Thursday, February 13, 2014

La Dame à La Licorne
Para A Teresa Horta e sua bela Dama

Quando visitei o museu de Cluny, em Paris, com a bela colecção das tapeçarias da Dama e o Unicórnio, sempre me intrigou a sexta, A Mon Seul Désir, que ora traduzo por "ao meu único desejo" ora por "só ao meu desejo".
Ao meu único desejo: e qual é ele?
Satisfeitos os cinco sentidos, do gosto, do tacto, do olfacto, da visão só talvez um desejo imaterial a que se faça apelo poderá ser esse que falta.
Só ao meu desejo: seduzido o unicórnio, que simboliza a pureza que se conservou ou a que se aspira, esse é então o desejo, o úinco e assim é celebrado, nesse lema que é de brasão, tanto como de coração.
Há algo de oriental, nestas tapeçarias: uma tenda aberta num deserto ou num oásis, num jardim de alma, e cá dora, exposta mas com reserva natural, a Dama com a sua aia.
Rodeiam-na alguns animais também eles emblemáticos, o cão, companheiro fiel dos alquimistas, em tantas gravuras conhecidas; o macaco, figuração de Hermes, o deus Thoth dos egípcios (mítico  pai da alquimia), para não falar do leão e do unicórnio, os animais que ladeiam a Dama, como que em protecção.
É na sexta tapeçaria que ela tem diante de si um cofre, que a aia segura, e de mão estendida parece estar a guardar a jóia que usou nas outras; ou estará antes a retirar alguma mais bela, diferente?
Não poderemos saber.
Mas a legenda inscrita ao alto da tenda está ali bem à vista para que seja lida e entendidada. De que modo? Aconselhamento? Aceitação? Pura referência de identificação, como num Brasão de Armas?
A Dama que ali se encontra, em tenda tão ornamentada, não poderá simbolizar a Pedra Filosofal, a perfeição da Pedra?
Teríamos então de permanecer na língua original, sem traduzir, e ver o leão como emblema masculino, solar - que assim é na simbólica alquímica- e na licorna, mantendo o feminino do francês, la licorne, o emblema lunar e feminino, ambos compondo então o par primordial da Obra, em Conjunção.
A narrativa expressa nas peças seria então o caminho do material (os sentidos) para o espiritual (a pomba que voa sobre a tenda)  e esse seria o desejo, o único, o perfeito.
Carl Gustav Jung, em Psicologia e Alquimia (Psychologie und Alachemie, 1952, " Das Einhornmotiv als Paradigma, pp.585-634) estudou com cuidado as origens do mito, ou da lenda, da Licorna, que terá chegado ao ocidente por via da Índia, ou do Egipto antigo em que se encontram referências a esses animais estranhos, munidos de um único chifre a que se atribuíam poderes mágicos, de cura ou de veneno mortal, conforme os casos.
Aponta também a licorna, ou se se preferir o unicórnio, como um dos motivos fulcrais da produção do imaginário alquímico, transitando desde os gregos, como Zosimo, no século III da nossa era, até aos adeptos que na Idade-Média já o cristianizam como emblema de pureza, nos vários tratados conhecidos.
Para melhor se acompanhar o estudo de Jung temos de regressar ao significado do mercúrio simbólico, no processo de elaboração da Obra que conduzirá à Pedra Filosofal - emblema da absoluta perfeição, e também ela, posteriormente, identificada ora a Cristo ora à Virgem Maria.
Mercúrio, neste contexto, é o elemento da mutação, da metamorfose, que surge durante o trabalho sobre os outros princípios, que são o enxofre e o sal. Assim é desde a tradição gnóstico-pagã e cristã já referida e são estas as qualidades de que se reveste a licorna, descrita como animal de fábula, podendo surgir como cavalo, burro, peixe, dragão, escaravelho, etc. (Jung, p.587). Essa capacidade de mutação é o que distingue o unicórnio, e deste modo já o veremos, nas Bodas Químicas de Christian Rosencreutz, 1459, narradas por J.V.Andreae.
Sabe-se que o autor verdadeiro é de facto Valentin Andreae, teósofo alemão do século XVII, e é deste século, de 1616, e não do século XV que é datada a obra.
Para todos os efeitos o que se nota é que é conhecio na tradição o motivo emblemático da licorna ou do unicórnio, como se queira chamar.
Pessoalmente, para os efeitos das considerações que faço, e também para o caso do livro de Teresa Horta, que irei enquadrar adiante, prefiro o feminino, como já escrevi no post anterior ( em  literatura e alquimia).
