Saturday, October 20, 2018

Orhan Pamuk, A Mulher dos Cabelos Vermelhos


Este é um livro que pode (e terá) uma leitura política, de duas Turquias em conflito, tradição e revolução, e o inevitável progresso, atravessado por ambas as situações.
Mas a sua força é outra, reside no modo de contar, através de estruturas de pensamento e reflexão de grande cultura, a história de um jovem, que deseja ser escritor, mas começa por um primeiro trabalho com um Vedor, Mestre Mahmut, conhecido por saber encontrar água e erguer poços para os empresários que ainda confiam na sua sabedoria. A experiência será para Cem, o nome do jovem, uma verdadeira iniciação. A escrita terá de esperar, até que ele regresse a casa. O trabalho é penoso, quanto mais escavam menos parece que haja ali água, ma o Mestre não desiste, está confiante na sua sabedoria. Cada vez surgem mais pedras, lá no fundo, difíceis de remover.
Está difícil, mas não será impossível, diz o Mestre vedor ao jovem, conseguir remover o bloco de pedra que impede que se chegue à água do poço no prazo previsto e exigido pelo patrão.
Nesse intervalo, quando vão descansar ao fim do dia,  cruzam-se sempre com o grupo de teatro que ali se instalou por um tempo, e com a estranha e sedutora  Mulher dos Cabelos Vermelhos, que lhes diz, apareçam ver a nossa peça.
O jovem acha que ela seja dez anos mais velha do que ele, que tem dezassete. Já se cruzou com o seu irmão, e fugiu, com algum receio de que ele lhe quisesse fazer mal. Mas tudo se apagava, ao sonhar com ela, de noite, sob as estrelas, revendo a sua alta e esbelta figura e aqueles cabelos vermelhos.
O inevitável, já quase a meio da narrativa, acontece.
Ele vai à noite ver os sketches do teatro, espera por ela, vão falando pelo caminho, dizem os seus nomes, ele
- Cem
ela
- Gulcihan
 (dizer o nome já é prenúncio do que irá acontecer, tornam-se mais próximos, mais íntimos) e ela leva-o para o prédio onde mora com o marido. É casada, tem 33 anos, o marido está fora, só regressa no dia seguinte. Ela comenta, afável: não tenhas medo, eu podia ser tua mãe. Aqui entronca já, discretamente, o mito de Édipo Rex, que o jovem tinha contado ao seu Mestre vedor, e de que ele nem por isso gostara. Era mais apreciador das tradições populares da sua Turquia antiga.
Em casa da Mulher, sucede o tão desejado momento de entrega a uma paixão que o jovem não consegue esquecer e mal disfarça do Mestre, no dia seguinte, enquanto regressam ao trabalho do poço.
Este escavar do poço, que parece infindável e votado ao insucesso tem sido até agora o principal núcleo da narrativa de Pamuk, cada vez mais incantatória: pois não é de um poço, sempre de um poço, real ou imaterial, que se bebe a água  da sabedoria?
Ocorre-me que esta noite de iniciação do jovem narrador, que assim adquire um novo conhecimento, acima de tudo de si próprio – o amor civiliza – poderia ser comparado à iniciação de Enkidu (o jovem amigo ainda selvagem, de Gilgamesh na epopeia suméria), pela deusa Inanna, a Grande  Mãe a quem ele foi entregue para através da relação sexual adquirir os hábitos culturais que lhe faltavam.
O narrador usa sempre maiúsculas para se referir à Mulher dos Cabelos Vermelhos, mesmo depois de já conhecer o seu nome. Mulher-Mãe, como ela sugere ao referir a idade e como podia de facto ser mãe dele, pela diferença de idades.
Estamos pois, como num quase sonho, no entre-choque de duas culturas: a tradicional, com a fundura de um Poço, escavado ainda à mão, a iniciação do EternoFeminino, e a moderna, os transportes, os estudos, o bulício (com as qualidades e os defeitos, por exemplo da presença dos soldados por todo o lado) de uma sociedade a crescer de modo muito veloz, como se lê nos capítulos seguintes, quando Cem, já casado, se transforma num grande empresário da área da construção.
Logo a seguir ao encontro com a Mulher, a suposta morte do velho Mestre no poço e a fuga apavorada para o regaço da mãe, e o regresso às aulas e às conversas habituais dos rapazes da mesma idade, ajudam a suspender por um tempo a narrativa que no entanto deixa sempre no ar o fascínio pelo mito de Édipo, e o que ele pode vir a pesar no destino do herói, que vive entre dois mundos: o oriental, da sua origem, e o ocidental, do progresso a que aderiu, com a ideia de um país laicizado, uma nova Turquia que pudesse entrar na Europa.
 Mas pressentimos, ao ler, que é bem maior a força dos mitos e lendas que alimentam o imaginário dos homens e das suas nações, e do destino eventual a que são votados.
Finalmente, a partir do capítulo 37, a grande reviravolta, como nas grandes tragédias que nos surpreendem nos palcos (do teatro ou das vidas). Cem tem um filho, cuja existência ignorava, concebido naquela noite de paixão com a Mulher dos Cabelos Vermelhos.
Pamuk vinha, de longe, com subtileza, de forma cautelosa, insidiosa até, sugerindo que nada estava ali a acontecer por acaso. A leitura de livros que se referiam a mitos descodificados por Freud, descobre-se mais tarde, no caso de Édipo Rei, e outros que o jovem narrador, Cem, que queria ser escritor, escrever o seu Livro) - tudo viria a ter uma razão que não era de acaso, era de destino traçado.
Cem, já casado, visitando Museus pelo mundo, com a sua jovem mulher, descobre, graças à gentileza de uma curadora, a grande epopeia SHAHNAMEH, o Livro Persa dos Reis, que não conhecia e era um enorme repositório de mitos, lendas, fábulas, narrativas, entre elas a que ele tinha visto representada pelo Teatro das Moralidades, e em que o Sultão mata o seu filho, desfazendo-se em lágrimas e fazendo chorar toda a plateia, de emoção. A Mulher dos Cabelos Vermelhos tinha aí o seu grande momento de representação, como se de facto estivesse a viver um tal desgosto.
No fundo, de novo em contraste com o Édipo ocidental – em que o filho mata o pai (embora sem saber) tínhamos aqui uma versão oriental conhecida e lida desde sempre, em que pelo contrário é o pai que mata o filho. Mas em ambas as histórias por falta de se reconhecerem no momento da luta. Outra subtileza com que Pamuk nos deixa, para absorvemos o que pode existir nas diferenças, porque ele, na narrativa torna real outro mito, o de Freud: pai e filho lutam, sabendo finalmente quem são, e o filho, que se deu a conhecer, sem esconder revolta e ódio ao pai que o ignorou, mata Cem, (dirá depois que foi em legítima defesa) arrancando-lhe a pistola de mão e baleando-o num olho, antes de o atirar para dentro do poço que o pai ajudara a erguer. Assim, em leitura moderna, se cumpre o seu  destino: cegar um pai e matá-lo, porque de todo o modo Édipo é o que teria feito: cegar-se, de arrependimento. Já fora cego, antes mesmo de o ser.
