Saturday, April 14, 2018

Teresa Balté e Leonor Beltrán

 Duas exposições, dois caminhos:
Teresa Balté na Perve Galeria,
Leonor Beltrán na Casa da América Latina
 Inauguradas quase em simultâneo, a primeira no dia 12 de Abril, a segunda no dia 13, tão diferentes e no fundo tão complementares.
Falemos primeiro de Teresa: expõe as suas aguarelas e técnicas mistas, obras que o curador Carlos Cabral Nunes foi redescobrir, datadas dos anos sessenta, na sua maioria, com as marcas de época de um surrealismo colorido, expressionista quase, e lírico, sempre, que o pintor Cruzeiro Seixas tinha em seu poder e gentilmente disponibilizou para esta grande antológica numa galeria que é mágica, são espaços de uma Alfama arcaica iluminada pela luz e pelo brilho da Arte, respirando por ali em liberdade.
Diz a pintora, num breve texto de 1992, a respeito destas pinturas agora de novo exibidas, com o título de PINTAR AS COISAS:

“ Restaurar as ilusões, soltando a perspectiva ou conjugando água e fogo, tinta e nervo. Exercitar a imaginação elástica. Desaguar na enseada dos símbolos. Depois cortar a corda apodrecida e naufragar o papel nos mares da China. Recriar então o caos (...) colar noutros espaços os lugares. Olhar pelo golpe entre as pálpebras ou pelas cicatrizes que corrompem o tronco do homem e da árvore, a folha-pluma-alma...até à náusea.
Gritar de novo. Já não cantar de manso. Porque a boca secou e o discurso é artificial e artificioso. Descolar então. Voar sem rumo. Pelos labirintos da vertigem. Pelo absurdo de não haver absurdo. Pela refluxa nostalgia do abscôndito. Descolar ligeiramente as retinas”.
Sendo esta pintora também uma poeta de obra já longa, e meditada, é às suas palavras que entendi entregar a reflexão sobre o que ali, entre formas e rostos, e um certo e expressivo bestiário animal, expondo  curvas de serpentes,  asas de borboletas, agudas cabeças de pássaro, que surgem do nada prontos, quem sabe, a devorar um rosto já de olhos fechados, baleias humanizadas e expectantes, prontas a receber a chama já sem luz de um Ícaro cadente, nas palavras que cito e que alguns belos poemas inéditos pontuam, encontro afinal um dos caminhos: o que se encontra lá fora, que é feito de tudo um pouco, do mais banal episódio ao mais profundo segredo. Nascem monstros da treva, do negro da sua alma (nigredo dos alquimistas, marca da mutação) mas nas mãos de Teresa irão sofrer muitas transformações, cobre-os de luz e côr, retira-lhes a máscara que os cobre, e tudo nestes quadros de repente explode e dá-se à nossa frente um novo nascimento, o de um cosmos ao mesmo tempo caos mas que alguma divindade por dentro iluminou.


