à criação e sua decadência, sua degradação que ele torna bem visível, figurando através de formas que hoje se diriam do domínio do surreal, a sua visão da Queda, de uma humanidade que o pecado corrompera para sempre. Já em Maier o ovo simboliza o mistério da Obra que tem de ser "aberta" (pela espada, pelo glaivo de fogo) para que dela possam os elementos naturais ser "sublimados" e a natureza ser redimida da corrupção, ou do pecado primordial (se aplicarmos à alma esta mesma simbólica alquímica, como fez Jung). Magritte ironiza, nos sues quadros, sobre o poder da imagem e da linguagem...aplica títulos que confundem, em vez de esclarecer!
Mas nos corropios de Alice não há visão decadente, não há pecado que se aponte com o dedo, o que há, em cada momento, é a surpresa da transformação e do crescimento: ela por vezes cresce; e se foi demasiado, logo diminui....aqui está pois a lógica, que é uma "outra" lógica, da transformação. Dir-se-á : de uma criança em mulher? E procuramos em Freud a leitura que ajude? Não me parece.
A lógica será outra: do sonho, da diversão que liberta, da interrogação que questiona, do amadurecimento que confronta, tranquilo, qualquer dificuldade.
Bom, e Humpty Dumpty, o ovo tão enigmático?
Ele surge nas aventuras DO OUTRO LADO DO ESPELHO. Isto já significa qualquer coisa. É o espaço-tempo para lá da consciência. Alice quer um ovo, a lojista oferece dois, Alice insiste que não quer dois (seria o par consciência-inconsciente) mas apenas um: o do inconsciente. Não que se exprima assim, somos nós a fazer esta leitura. O espaço, alterado, transforma-se, torna-se cada vez mais escuro, a loja é agora um jardim, pois tem lá dentro uma árvore e um regato: tudo aponta para o espaço de um imaginário transformado, uma revelação do inconsciente, que o ovo, um só em vez de dois, já iam prefigurando, no desejo de Alice.
Tomemos a árvore como Árvore da Vida (pois vamos lidar com um ovo), o jardim que nasce da escuridão da loja como Jardim do Paraíso, e o ovo que ela já tem na mão como Ovo Primordial. Um símbolo do princípio de tudo: da Vida, na sua evolução.
O ovo cresce, cresce, torna-se imenso, como o mundo que representa., mas é de um mundo humano que se trata: Alice vê que ele "tem olhos e  boca e nariz" e reconhece Humpty Dumpty, figura do imaginário tradicional. Contudo é do seu simbolismo que nos vamos ocupar: ovo-figuração do inconsciente humanizado.
Características a ter em conta: olha sempre para o "outro lado" mesmo a falar com Alice; ele pertence aos seu outro lado, o do inconsciente, aquela esfera da psique que mesmo ao manifestar-se sentimos como outra, designamos por mais funda, mais longe,  - tudo o que signifique distância e não proximidade; próxima é a esfera da consciência imediata, longínqua é a esfera da consciência mediada (pelos sonhos, pela criatividade, pelo impulso a-lógico, etc) ou seja, o inconsciente.
H.D. pergunta a Alice como se chama: e não há nada mais complexo do que re-conhecer e dizer o nome, o verdadeiro...De alguma maneira o Ovo, ao interrogá-la sobre o nome, interroga-a sobre a vida, a existência, que o nome justificará...ou não!Alice percebe que a situação é difícil: questão de vida, mesmo. Pois H.D. lhe confirma que o nome significa o que se é: " o meu nome significa a forma que eu tenho" : é redonda, e ele é um ovo.
O nome é a manifestação da essência e da existência que ela assume.
Estamos em plena sessão de análise e discussão da linguagem e sua potencialidade: não a linguagem que dá voz ao coloquial, mas a que dá voz ao essencial da natureza humana e da sua existência.
O diálogo envereda por um jogo de palavras e de números em que o tempo também entra, mas entra acima de tudo a lógica do "ver ao contrário"  ou melhor do ver ( e do dizer) de forma aleatória o que bem se entender, sendo que tudo tem o significado que se quiser: "Quando eu emprego uma palavra ela quer dizer exactamente o que me apetecer...nem mais nem menos, retorquiu Humpty Dumpty". E passa a explicar o peso que as palavras podem ter, sendo que os verbos são os mais difíceis de controlar, e por aí adiante num jogo que parece interminável e se destina a isso mesmo: a explicar que tudo é possível, na lógica própria de um imaginário  livre e naturalmente complexo. E por se tratar de um ovo direi que é fértil o maravilhoso mundo do inconsciente, em que a nossa Alice mergulhou.