Passo adiante uma reflexão que se me foi impondo, mas deixo para outros momentos: a questão da Culpa, que nos conduzirá para lá da força do Destino à questão da Queda, do Pecado original.
Mestre Mahmut e a semanas da busca da água num poço já tão fundo, como o se fosse o centro último da terra (teria ele morrido, estaria vivo, alguém o teria salvo, libertando assim o jovem, agora homem, do sentimento de culpa que nunca o abandonara? ) –torna-se em obsessão que o levará a Ongoeren, numa espécie de regresso às origens: ali tudo começara, sem esquecer a iniciação ao amor pela Mulher de Cabelos Vermelhos, ali se desvendaria a verdade (constava por ali, pois era um meio pequeno, que ele abandonara à sua sorte o Mestre, e tivera um filho dessa Mulher, abandonado também).
A narrativa acelera, como numa tragédia que precisa rapidamente de chegar a um desfecho.
Quanto ao suporte mítico vamos ficando entre Sophocles e a épica de Shahnameh e em breve, quando Cem é conduzido, sem saber de início que é o filho que o conduz ao lugar onde o poço fatídico se encontra, mas já carregando no peito tanta incerteza, tanta interrogação e mesmo tanto medo, tanta culpa – até que o desfecho, na noite escura, entre uma luta e uma discussão carregada de sentido finalmente se dá. É o filho que mata o pai.
O filho, concebido na noite de uma paixão fogosa, transforma de repente a antiga deusa Inanna na cruel deusa Ishtar, variante também ela da Grande Mãe, a que inicia e mata depois os seus amantes de uma única vez, para que nesse sacrifício a fertilidade da terra se perpetue sempre.
O romance está dividido em 3 partes.
E agora Pamuk, como Joyce no Torrencial Monólogo de Molly Bloom, dá uma voz igualmente torrencial à Mulher dos Cabelos Vermelhos, que ali se ergue em defesa do filho, afirmando que foi em legítima defesa, e sem intenção de matar,  que Enver (é o nome do filho) durante a luta acabou por cegar e matar o pai, atirando o corpo para o poço de maldição.
A Mulher, ligada ainda, com os seus sessenta anos, à troupe do seu teatro, une todos  os pontos, preenche todas as falhas e lacunas desta história de magia com que Pamuk nos tinha vindo a encantar. E de que modo se chega ao final mítico, e trágico, de que ela espera dos Juízes que o filho venha a ser ilibado. No entretanto, entre muitas carícias e consolos, promete vir visitá-lo à prisão, ler as páginas da epopeia que é a deles, a dos Reis Persas e em que as histórias da Vida são contadas, na sua verdade mítica de sempre, universal. 
É ela quem afinal salva Mestre Mahmut, e ajuda a que o retirem do fundo do poço, quando vê passar ao longe, de mala na mão o jovem Cem e deduz que alguma coisa devia ter acontecido para que ele abandonasse o seu trabalho. Levam-no para o hospital, onde é tratado.
Nessa altura ainda não sabia que ficara grávida do filho de Cem, fruto dessa noite de louco amor por um jovem tão mais novo, que podia ser seu filho (por aqui subtilmente se alude ao mito grego).
E assim vai contando a sua história, que esclarece tudo o que ficara oculto na narrativa em suspenso de Pamuk...uma arte magnífica de labor, ou de bordado oriental. Não omite, na narrativa, como se extasiava ao ver crescer o filho de Cem, o seu corpo macio, que lavava e acariciava (e por aqui, de novo a subtil relação com o incesto grego) e como nele colocou todas as expectativas de que viessem a conhecer-se, ainda que de forma inesperada, e Enver pudesse ser o escritor que fora o sonho de Cem, que trocara a arte pelo negócio e pelo sucesso que o levaria, no fim, a uma morte trágica. 
Há mais mistério adiante, mas terão que ler sozinhos...Deixo reflexão sobre duas figuras em contraponto: O Mestre Vedor é o Sábio, que conta as lendas persas e a história de Sohrab, morto pelo seu pai, e a Mulher é medianeira transmissora, neste novo Édipo moderno.
O romance levantou-me dúvidas, sobre o que é a Culpa, o que é a Mentira, em que ponto residem, da história mítica da humanidade? Fiquei e continuo a pensar.
Escrevi um pouco, nas notas que escrevo  ao acaso dos dias, quando tudo o que leio nos jornais, vejo na televisão  ou encontro no facebook me aborrecem de morte. O facebook é o espelho do que somos: simplórios e grosseiros.
Mas não tenho um Pamuk novo para ler todos os dias...
6 de Novembro (das minhas notas, inéditas)
Acordei com a ideia de retomar o que é afinal a CULPA, a mancha primordial, de que se ocupa Pamuk no romance da Mulher dos Cabelos Vermelhos.
Ficou muito por dizer no blog. Esse Édipo antigo, arcaico e simbólico que ele recupera no romance, estabelecendo uma espécie de ponte entre duas culturas, a ocidental e a oriental, a que ele pertence, não esclarece com a simplicidade da leitura de Freud a descida ao poço, o abandono, a sedução quase incestuosa entre a Mulher e Cem, o jovem que iniciou na arte de amar e a quem ela diz eu podia ser tua mãe (pela diferença de idades, mas também porque fora antes amante do seu pai) e depois o próprio filho de Cem, que a engravidara, sem saber, cuja existência e cujo nome ela oculta, amando-o por rever nele a beleza de Cem, na mesma idade, jovem, e cuidando dele, até no banho, com um desvelo mais de amante do que de mãe, deixando no ar uma quase suspeição de incesto não explícito. O verdadeiro nome do filho é Enver, mas ela habituou-o a usar outro nome, Serhat – não queria a revelação (que se daria mais tarde, tragicamente) que o identificasse logo: assim vai ele, conduzindo o pai, Cem, num logro ( a mentira ) que culminará na sua morte, em luta violenta como que de  castigo, ajuste de contas, de há muito aguardado. Cega-o com um tiro e mata-o. 
 Voltando à ideia de culpa: residirá então na mentira?
Afinal neste romance tudo é construído, como se descobre no fim, pela narrativa da mulher, em trompe-l’oeil.
Jogo de enganos: ela não é ruiva natural, pinta o cabelo de vermelho, como viu noutra mulher, um dia num café, e como era fácil de fazer, sendo ela actriz, “mulheres daquelas”, entenda-se, capazes de tudo, como se dizia, de pequena moral...
Esse é o primeiro gesto de mentira e sedução. Haverá outros, para que se substancie o mito trágico de um Édipo agora em ponto miúdo, de uma escrita de marca oriental, como se inscrito numa miniatura de um tapete persa muito antigo...
E agora a leitura que se impõe:
nos Penguin Classics, ABOLKASEM FERDOWSI, SHAHNAMEH, The Persian Book of Kings, translated by Dick Davis, forward by Azar Nafisi, ed. 2007, revisto e ampliado em 2016. Julgo que é este o momento de ler, nem que seja ao acaso das páginas, as belas histórias que contém.