Nas Bodas Químicas surge uma licorna, branca como a neve, que faz uma reverência perante um leão. Segundo Jung, "licorna e leão são ambos símbolos do mercúrio". Contudo, mais adiante na narrativa, a licorna transforma-se em "pomba branca", outra figuração do mercúrio, volátil, devido ao seu vôo. que também permite que se identifique ao Espírito Santo, nas tradição cristã.
O mercúiro volátil é comparado, em alguns tratados, como por exemplo o de Lambsprinck, a pelo menos uma dezena de animais,  ilustrando a obra com essas gravuras belíssimas ( Lambsprinck, La Pierre Philosophale, ed. bilingue, latim -francês, Archè Milano, 1971). Nas antologias, ou recolhas, como o Theatrum Chemicum, de 1602, a natureza mutável de mercúrio é apontada, junto com a do leão, a águia e o dragão, como submetida ao ouro superior.
São muitos os exemplos que se poderiam buscar.
Importante é o sinal dado: mudança e submissão a uma ordem perfeita, seja natural seja divina.
No tratado apócrifo atribuído a São Tomás de Aquino, citado por Jung (p.590), o Tractatus qui dicitur Thomae Aquinatis de Alchimia (ms. de 1520) vemos então a licorna a ser amansada, que é como quem diz, recebida por uma virgem vestida de negro.
Poder-se-ia jogar com os opostos negro e branco, a nigredo e a albedo, no decurso da Obra, mas basta que se tenha em mente que estamos perante uma transformação, que tocará tanto a quem a permite, ou a concede, ( a Dama) como a quem a sofre, ou precipita, aceitando (a licorna).
Da cristianização do motivo os exemplos são tantos que não se exige continuar.
Jung percorre o resto da memória do mundo, com os textos antigos dos hindús, dos chineses, dos judeus, dos persas, dos primitivos cristãos em todos apontando que a energia animal está bem presente, e propicia o nascimento de deuses e heróis - que operam as mudanças, como em mágicos ritos de passagem, em cada memória, cada civilização nascente.
Mas o que eu suponho sentir, nas tapeçarias da Dame à la Licorne é algo de mais antigo (dir-se-á, é próprio das imagens arquetípicas, guardadas no inconsciente), a saber que há ali marcas oriundas de um oriente longínquo, talvez da alma, sim mas talvez igualmente de um imaginário que na Idade-Média circulava por força das guerras contra o Islão, dos tesouros do Templo, da sabedoria que os Cavaleiros Templários traziam consigo de Jerusalém, a cidade perfeita.
Na haveria ali, na figura tranquila de uma mulher na sua tenda, sentada com a sua aia, algo do eco profundo dos Cânticos de Salomão à Amada perfeita, a Sulamith, uma alusão a novo paradigma, o da reconciliação de opostos, Leão e Licorna, ambos triunfantes, porque submetidos a uma Ordem maior, erguendo bem alto os seus belos estandartes? E sendo assim, tanto faz, para a nossa relação com este mito, que este mercúrio alquímico mutável seja licorna ou unicórnio, pois que em ambos os casos o que se figura ali é uma das nossas energias (pulsões) do inconsciente.
Deixo só a pergunta.
Esta tapeçarias ocuparam o pensamento de uma grande poeta, Teresa Horta, que em finais de 2013 publicou os seus belos poemas, com um profundo sentido do mistério que as rodeava.
Teresa intitula a sua obra A Dama e o Unicórnio, optando pelo lado masculino da figura, e fazendo da Dama o centro fulcral da sua meditação.
E como poeta que é, e numa relação intuitiva com todo o potencial simbólico que o unicórnio, como se viu, transporta consigo, Teresa fecha o seu ciclo, tão misterioso quase como o das tapeçarias, com uma interrogação, que as interpela, mas nos interpela, sobretudo a nós todos:
"O que faço da minha eternidade"? pergunta abrindo nova estrofe, uma e outra vez, procurando resposta, sempre incompleta (como a vida) até ao ponto final. Porque tudo é mudança, mercúrio está ali, sob uma forma que podia ser outra, mas não, é mesmo aquela, e é aquela que, ao escolher-nos, nos obriga também a escolher ( a dar resposta...).

O que faço da minha eternidade?
Pergunta de novo a si mesma.

Enquanto impassível nos fita, imobilizada
na trama armadilhada das tapeçarias
com aquele travo mudo, com aquele
brado surdo, com aquele olhar sem fundo

Numa fala sem mundo

Nós somos aquele espelho que ela estende à licorna, o nosso olhar é cego, mas na nossa mudez (e na nossa nudez, já despidos do mundo) iremos depois mais longe, iremos depois mais fundo - numa fala sem mundo - quando, como se diz no célebre Mutus Liber nos forem dados "olhos para partir".