Tuesday, July 31, 2012

O Ovo Primordial

Em vez de tentar esquecer vou relembrar aqui esta imagem de um sonho que tive há uns dias: estamos em meados de Julho de 2012.Hora de almoço, todos à mesa, a minha mãe (a sua Sombra) também está connosco.A refeição é de ovos, e de repente a minha mãe parte um ovo e deita para o meu copo de água uma gema que fica lá dentro a boiar, amarela, inteira.
Acordo.
Sei, ou julgo saber, que esta imagem de uma gema de ovo se prende com o próprio simbolismo do ovo: um nascimento, um princípio. O imaginário alquímico está repleto destas imagens, das mais antigas às mais recentes.
Contudo falta-me alguma coisa nesta explicação. E procuro, tenho procurado, ao longo destes dias. Nâo paro de pensar.
Irei talvez reler Jung, era o meu Mestre, outrora.
Há muito que não o leio.Se soubesse desenhava: a gema de um ovo fresco, inteira, amarela, boianso no copo de água.
Mas julgo que são importantes outros factores do sonho: o estarmos em família à mesa; a minha mãe (que já morreu há anos) aparecer ali sentada connosco; e o ser ela a despejar o ovo para o meu copo.
Que associação fazer: morte e vida?
Um renascimento espiritual? (seria o meu, que estou com uma depressão que não passa e não confesso?).
Num sonho a imgem simbólica é fulcral: diz qualquer coisa, avisa, alerta ou confirma.
E neste caso o que será?


Monday, July 30, 2012

My Name is Red



Certo dia num almoço de amigos alguém falou de romãs e romãzeiras. Disse um: eu acho que a romã simboliza a pureza...
Não contrariei, pois há muitas formas de pureza e até a imperfeição pode caber numa delas.
Ele queria aludir a S.João da Cruz, para quem o simbolismo da romã apontava para a Igreja, vista como fruto de muitos bagos generosos, os fiéis, os crentes, que dentro dela cabiam.
Mas na realidade o simbolismo da romã é mais ligado à vida, à fertilidade, à reprodução que, na mística persa, por exemplo, assume a forma explícita e sensual dos seios da mulher.
Há outras tradições: na Grécia antiga a romã é um atributo de Hera e de Afrodite; e nos casamentos dos romanos a cabeça da noiva ia enfeitada com ramos de romãzeira.
Já num exemplo oriental se diz num ditado que a romã quando se abre deixa sair cem crianças. Aqui é bem claro o simbolismo sexual, mais do que sensual.
É na mística cristã que o simbolismo é transposto e espiritualizado : o fruto, por ser redondo, alude à perfeição e eternidade divinas, os bagos, por serem múltiplos, aludem aos efeitos inúmeros e aos inúmeros fiéis que desses efeitos da acção divina resultam, e finalmente o sumo, doce e suave, representa o gozo supremo da alma que em êxtase se entrega ao amor e conhecimento de Deus.
A romã pode então ser considerada um símbolo emblemático dos mais altos Mistérios divinos, seus Juizos, sua Grandeza.

Mas também, tal como a maçã, pode ser ligada à Queda e ao Pecado, por força de um tabú que se quebra, de uma tentação em que se cai, com consequencias irreparáveis.
Perséfona conta à mãe que foi seduzida contra sua vontade depois de ter comido um bago de romã (no hino homérico a Deméter). E assim ficará condenada a passar um terço da sua vida no Hades. Por sua vez os sacerdotes de Deméter, nos ritos iniciáticos dos grandes Mistérios, seguiam em procissão coroados de ramos de romãzeira : símbolo de fecundidade, a romã facultava a descida das almas ao corpo, à carne dos vivos, e daí que se tornasse tabú, não podendo os seus bagos serem comidos em actos não sacramentais.