Saturday, April 14, 2018

Teresa Balté e Leonor Beltrán

 Duas exposições, dois caminhos:
Teresa Balté na Perve Galeria,
Leonor Beltrán na Casa da América Latina
 Inauguradas quase em simultâneo, a primeira no dia 12 de Abril, a segunda no dia 13, tão diferentes e no fundo tão complementares.
Falemos primeiro de Teresa: expõe as suas aguarelas e técnicas mistas, obras que o curador Carlos Cabral Nunes foi redescobrir, datadas dos anos sessenta, na sua maioria, com as marcas de época de um surrealismo colorido, expressionista quase, e lírico, sempre, que o pintor Cruzeiro Seixas tinha em seu poder e gentilmente disponibilizou para esta grande antológica numa galeria que é mágica, são espaços de uma Alfama arcaica iluminada pela luz e pelo brilho da Arte, respirando por ali em liberdade.
Diz a pintora, num breve texto de 1992, a respeito destas pinturas agora de novo exibidas, com o título de PINTAR AS COISAS:

“ Restaurar as ilusões, soltando a perspectiva ou conjugando água e fogo, tinta e nervo. Exercitar a imaginação elástica. Desaguar na enseada dos símbolos. Depois cortar a corda apodrecida e naufragar o papel nos mares da China. Recriar então o caos (...) colar noutros espaços os lugares. Olhar pelo golpe entre as pálpebras ou pelas cicatrizes que corrompem o tronco do homem e da árvore, a folha-pluma-alma...até à náusea.
Gritar de novo. Já não cantar de manso. Porque a boca secou e o discurso é artificial e artificioso. Descolar então. Voar sem rumo. Pelos labirintos da vertigem. Pelo absurdo de não haver absurdo. Pela refluxa nostalgia do abscôndito. Descolar ligeiramente as retinas”.
Sendo esta pintora também uma poeta de obra já longa, e meditada, é às suas palavras que entendi entregar a reflexão sobre o que ali, entre formas e rostos, e um certo e expressivo bestiário animal, expondo  curvas de serpentes,  asas de borboletas, agudas cabeças de pássaro, que surgem do nada prontos, quem sabe, a devorar um rosto já de olhos fechados, baleias humanizadas e expectantes, prontas a receber a chama já sem luz de um Ícaro cadente, nas palavras que cito e que alguns belos poemas inéditos pontuam, encontro afinal um dos caminhos: o que se encontra lá fora, que é feito de tudo um pouco, do mais banal episódio ao mais profundo segredo. Nascem monstros da treva, do negro da sua alma (nigredo dos alquimistas, marca da mutação) mas nas mãos de Teresa irão sofrer muitas transformações, cobre-os de luz e côr, retira-lhes a máscara que os cobre, e tudo nestes quadros de repente explode e dá-se à nossa frente um novo nascimento, o de um cosmos ao mesmo tempo caos mas que alguma divindade por dentro iluminou.