Bem diferente é o caminho percorrido por Leonor Beltrán, pintora também ela já de longo percurso, não é o PINTAR DAS COISAS que ela expõe, mas sim o pintar da alma: não das coisas, podia ser, as coisas têm alma, cada uma a seu modo, como as plantas ou os animais.
Não. O que ali, finamente desenhado a tinta da China, com lápis ou pincel, é um conjunto de meditações todas elas viradas para dentro, um mundo esférico, por vezes inacabado, como se de uma renda abandonada a meio se tratasse, um mundo circular que se procura perfeito, seja a partir de um ponto que foi ponto inicial, no dizer de um Nicolau de Cusa, ou resultante de um movimento que se desejou completo, Todo e Uno, mandálico no sentido mais junguiano do termo.
Leonor chamou MOVIMENTO 2  ao seu conjunto, que também ele, como o de Teresa Balté reúne em antologia vários anos, desde os anos sessenta (o que há de tão surpreendente ainda hoje, nesta década de tanta escrita livre, onírica, libertária, e ao mesmo tempo de tanta análise profunda dos cantos mais recônditos da alma? Breton e os surrealistas já se tinham apropriado do imaginário da noite, mas Jung ainda discutia com Freud a existência de arquétipos e de um inconsciente colectivo).
Já por aqui se nota a primeira diferença do olhar destas pintoras e dos seus dois caminhos, ambos tão sedutores:
Teresa pinta as coisas, está certamente mais perto de Freud, naqueles anos em que pinta. Leonor mais perto de Jung, ainda que talvez não saiba. O seu movimento é o da busca do sentido das finas teias da alma. É assim que da pincelada cheia, evocando Michaux, numa primeira série de quadros que podiam ter saído de LA NUIT REMUE, a noite em que tudo se mexe, de onde tudo se escapa em busca de luz melhor, caminhamos com ela para outras séries em que o finíssimo ponto é de bordado, de aranha ou de tecedeira, das que desenham a alma com o sopro da vida ou com  tesoura infame a interrompem de súbito e sem perdão.
Flutuamos nessas teias, num movimento que suspende, não embala, interpela, não responde. Há por vezes uma construção geométrica, elaborada, que se afunda no coração mandálico da teia e penso : Escher passou por aqui. Mas Escher seria ainda um outro caso à parte: jogos de espelhos, de ocultação e desafio de elaboração complexa, geométrica, matemática. Ainda que escondendo, como na alquimia, aquela fusão andrógina, platónica, dos rostos dos amantes. Com Escher, que alguma pintura de Leonor me faz aqui recordar, regresso à harmonia pitagórica de uma matemática secreta, primordial. Mas Leonor vai mais longe: despoja-se dos jogos que seriam para ela, quem sabe, uma fácil tentação. E entrega-se ao seu labor de formiga, de trabalho e entrega humilde, pondo de parte toda e qualquer ostentação de cigarra. Depura-se, em cada forma, quando vai chegando ao fim do que ela própria não saberia ainda revelar.
Porque na alma tudo se esconde, nada se revela, enquanto não se atinge o que é seu ponto vital. Um ponto de muitos pontos, caminhos e movimentos de muitos desvios feitos e refeitos e novamente desfeitos...Ali ficamos presos, no Uno da forma, que se ampliou num centro que é vital ou na sua interrupção.
Que significa o 2, na escolha do título? (Para mim todo  o título é já indicação).
Que ali se retomou o célebre Axioma de Maria, de que Jung (ele mais uma vez) tanto gostou, e tanto o estudou nos alquimistas e nos grandes criadores, como Goethe, no Fausto.
É em Psycholgie und Alchemie (1944), que Jung apresenta o que chama de “um dos axiomas centrais da alquimia” a afirmação de Maria Profetisa:
 “O Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e do Terceiro se forma o Uno como Quarto” (p. 41). Afastando-se dos estudos puramente da doutrina química, científica, dos autores do seu tempo, procura Jung, como diz, trazer à luz a problemática histórico-religiosa e psicológica dos temas ligados à alquimia. Considera a alquimia como uma espécie de sub-corrente, ou corrente oculta da superfície dominante da cristandade. É vista por ele como um sonho em face da consciência, compensando, como os sonhos fazem, as lacunas, os conflitos, que na consciência se debatem.
O número dois significa precisamente a Mulher, a Terra, o subterrâneo (oculto) A Lua, o Mal, inclusivamente. Basta recordar que Eva é o número 2 de Adão...e é culpada de ceder à tentação da serpente, que provocará a Queda e  expulsão do Jardim do Éden.
Por outras palavras, encerra perigo este número, que por outro lado é o que permite a criação do par primordial, e gerado por ele, da espécie humana. Maria Profetisa, também denominada a Judia, ou a Copta, irmã de Moisés, -na tradição alquímica- é por vezes aproximada da Maria que conhecemos dos textos gnósticos do início dos séculos II-III.Pareço estar a desviar-mse do ponto da minha reflexão, e da obra de Leonor, mas não estou. Chego então ao mais importante: Maria Profetisa sublinha muitas vezes o seguinte:
“ Todo o segredo (entenda-se, da Obra alquímica)  reside no conhecimento do que é o vaso hermético. O Uno é o vaso (Unum est vas). Por isso tem de ser redondo, para que imite o cosmos esférico. É uma espécie de matrix, de útero, do qual o filius philosophorum, a Pedra maravilhosa, poderá nascer. Daí que por vezes também se refira a forma de ovo deste vaso. Mas Jung acrescenta que é preciso ter em atenção que estamos perante símbolos, que este vaso uno exprime uma ideia mítica, mística,como todos os símbolos alquímicos (p.327).
Se perante alguns dos quadros de Leonor Beltrán de imediato nos sentimos próximos de um Mandala, ou de uma experiência próxima desse exercício de meditação de que Jung, inspirado na mística oriental, se serviu para recuperar a sua alma de uma depressão que lhe devorava a vida, é porque há neles essa energia contaminante e manifesta. Leonor expõe movimento e caminho (Jung só depois da sua morte autorizou a divulgação do célebre Livro Vermelho), com uma generosidade que a engrandece, e à sua obra.
Saudemos pois, em percursos tão diversos, um imaginário que se completa, na sua diferença: Seja para a contemplação do que nos é (aparentemente apenas) exterior, ou do que nos é interior (mas em necessária e vital revelação).
Em resumo, saudemos os criadores, na sua criação.  