Termino com um verso turco, que nos levará a Pamuk: a noiva é como uma romã fechada.
Quem tiver lido O meu Nome é Vermelho, romance sensual e misterioso que decorre numa Turquia de outros tempos, encontrará, no capítulo 7, I am called Black, Chamam-me Preto, a subtil descrição de um furtivo sinal de amor, que terá lugar quando o herói passar a cavalo diante de uma romãzeira que se encontra no caminho. Um amor que pertenceu a um passado longínquo, mas cuja emoção se mantém intacta como no primeiro momento. Nem traduzo, para que a lingugem não perca o seu sabor ( sendo que também aqui o sabor é tudo ):
" My heart was racing, my mind was overcome by excitement, my hands had forgotten how to control the reins.Where was the pomegranate tree? Was it this thin, melancholy tree here? Yes! After twelve years, I saw my beloved's stunning face among snowy branches, framed by the window whose icy trim shone brightly in the sunlight."
Comprimi um pouco o texto, porque Pamuk escreve lento, minucioso, para quem tenha todo o tempo para ele e só para ele, e a nossa vida é hoje bem mais apressada. Mas ali está a romãzeira do amor, do desejo, consumado ou não, de que a árvore ainda que invernosa e melancólica dará perene testemunho.
Pamuk bebe nas suas tradições a universalidade dos seus símbolos. Recria um ambiente que é o próprio das lendas das Mil e uma Noites. A sua alquimia é a mais pura, é a dos sentimentos, das almas que se procuram : sabiamente o pai da amada de Black lhe tinha dito, como que por acaso:
" sabias que depois da morte as nossas almas poderão encontrar os espíritos dos homens e das mulheres, neste mundo, enquanto dormem sossegados nas suas camas? "
"Não, não sabia".

Aludiu-se aqui à dimensão dos sonhos arquetípicos que universalmente existem, nos habitam, fazem a ponte entre os dois mundos, o dos mortos e o dos vivos, deixando talvez antever que tanto faz- em meio simbólico- estar vivo como estar morto ( para o herói algo de assustador).
Pamuk não se exime a falar de alquimia: das cores, desde logo, mas sobretudo do pensamento que tudo transforma.
Recomenda-se a leitura, comendo ou não as romãs.

Friday, June 29, 2012

O Branco e o Negro

Escrevi no blog de cultura visual algumas considerações sobre o conceito de Imagem como Representação.
Referi, como mediação possível, outro conceito, o de Arquétipo, segundo Jung, que muito se ocupou do imaginário (consciente/inconsciente) e do simbolismo alquímico em obras significativas de alguns artistas.
Ocorre-me, entretanto, que a Imagem do Negro, seja como nigredo de alma, seja como forma de entendimento do abismal centro da criação, Ungrund Absoluto de onde todas as formas (energias) emanam, terá forçosamente de conduzir ao seu Oposto, o Branco, explosão luminosa onde todas as formas se reúnem, numa fusão que não difere afinal assim tanto do Negro inicial ( e iniciático).
É certo que na tradição alquímica toda a meditação parte do negro do chumbo, do negro da pedra, lapis niger, figuração de um primeiro estado de espírito, uma ânsia de absoluto que não encontra referente nem guia.
Esse Absoluto Primordial é um dos nomes de Deus, inominável. A sua treva absorve, dissolve, concentra, num movimento centrípeto que pode ser ( e frequentemente é) aniquilador da consciência, do eu e do mundo.
A fase alquímica seria a da dissolução: solutio, ou solve - como em Basilio Valentino; a ela se sucederá a da coagulação; coagula.
Com a indicação de solve et coagula está dada uma das chaves da procura. E quanto às figurações da Imagem da Pedra: do Negro se passou ao Branco.
O Negro absorve e dissolve, exige entrega - pode ser destruidor.
O Branco liberta e permite a explosão das energias mais fundas- pode ser criador.
Entre uma e outra côr, uma palette infinita.
Entre uma e outra côr uma multiplicidade de experiências e doutrinas.
Do nihilismo abissal ao suprematismo absoluto.
Neste primeiro quadro Marcel Robelin explora a metafísica oriental, no video seguinte, sobre a obra de Malevitch, podemos descobrir os variados processos, os variados caminhos.



O Vazio que o Tao, ou o Yi King nos propõem é afinal um espaço de Revelação, onde as formas se anulam e se fundem - seja no Negro seja no Branco, imagens complementares no jogo de opostos que a Arte, mais do que a vida, nos transmite.

Thursday, June 14, 2012

Pessoa e os Santos Populares

Tendo escrito sobre estes poemas e a sua dimensão simbólica, há alguns anos atrás, e estando o nosso país em necessidade de alma, de mais alma, deixo a indicação da obra: talvez se encontre em antiquários ou, quem sabe, talvez alguma instituição o reedite.
Por mim poderia ficar em edição on-line!

Friday, May 11, 2012

Lua Grande



Lua Grande


À sua frente passavam os leões.

Tardava a noite escura
e dos Verões 
recordava os segredos:

era o mar 
na floresta

era o sol
da aurora
escondido
numa onda

era a gruta
dos medos

a Lorelei antiga
ao leme das memórias
abria-lhe os portões


           (Lisboa, 11 de Maio de 2012
           ao Bernardo Sassetti, in memoriam)