Bem diferente é o caminho percorrido por Leonor Beltrán, pintora também ela já de longo percurso, não é o PINTAR DAS COISAS que ela expõe, mas sim o pintar da alma: não das coisas, podia ser, as coisas têm alma, cada uma a seu modo, como as plantas ou os animais.
Não. O que ali, finamente desenhado a tinta da China, com lápis ou pincel, é um conjunto de meditações todas elas viradas para dentro, um mundo esférico, por vezes inacabado, como se de uma renda abandonada a meio se tratasse, um mundo circular que se procura perfeito, seja a partir de um ponto que foi ponto inicial, no dizer de um Nicolau de Cusa, ou resultante de um movimento que se desejou completo, Todo e Uno, mandálico no sentido mais junguiano do termo.
Leonor chamou MOVIMENTO 2  ao seu conjunto, que também ele, como o de Teresa Balté reúne em antologia vários anos, desde os anos sessenta (o que há de tão surpreendente ainda hoje, nesta década de tanta escrita livre, onírica, libertária, e ao mesmo tempo de tanta análise profunda dos cantos mais recônditos da alma? Breton e os surrealistas já se tinham apropriado do imaginário da noite, mas Jung ainda discutia com Freud a existência de arquétipos e de um inconsciente colectivo).
Já por aqui se nota a primeira diferença do olhar destas pintoras e dos seus dois caminhos, ambos tão sedutores:
Teresa pinta as coisas, está certamente mais perto de Freud, naqueles anos em que pinta. Leonor mais perto de Jung, ainda que talvez não saiba. O seu movimento é o da busca do sentido das finas teias da alma. É assim que da pincelada cheia, evocando Michaux, numa primeira série de quadros que podiam ter saído de LA NUIT REMUE, a noite em que tudo se mexe, de onde tudo se escapa em busca de luz melhor, caminhamos com ela para outras séries em que o finíssimo ponto é de bordado, de aranha ou de tecedeira, das que desenham a alma com o sopro da vida ou com  tesoura infame a interrompem de súbito e sem perdão.
Flutuamos nessas teias, num movimento que suspende, não embala, interpela, não responde. Há por vezes uma construção geométrica, elaborada, que se afunda no coração mandálico da teia e penso : Escher passou por aqui. Mas Escher seria ainda um outro caso à parte: jogos de espelhos, de ocultação e desafio de elaboração complexa, geométrica, matemática. Ainda que escondendo, como na alquimia, aquela fusão andrógina, platónica, dos rostos dos amantes. Com Escher, que alguma pintura de Leonor me faz aqui recordar, regresso à harmonia pitagórica de uma matemática secreta, primordial. Mas Leonor vai mais longe: despoja-se dos jogos que seriam para ela, quem sabe, uma fácil tentação. E entrega-se ao seu labor de formiga, de trabalho e entrega humilde, pondo de parte toda e qualquer ostentação de cigarra. Depura-se, em cada forma, quando vai chegando ao fim do que ela própria não saberia ainda revelar.
Porque na alma tudo se esconde, nada se revela, enquanto não se atinge o que é seu ponto vital. Um ponto de muitos pontos, caminhos e movimentos de muitos desvios feitos e refeitos e novamente desfeitos...Ali ficamos presos, no Uno da forma, que se ampliou num centro que é vital ou na sua interrupção.
Que significa o 2, na escolha do título? (Para mim todo  o título é já indicação).
Que ali se retomou o célebre Axioma de Maria, de que Jung (ele mais uma vez) tanto gostou, e tanto o estudou nos alquimistas e nos grandes criadores, como Goethe, no Fausto.
É em Psycholgie und Alchemie (1944), que Jung apresenta o que chama de “um dos axiomas centrais da alquimia” a afirmação de Maria Profetisa:
 “O Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e do Terceiro se forma o Uno como Quarto” (p. 41). Afastando-se dos estudos puramente da doutrina química, científica, dos autores do seu tempo, procura Jung, como diz, trazer à luz a problemática histórico-religiosa e psicológica dos temas ligados à alquimia. Considera a alquimia como uma espécie de sub-corrente, ou corrente oculta da superfície dominante da cristandade. É vista por ele como um sonho em face da consciência, compensando, como os sonhos fazem, as lacunas, os conflitos, que na consciência se debatem.
O número dois significa precisamente a Mulher, a Terra, o subterrâneo (oculto) A Lua, o Mal, inclusivamente. Basta recordar que Eva é o número 2 de Adão...e é culpada de ceder à tentação da serpente, que provocará a Queda e  expulsão do Jardim do Éden.
Por outras palavras, encerra perigo este número, que por outro lado é o que permite a criação do par primordial, e gerado por ele, da espécie humana. Maria Profetisa, também denominada a Judia, ou a Copta, irmã de Moisés, -na tradição alquímica- é por vezes aproximada da Maria que conhecemos dos textos gnósticos do início dos séculos II-III.Pareço estar a desviar-mse do ponto da minha reflexão, e da obra de Leonor, mas não estou. Chego então ao mais importante: Maria Profetisa sublinha muitas vezes o seguinte:
