Wednesday, June 06, 2007

Comentarios aos Sete Cantos de Taut


O leitor mais atento percebeu com certeza que são Cantos dedicados a Thot, o deus Hermes dos antigos egípcios, pai fundador da arte alquímica.
Os poemas são colocados sob a égide de Virgílio e Dante- os grandes condutores da experiência mística e mítica da alma.Pois é dessa experiência profunda que se trata, por meio de uma imaginário que pode ser descrito à luz do modelo de Bachelard, entre outros.
Logo no prelúdio é celebrada a Terra, como Grande-Mãe, e de seguida a Água, como fonte de vida jorrando do seu seio.
Terra e Água serão as propiciadoras da grande transformação. Mas também fica apontada a utopia, a retomar no último dos Cantos, de uma cidade onde se poderá erguer a voz num cântico de estrelas.

Escolhi para ilustrar o Canto I a gravura VIII da Atalanta Fugiens em que o adepto ergue, para abrir o ovo da vida, o glaivo endurecido ao fogo da lareira (da alma) alquímica. Esse é o gesto que permite iniciar o trabalho da Obra.
A legenda reza " pega no ovo e e bate-lhe com um glaivo de ferro" ; este gesto, com esta espada, permitirá que nasça o pássaro que vence a dureza do ferro ( a alma endurecida ) e o excesso de calor do fogo ( a pulsão ainda não sublimada ).
Poderia ter escolhido outra gravura, a X, dedicada exclusivamente ao elemento fogo e seu papel na transformação necessária.

Aqui a legenda reza: " Dá fogo ao fogo, mercúrio a Mercúrio e isso é suficiente". Vemos o adepto junto à lareira acendendo o fogo e dois Mercúrios ( Hermes ) com o caduceu na mão, contemplando o trabalho.

No Canto II são reforçadas as imagens da água ( o mar ) e do fogo num novo casamento de opostos, desenvolvido melhor "nas bodas do sol e da augusta Terra" da terceira estrofe. Essa é a mensagem: a das Bodas Químicas, narradas por J.Valentin Andreae num célebre tratado que fez furor na época da sua publicação, continuando pelo tempo de M.Maier.

Mas esta primeira união ainda não é a definitiva, é um vislumbre apenas do que poderá ser, se bem sucedida a Obra de sublimação, o futuro do adepto como fundador e construtor da cidade da paz.

As imagens mais fortes são a do negro chumbo, do mau cheiro da podridão de cadáver que tem de ser decomposto - a "obra ao negro, enfim- a descida ao abismo da "massa caótica" de um inconsciente descontrolado, entregue às suas pulsões mais baixas- veja-se a referencia ao "porco"chafurdando na lama, como parte do bestiário desta poética hermética. Há um eco de Rimbaud - Le Bateau Ivre - no apelo do mar, da descida ao abismo, da visão do inferno.

A evocação de Dante, no Canto III, recentra o tema do homem no coração do mundo, o homem no centro da esfera da criação, conduzido à luz pela energia positiva do amor "num rodopio eterno". A experiência do negro permitiu esta nova fase em que a cidade ideal se aproxima , fraterna. O poeta exclama:" mundo, nada está fora de mim" - visto o mundo, descoberta a esfera da cadeia dos seres, a alma roda como uma estrela que cintila.

A sementeira faz-nos regressar ao elemnto terra, sua fecundidade, ouro na espessa treva.
E descreve-se, no Canto IV o templo, obra das próprias mãos, a arca com o tesouro, o hino eterno que sublima os ares.Mudou-se de fase, a presença dos elementos espirituais que o templo representa permitem um grande avanço no caminho.

O Canto V proclamará a santa Liberdade: noite vasta/ dia abençoado (conjunção de opostos, sempre desejada, sempre repetida) o adepto segue, vai com o vento ligeiro e aqui ficaria bem reflectir de novo com M. Maier noutra sua gravura, cuja legenda reza : "E o Vento levou-o no seu ventre" ( aludindo ao embrião da Pedra Filosofal, a matéria da Obra a sublimar ).


O embrião contido no ventre poderá depois ultrapassar os heróis pela força do seu braço, do seu espírito, do seu corpo, da sua arte.
Quando o poeta exclama: " Morte, atravessei-te.Meu domínio é sem fim", fez entrar a dimensão do espaço na dimensão do tempo que vivera. E o espaço é amigo, o espaço concretiza, fixa o volátil na " ordenação medida" com que o circunda ou enquadra.A vivência do tempo místico é vertical, espiralada, mas a "ordenação" do espaço é o que permite imaginar a quadratura impossível do círculo. Ainda que descrito como espaço sem fim vemos pelos restantes versos que esse espaço é o da natureza, a terra aberta ao infinito do céu (nas Bodas já citadas).

Os cantos VI e VII são o fecho de glória de um caminho percorrido : vazio fecundo, terra firme, ponto no centro do Todo, rosa ( a de Dante no Paraíso, mas também a que dá o mel às abelhas, no Rosário dos Filósofos...).
O indefinível é cantado com emoção e agora afirma-se o glaivo de ouro ( antes fora espada de fogo ), o véu rasgado (deixando ver a luz), o silêncio quebrado (revelando a palavra): " le dedans est dehors, o interior está no exterior", na conclusão final.

A alma dissolve-se no ar em pó de diamante e eis a combustão : a palavra francesa, embrasement, permite um aprofundameno em embrassement ( o abraço dos amantes, a fusão ) que o trocadilho anterior entre Aimant , Íman , e Amant, Amante, já vinham indicando.

Termina-se de novo com Dante e Virgílio, egrégios antepassados.E glorifica-se a Obra do Poeta:

"Poeta, tu bem sabes: a morada do homem
É uma teia tecida em ouro pelo Espírito.
Tem piedade, comigo, desses reis sem domínios:
No seu deserto que oiçam o meu grito.

Ergueremos então sobre as ruínas antigas
Uma cidade, espelho da ordem verdadeira
Onde a sombra e o sol, brincando sob os pórticos
Ofereçam às almas a imagem da paz".