Sunday, April 08, 2018

Remo F. Roth HOLY WEDDING,Pari Publishing, 2017

O sub-título da obra indica a inclusão da Sincronicidade (conceito que Jung definiu) e dos princípios herméticos na visão do mundo do século XXI. É último volume de uma trilogia, Return of the World Soul I, e Return of the World Soul II. Neste terceiro volume o autor debruça-se sobre os limites da consciência humana contemporânea, estudando o conceito e a doutrina  junguiana do Casamento Sagrado (encontramos por vezes outros termos, como Casamento Químico, recuperando as célebres Bodas Químicas de Johann Valentin Andreae, um texto fundador do rosicrucismo alquímico na Alemanha).
Em que consiste este Casamento Sagrado)? Dito de modo simples, na união  da psique com a matéria, ou do espiritual e do material na própria psique, pois é nela que essa união, essa fusão de opostos se verifica.
Roth refere que é nesta união de pensamento e emoção, logos e eros, espírito e matéria, que se desenvolve a psique, na espécie humana, e mais até, se propicia a sua sobrevivência. 
A nossa psique, entenda-se a nossa mente (mind), tem uma estrutura bipolar, dinâmica, e o que o autor nos propõe é a aventura de explorar, navegando em ambas, uma união alquímica, que lhe serve de modelo para uma vivência exemplar e adequada ao século XXI.
Este é um autor, de formação junguiana, discípulo de Marie-Louise von Franz, tal como ela o foi de Carl Gustav Jung e a quem ela terá dito: 
" Eu não posso ir além de C.G. Jung, mas você tem de ir".
Nascido em Zurique, em 1943, Roth procura investigar a realidade psicofísica de W. Pauli, ou como Jung definia, o unus mundus tal como o encontramos nas doutrinas do  mundo mágico do Um e do Todo, da alquimia, da filosofia hermética, do taoísmo e da alquimia chinesa, de que Jung, com Richard Wilhelm (o grande tradutor do I Ching e do Tratado da Flôr de Ouro) igualmente se ocupou.
Procura-se, nesta obra, o que se procurou durante séculos: a recuperação de uma Totalidade, de uma Unidade perdida, que faça do ser humano uma criatura completa em si mesma, e nessa Completude integrada no  Todo que é o Universo (ou o Deus que o criou).
Que neste momento, já falecido Stephen Hawking, mas sem que se tenha esgotado o seu sonho de encontrar a fórmula do Todo que explicasse o Universo, não deixa de ser interessante, posso mesmo dizer importante, que um psicólogo das profundidades, junguiano, deseje ir ao encontro do Físico que é Pauli, para sonhar com um modelo que faça avançar um novo pensamento para o século, uma nova doutrina, um novo modelo, ainda não de suporte matemático, mas de suporte puramente feito de energia emocional.
Não admira que Roth seja hoje em dia considerado um "abridor " de sonhos, além de terapeuta.
Numa carta de 1953 Jung escrevia a Pauli: 
" O problema da coniunctio tem de ser guardado para o futuro; é mais do que aquilo a que posso entregar-me, e o meu coração reage se me demoro muito tempo nestas áreas. O meu ensaio sobre o Espírito da Psicologia, de 1946, resultou num ataque muito sério de taquicardia, e a sincronicidade provocou o resto". 
O ensaio referido está publicado com o título de On the Nature of the Psyche, na tradução inglesa das obras completas,vol.8.
Podemos sofrer, e mesmo adoecer, como aconteceu a Jung, ao mergulhar no silêncio das trevas que há na alma. Mas também se adoece, ou mesmo morre, se não se procura a voz que está lá dentro.
Essa é a função do psicólogo actual, como era outrora a do filósofo hermético no escuro da sua caverna, ou diante do seu forno alquímico.