“ Todo o segredo (entenda-se, da Obra alquímica)  reside no conhecimento do que é o vaso hermético. O Uno é o vaso (Unum est vas). Por isso tem de ser redondo, para que imite o cosmos esférico. É uma espécie de matrix, de útero, do qual o filius philosophorum, a Pedra maravilhosa, poderá nascer. Daí que por vezes também se refira a forma de ovo deste vaso. Mas Jung acrescenta que é preciso ter em atenção que estamos perante símbolos, que este vaso uno exprime uma ideia mítica, mística,como todos os símbolos alquímicos (p.327).
Se perante alguns dos quadros de Leonor Beltrán de imediato nos sentimos próximos de um Mandala, ou de uma experiência próxima desse exercício de meditação de que Jung, inspirado na mística oriental, se serviu para recuperar a sua alma de uma depressão que lhe devorava a vida, é porque há neles essa energia contaminante e manifesta. Leonor expõe movimento e caminho (Jung só depois da sua morte autorizou a divulgação do célebre Livro Vermelho), com uma generosidade que a engrandece, e à sua obra.
Saudemos pois, em percursos tão diversos, um imaginário que se completa, na sua diferença: Seja para a contemplação do que nos é (aparentemente apenas) exterior, ou do que nos é interior (mas em necessária e vital revelação).
Em resumo, saudemos os criadores, na sua criação.  




Sunday, April 08, 2018

Remo F. Roth HOLY WEDDING,Pari Publishing, 2017

O sub-título da obra indica a inclusão da Sincronicidade (conceito que Jung definiu) e dos princípios herméticos na visão do mundo do século XXI. É último volume de uma trilogia, Return of the World Soul I, e Return of the World Soul II. Neste terceiro volume o autor debruça-se sobre os limites da consciência humana contemporânea, estudando o conceito e a doutrina  junguiana do Casamento Sagrado (encontramos por vezes outros termos, como Casamento Químico, recuperando as célebres Bodas Químicas de Johann Valentin Andreae, um texto fundador do rosicrucismo alquímico na Alemanha).
Em que consiste este Casamento Sagrado)? Dito de modo simples, na união  da psique com a matéria, ou do espiritual e do material na própria psique, pois é nela que essa união, essa fusão de opostos se verifica.
Roth refere que é nesta união de pensamento e emoção, logos e eros, espírito e matéria, que se desenvolve a psique, na espécie humana, e mais até, se propicia a sua sobrevivência. 
A nossa psique, entenda-se a nossa mente (mind), tem uma estrutura bipolar, dinâmica, e o que o autor nos propõe é a aventura de explorar, navegando em ambas, uma união alquímica, que lhe serve de modelo para uma vivência exemplar e adequada ao século XXI.
Este é um autor, de formação junguiana, discípulo de Marie-Louise von Franz, tal como ela o foi de Carl Gustav Jung e a quem ela terá dito: 
" Eu não posso ir além de C.G. Jung, mas você tem de ir".
Nascido em Zurique, em 1943, Roth procura investigar a realidade psicofísica de W. Pauli, ou como Jung definia, o unus mundus tal como o encontramos nas doutrinas do  mundo mágico do Um e do Todo, da alquimia, da filosofia hermética, do taoísmo e da alquimia chinesa, de que Jung, com Richard Wilhelm (o grande tradutor do I Ching e do Tratado da Flôr de Ouro) igualmente se ocupou.
Procura-se, nesta obra, o que se procurou durante séculos: a recuperação de uma Totalidade, de uma Unidade perdida, que faça do ser humano uma criatura completa em si mesma, e nessa Completude integrada no  Todo que é o Universo (ou o Deus que o criou).
Que neste momento, já falecido Stephen Hawking, mas sem que se tenha esgotado o seu sonho de encontrar a fórmula do Todo que explicasse o Universo, não deixa de ser interessante, posso mesmo dizer importante, que um psicólogo das profundidades, junguiano, deseje ir ao encontro do Físico que é Pauli, para sonhar com um modelo que faça avançar um novo pensamento para o século, uma nova doutrina, um novo modelo, ainda não de suporte matemático, mas de suporte puramente feito de energia emocional.
Não admira que Roth seja hoje em dia considerado um "abridor " de sonhos, além de terapeuta.
Numa carta de 1953 Jung escrevia a Pauli: 
" O problema da coniunctio tem de ser guardado para o futuro; é mais do que aquilo a que posso entregar-me, e o meu coração reage se me demoro muito tempo nestas áreas. O meu ensaio sobre o Espírito da Psicologia, de 1946, resultou num ataque muito sério de taquicardia, e a sincronicidade provocou o resto". 
O ensaio referido está publicado com o título de On the Nature of the Psyche, na tradução inglesa das obras completas,vol.8.
Podemos sofrer, e mesmo adoecer, como aconteceu a Jung, ao mergulhar no silêncio das trevas que há na alma. Mas também se adoece, ou mesmo morre, se não se procura a voz que está lá dentro.
Essa é a função do psicólogo actual, como era outrora a do filósofo hermético no escuro da sua caverna, ou diante do seu forno alquímico.

Friday, March 16, 2018

O Livro Vermelho de Jung

O título da Obra que vou citar, e de que vou partir de início, é de Stanford L. Drob, READING THE RED BOOK, an interpretative Guide to C. G. Jung's Liber Novus.
A sua edição, de 2012 teve o elogio de toda uma imprensa, da mais erudita à que mais aprecia a divulgação feita com seriedade e qualidade. Basta ler na contracapa os extractos.
Este Liber Novus, de que se aguardava a publicação em 2009, é uma obra enigmática e profunda, que precisa de facto de um guia que conheça a Psicologia das Profundidades e aborde os grandes temas aqui expostos com conhecimento, sem leviandade, superficial ou pior, grosseira de apressada. Muitas vezes é pela pressa de editar - ser o primeiro - que se estraga a aproximação de futuros leitores, estudiosos ou leigos. 
O Livro Vermelho importa tanto à Psicologia como à História das Ideias ( e acrescento também das Religiões). Percorre o labirinto das associações, imagens, temas que se prendem com a filosofia clássica, moderna, post-moderna, alcançando também conceitos como os da mística, ocidental e oriental, a que deu especial atenção. Devolve, como diz alguém, a perspectiva da Alma a um tempo, que vivemos de grande contaminação e degradação pela política, economia, e práticas educacionais ( Professor, Robert D. Romanyshin). 
Do c.v. deste Guia de Leitura de Jung, publicado por DROB, pareceu-me igualmente de destacar a obra Kabbalah and Postmodernism: a dialog and Kabbalisitc Visons: C.G. Jung and Jewish Mysticism. 
Mas voltando ao Liber Novus:
Para Jung os sonhos eram desafios à complacência do ego, corrigindo uma visão parcial da consciência e consequentes atitudes, ou eram mensagens do inconsciente pondo em causa os nosso habituais modos de pensar, de sentir e de viver.
É sobretudo este lado, - do questionamento, da interpelação, do desafio - que sempre me interessou, e me transformou em estudiosa de matérias como as da alquimia e simbolismo das várias doutrinas, desde Zosimo, passando pela Idade Média, até aos tempos modernos, com expressão forte na criação artística, ainda hoje. Pois o que é um poema (ou um quadro, sobretudo com os surrealistas, confessados ou não) senão um sonho ampliado na dimensão do inconsciente, e que a consciência absorve? É James Hillman (neo-junguiano actual) quem confirma esta ideia, de que o sonho, no Livro Vermelho é a exposição de uma doutrina, mais do que um mero sonho individual. Ao mesmo tempo estranho (quase grotesco, de tanta exuberância) diz o autor na Introdução (p.xviii) é preciso que nos afundemos na sua narrativa e nas suas imagens pintadas. E que nos coloquemos também no contexto em que a obra foi escrita, tanto no seu tempo como no conjunto dos escritos de Jung em que eram expostos novos paradigmas de abordagem de uma Psicologia para novos tempos.
Jung avisa para o facto de que não poderá haver uma interpretação definitiva de um sonho, nem uma teoria definitiva sobre a psicologia. As várias teorias existentes no seu tempo exprimiam os "tipos psicológicos" dos seus autores, (a discussão e a zanga com Freud, bem testemunham o exemplo), e portanto apenas transmitiam uma verdade relativizada, parcial. Daí que a principal abordagem que o autor deste guia fez ao Livro, se concentre sobretudo nos grandes temas de Deus, da humanidade, da loucura, do caos, da morte, da ciência, da Razão, do conhecimento, da linguagem, da lógica e do mal.
Escrevi, noutro post sobre Dizer o Mal, ainda sem ter lido este Livro Vermelho, que só agora tenho em mão, e que começo por uma iniciação mais esclarecedora, antes de me debruçar sobre o seu mistério, que envolve texto e imagem (os Mandalas).
Concordo que estarei perante uma obra mais ligada à História das Ideias, do Pensamento Humano, do que à ciência da psicologia. E não me admira que por isso mesmo haja uma estrutura arquetípica nela, fundadora, criadora, inspiradora, como tem sido, para muitos de nós.
Lendo os sonhos, minuciosamente descritos, caminhamos com Jung no seu processo de individuação, uma viagem íntima, feita de espiritualidade, que inclui, das múltiplas culturas, religiões e civilizações do mundo, tradições como as do Cristianismo, do Gnosticismo, da Kabbalah, do Taoísmo e da Alquimia antiga. Tanto fio de pensamento para ir seguindo...
Importante, mais do que meditar os textos, será a meditação das imagens. O que nelas se exprime é uma narrativa do imaginário indizível, o que fica muito aquém ou muito para além do dizer das palavras. Entramos no secreto mundo de mitos e arquétipos, que assim recuperados se apropriam da substância mais funda da nossa psique, das emoções e sentimentos que deste modo se materializam, se revelam. Faltará entender.  Para Jung, esta sua obra, concebida ao modo dos manuscritos medievais religiosos, é um todo, religioso na forma e no conteúdo. A edição facsimile, enorme, impede que desde logo nos prendamos à leitura. Contudo é imperioso ler, voltar a ler, estudar e meditar.
Daí a importância deste guia de leitura deste Reader que o Prof. Drob generosamente preparou para o presente e para o futuro de todos os estudiosos.
Retoma a célebre legenda do MUTUS LIBER: Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et 
Invenies.
 Reza, Lê, Lê, Lê, Relê, Trabalha e Descobres.
E finalmente, como aconteceu, julgamos, com Jung e as sua míticas imagens: Oculatus Abis, Partes Munido de Olhos.
Ou, simplificando: adquiriste a clarividência que buscavas. 
Quem sabe se por uma sincronicidade, mais do que por um acaso feliz, destes que existem, o Facebook, nem sempre recomendável, tem trazido aos seus leitores frases soltas de Clarice Lispector, e entre elas uma que se refere ao silêncio e solidão de uma tarde feliz em que ela sente que houve um "encontro do eu com o eu". Momento raro, sem dúvida. E ocorre-me, a este propósito, citar Jung, na sua exposição sempre tão clara do que é a busca de um encontro assim, que só no silêncio e na solidão da alma se poderia dar. Diz ele  que para encontrar o caminho da alma é preciso afastar-se dos homens e das coisas, e identificar-se completamente com os seus pensamentos, para depois lhe ser possível (em movimento inverso ) desligar-se deles. Deste modo se faz da alma virtualmente um deserto, e focado nesse vazio, se permite que nasça na alma um "fruto maravilhoso". O fruto é o do imaginário criativo, o dos símbolos vividos na plenitude de uma psique liberta dos constrangimentos que lhe eram alheios. (Livro Vermelho, cap. IV, O Deserto). O encontro do eu com o eu de que falou Clarice Lispector.

                                        

Wednesday, January 31, 2018

Manuel Aires Mateus vs. Antoni Gaudí e um Quarteto de cordas pelo meio

I
O título do post não explica tudo.
Porquê e de onde me vem esta ideia de contrapôr Gaudí a Manuel Mateus? 
Quando em Barcelona visitei a catedral da Sagrada Família e outras casas de Gaudí fiquei impressionada, por um lado, com a intenção modernista, mas por outro, com a relação expressamente procurada com a natureza e a religião, ou melhor, uma experiência mística que de algum modo o seu neo-gótico excessivo, barroco de tão intencionalmente trabalhado, pudesse proporcionar.
Não sei como reagiram outros: eu distraí-me com o apelo da forma, com o apelo da côr, com uma obra (e o mesmo senti nas outras) que não libertava o espaço, (como o gótico despojado dos séculos passados, o nú do românico de pedra mais humilde) mas antes o capturava nas curvas envolventes.
A mim, fazia-me falta o que encontrei nas obras de Manuel Mateus: a linha que liberta, a luz branca que tudo contém e por isso de mais nada precisa, (como na albedo dos alquimistas gregos) e ocorreu-me que se podiam contrapôr as curvas de Gaudí às rectas de Mateus, sendo que estas sim, permitiam uma leitura infinita.
São infinitas as linhas rectas, deixam um espaço que livremente respira, são fechadas as curvas que afinal nas suas dobras esconsas ainda que coloridas, não permitem que se avance.
Como falar então de espiritualidade?
Num dos artistas o esbanjamento da imaginação (com o acumular das imagens), no outro o despojamento da ideia condutora e da imagem-força que lhe induz.
Num, o permanente excesso, no outro a subtil contenção que permite que a luz entre, na sua linha infinita. Apela, deste modo, a uma mesma mística, quem sabe mais e melhor vivida, porque não permite olhares mais distraídos?
Um arquitecto é um criador que refaz o mundo à sua volta.
Contempla, imagina, desenha, projecta. Num universo em expansão é natural que a obra  reflicta, ou mesmo busque, esse espaço infinito. 
E serve-o melhor que a linha curva, a linha recta. E que um espaço fechado, um espaço aberto.
Rasgado, mesmo que, por vezes, como Gaudí, o erga para o céu.
Agora surge a pergunta: porquê falar em alquimia?
Porque no caso de Gaudí, a estrutura do seu imaginário apontava para a fase da cauda pavonis, a colorida "cauda de pavão" significando, no trabalho dos adeptos, o momento em que a materia prima se desmultiplicava numa feérica abundância de cores, que mais tarde seriam sublimadas na albedo, a côr branca, indicadora da perfeição a alcançar. Aqui entraria um outro imaginário, o de Manuel Mateus, dos brancos espaços abertos, infinitos.
II
Associação de ideias, de que Breton tanto gostava, foi em parte o que me aconteceu: ouvir a intervenção de Manuel Aires Mateus na RTP 2, no programa de Anabela Mota Ribeiro ( o segundo já da nova série, que recomendo) levando, como ela pede, uma ou duas sugestões que se prendessem de algum modo com os seus interesses e sua inspiração, sendo ele um arquitecto de mérito nacional e internacional, mais do que reconhecido. E ele, com a maior simplicidade levou um romance, o romance de Tommaso di Lampedusa, o Príncipe da Sicília que nessa obra magistral que é O Leopardo, retrata um tempo, o da grande mudança "para que tudo ficasse na mesma", como lhe diz o sobrinho que será seu herdeiro. Esse tempo, que o autor retrata, de ascensão de uma nova classe, burguesa, boçal, como se vê no filme que o livro inspira, ao mesmo tempo o desgosta e lhe dá uma sabedoria que é só própria de quem sabe olhar e ver ao longe, na distância, o que nas civilizações foi sempre marca distintiva : a mudança, a dada altura a imperiosa mudança. Chama-se evolução.
Daqui partimos para a mudança de épocas, de gostos, de prioridades, de estilos. Assim se faz a evolução das sociedades, e assim se fez, na nossa sociedade ocidental, também na arquitectura, com os seus criadores. A palavra chave, na intervenção de Manuel Mateus, como nas longas reflexões de Lampedusa foi, por um lado o tempo, mas por outro e talvez mais sublinhada, como se poderia no espaço (Lampedusa falava de casas, não gostava de dizer palácios, enquanto com o caseiro contemplava a infinita paisagem dos seus campos...) capturar o tempo: o antigo, o actual, o do futuro.
Gaudí (não me esqueci dele) procurava o futuro na convulsão reiterada de um passado arquitectónico que seria irrepetível, como foi. Não dava espaço, não deixava respirar, concebido para que se admirasse e se continuasse adiante, em busca de outra coisa. Essa outra cosia não estava lá, surgiria mais tarde, num adiantado século XX em que a relação entre artes se tornava marcante, buscada e praticada, e também, como Manuel explicou, na arquitectura, depurada e liberta, já num espaço infinito.
Falei em coincidências e aqui está a outra, a que me quero referir, e fez para mim, o pleno da semana:
a apresentação, no Festival de Quartetos de Cordas da Gulbenkian, do Memorável Jack Quartet, que (eu ia dizer me deslumbrou) me deixou pregada à cadeira onde há já uns anos eu não me sentava, naquela sala de concertos. Tocaram, de Andreia Pinto Correia, uma peça intitulada Unvanquished Space (dedicada, nas suas quatro partes, a cada um dos membros do Quarteto, seus amigos de longa data).
Partiu, como contou na conversa prévia com o público, de um texto literário de autor americano conhecido, em que prevalecia um olhar sobre a sociedade e os seus modos, presenças e ausências, de que não falarei aqui, para não me perder. O interessante é de novo esta relação, neste caso da música, com a criação literária, seu tempo próprio e sobretudo seu espaço: algo invencível.
Traz um conceito que merece muita reflexão: na era em que o espaço cada vez mais se abre, e se procura, num limite infinito, ( com a ajuda também, sem dúvida, das novas descobertas trazidas por astrofísicos e outros sábios que se ocupam do espaço ) este conceito de um espaço invencível: mas que interpela os criadores, os desafia, e aguarda as novas soluções que nos venham propôr...Neste espaço invencível Andreia introduz "periferias da luz". 
O que me permite recuperar a reflexão de Manuel Mateus, sobre as linhas, puras, o branco, que atrai e devolve a luz, no espaço que se abre às casas.
O mesmo se verifica na peça deAndreia, onde os sons se abrem até, quando preciso, ao ruído, os ecos da ponte de Brooklyn, tão conhecida no mundo, por fim dando lugar ao suave mergulho no silêncio que foi rompido, e tal como nas casas brancas projectadas permite que se caminhe pelo misterioso infinito que nos aguarda lá fora.
Lá fora, onde a inspiração ( a respiração) é livre e consentida.
Já estarei um pouco perdida, nestas lucubrações, mas é-me importante agora parar, levada por estes criadores, a novos conceitos, como o de liberdade e infinito.
Somos livres? Ou somos determinados, logo à nascença, como Lampedusa tenta dizer a um sobrinho que já viajou, já limpou a cabeça de preconceitos e a quem o novo modelo social (ainda que injusto, não assusta? ).
E que limites, na sociedade e na arte ainda se nos impõem? Com que linhas, que sons, que casas, podemos ainda sonhar?
Os infinitos lugares da nossa infância, do nosso crescimento, do nosso amadurecimento.
Onde fica a alquimia, de que parece que me fui perdendo? Nos quatro andamentos da peça de Andreia, que se completam:
Um labirinto submerso - nigredo
Os cantos reluzentes de um espaço por conquistar - cauda pavonis
Periferias da luz - albedo
Para dentro do silêncio- rubedo
Confuso? 
A explicação noutra altura, noutro lugar... 





Wednesday, January 10, 2018

Deus, Adão e as suas Evas

Les Mythes Hébreux, de Robert Graves e Raphael Patai (Fayard, 1987) são um cuidadoso levantamento de várias fontes, de mitos e símbolos que estão na origem das várias civilizações do médio-oriente e tomaram forma mais definida no Antigo Testamento como o conhecemos hoje em dia. No post anterior falei de Lilith, a grande-mãe, primeira mulher de Adão, que a repudiou. Deus fez então mais algumas tentativas. Mas comecemos pela criação de Adão, visto que Eva foi criada em especial para ele, para lhe agradar, ao contrário do que sucedera com Innanna. Passo a descrever:"Ao sexto dia, por ordem de Deus, a terra pariu Adão. O fogo, a água, o ar e as trevas, - todos estes elementos se combinaram nas entranhas da terra para produzir os seres vivos que foram surgindo ao longo do terceiro dia, do quinto e do sexto, em que junto com o homem foram criados os animais terrestres e os répteis. "Deus não usou uma terra qualquer, mas escolheu um pó de grande pureza, para que o homem pudesse ser a coroação da Criação. Agiu verdadeiramente como uma mulher que mistura a farinha com a água, e de uma parte da massa criou o homem, que se tornou a primeira das oferendas do mundo". Há outras versões, sobre o local e o tipo de terra que foi usado por Deus, na criação do homem. O nome Adão derivaria da argila vermelha de que foi feito, segundo alguns, segundo outros o nome significa Homem porque a matéria de que foi feito é do Monte sagrado no qual Abraão mais tarde se dispôs a sacrificar o seu filho Isaac, estabelecendo assim um elo sagrado com a humanidade inteira. Outra versão: Deus terá utilizado duas espécies de pó para a criação de Adão: uma do monte Moriah ( o monte sagrado, umbigo do mundo), e a outra uma mistura retirada dos quatro cantos do mundo e molhada com água de todos os rios e mares existentes. E para garantir a saúde de Adão usou um pó macho e uma terra fêmea. Ao usar o pó de todos os cantos do mundo Deus garantiu que fosse qual fosse o país em que morressem os descendentes de Adão seriam sempre recolhidos pela terra. Adiante na descrição do processo de criação deste primeiro homem, conta-se que era ele de tal modo grande que quando se deitava cobria a terra de uma ponta a outra; e quando se punha de pé a sua cabeça tocava no trono divino. Era de uma beleza estonteante, de tal modo que a seu lado Eva, ainda que bela, mais parecia um macaco. Contudo Adão, ao pé de Deus,  embora tivesse sido feito à sua imagem, parecia ele mesmo um macaco.Todos os seres vivos que rodeavam Adão julgaram que ele fora o seu criador e lhe prestaram homenagem. Este foi um dos mitos, e uma das primeiras versões do que ia acontecendo no Éden, quando Anjos e animais conviviam com o primeiro homem (Graves, pp.77-79). Não deixa de ser interessante, contudo, verificar que para além dos quatro elementos que o formam é referido um quinto, a treva: uma treva primordial que é também substância do seu corpo moldado. Há logo ali um indicação do negro da alma, uma imperfeição que se revelará depois como uma quase maldição imposta ao ser humano. Segue-se então a série de companheiras com  que este Adão foi sendo confrontado, a seu pedido. Para que Adão não fosse o único dos seres criados a não ter uma companheira Deus mergulhou-o num sono profundo, tirou-lhe uma costela a que deu forma de mulher e fechou a ferida. Adão acordou e disse: esta criatura será chamada "mulher" porque foi extraída do homem. Homem e mulher serão uma única carne. Eva significa "Mãe de todos os vivos". Em algumas versões diz-se que Adão pediu a Deus que lhe desse uma companheira depois de ver que todos os seres tinham um par, de ter tentado unir-se às fêmeas que passavam diante de si, mas sem prazer algum.Deus criou primeiro Lilith, de que já falei noutro post. Aqui criou-a com lama e lixo em vez de terra pura. Desta união, que seria depois desfeita, nasceram demónios como Asmodeu e outros, que atormentam a humanidade. Lilith acabou expulsa para o que se definiria como região das trevas. Deus fez então uma nova tentativa: "moldou perante Adão o corpo de uma mulher usando ossos, tecidos, músculos, sangue, e secreções glandulares, cobriu o todo de pele, e colocou tufos de pelos em algumas partes. Ao vê-la Adão sentiu um tal nojo que mesmo quando ela se ergueu na sua plena beleza diante dele a repugnância foi invencível. Então Deus percebeu que mais uma vez tinha falhado e levou esta primeira Eva embora. Para onde foi? Ninguém sabe ao certo" (pp.82-83). Deus fez uma terceira tentativa, mas agiu com mais cuidado. À costela que retirou de Adão, adormecido, deu a forma de uma mulher. Fez-lhe umas tranças e ornamentou-a, como se fosse uma noiva, com vinte e quatro jóias, antes de acordar Adão. Este ficou deslumbrado. Noutras versões diz-se que ao princípio Deus tinha pensado em criar dois seres humanos, macho e fêmea;  mas acabou por desenhar um único,  rosto masculino virado para a frente, e um rosto feminino virado para trás. Depois mudou de ideias tirou o rosto que olhava para trás e fez para este último um corpo de mulher. E há mais: há versões em que se julga que Adão foi criado como um andrógino, cujos corpos, masculino e feminino, estavam unidos pelas costas:"Visto que esta posição tornava difíceis as deslocações, e não tornava cómoda a conversa, Deus dividiu o andrógino e deu a cada uma das metades umas costas novas. Colocou estes dois seres, separados, no Éden, proibindo-os de copular" (Graves, 83). Deus encheu as suas criaturas adâmicas de proibições. Seriam para ser quebradas e justificar assim o mal da existência? A verdade é que foram quebradas, por incitação de uma serpente que por ali andava, junto delas, com um grande à vontade. Como se fosse um terceiro membro da família...
Gilbert Durand explicava que um mito era "uma narrativa fundadora". Através do mito adivinhava-se um corte, uma mudança civilizacional, antecipando modelos que deixavam de parte os antigos existentes até aí: transições do paganismo politeísta para um monoteísmo de rituais próprios, dedicados a um só Deus, por exemplo; ou abandono do sacrifício humano em prol da imolação de animais como oferendas; ou reflexão sobre a mortalidade do homem, com a Queda de Adão e Eva expulsos de um Éden perfeito, de luz e pedrarias, em que não seria permitido procriar - com a expulsão surge o castigo infligido a Eva de parir em dôr e sofrimento. Deus criador, neste fragmentos antigos, está muito próximo do homem que criou: engana--se, repete as tentativas de acertar com o gosto de Adão ao moldar a mulher, um corpo que o complete e que lhe agrade...e finalmente, ao descansar no sétimo dia, também se engana, pois o seu Éden tinha ab initio, junto com Adão (no sexto dia) criado uma serpente que se tornou íntima companheira, conversando, interferindo com as ordens do criador, e levando por fim a que caíssem na tentação de comer  do fruto da árvore proibida, o que causou a sua expulsão do paraíso. Eva foi a culpada: mulher curiosa, desafiadora, querendo saber mais, quase forçando um Adão mais ingénuo a cometer o pecado. Nestas versões antigas o jardim do Éden é algo de maravilhoso, jardim de luz, árvores cujos frutos são pedrarias, e colocada entre elas a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O primeiro homem depois de Adão a ter entrado vivo no paraíso, segundo outras versões que Graves vai citando, foi Hénoch (p.87). Viu a Árvore da Vida, à sombra da qual Deus muitas vezes descansa. Feita de "ouro e carmim, ultrapassa em beleza todas as outras coisas criadas; frondosa, cobre o jardim inteiro, e há quatro rios- de leite, de mel, de vinho e de azeite- que saem das suas raízes. Um coro de trezentos anjos ocupa-se deste paraíso, do qual há quem diga que não se situa na terra, mas no terceiro céu. Isaac, que foi o visitante seguinte, estudou lá durante três anos; e mais tarde o seu filho, Jacob, teve licença para lá entrar. Mas nem um nem outro contaram o que lá tinham visto" (p.87).Estas descrições mais se parecem com visões, ou revelações dadas aos eleitos, do que descrições de uma espaço divino em que os fiéis pudessem de facto acreditar. Moisés também é referido, mas levado a este Éden pelo seu Anjo da Guarda, Shamshiel, que lhe mostrou, entre outras maravilhas, setenta tronos cravados de jóias, destinados aos Justos e pousados em pés de ouro fino, flamejantes safiras e diamantes. No maior e mais rico estava sentado o Pai Abraão.A seguir a Moisés mais nenhum mortal foi julgado digno do Paraíso, excepto o Rabbi Jehousha ben Lévi, Mestre de excepcional piedade, que entrou graças a uma artimanha, que é a seguinte: quando o Rabbi já estava muito velho, Deus ordenou ao Anjo da Morte que lhe inspirasse o desejo de morrer ; então Jehoshua pediu que lhe mostrassem o lugar que lhe estava reservado, mas antes de se porem a caminho pediu ao Anjo que lhe desse a espada- pois podia, de caminho, haver algum acidente que o fizesse morrer de medo. O Anjo deu-lhe a espada, e quando chegaram ao paraíso sentou o Rabbi no alto do muro e mostrou-lhe o lugar que lhe estaria reservado. Jehoshua saltou abaixo do muro e declarou que ia ficar ali. Os Anjos queixaram-se a Deus: este homem tomou de assalto o paraíso! Mas Deus permitiu que ele ali ficasse, por nunca ter faltado a um juramento, durante a sua vida (Graves, p.88). Esta narrativa continua, mas  o que nos interessa aqui é verificar como havia comunicação entre Deus, os homens, os Anjos, e que ora um, ora outros, podiam ser perturbados nas suas decisões, revelando ou alguma inocência ou alguma ignorância que viriam a determinar a continuação do que era suposto acontecer.O que se discute? Qual o poder de Deus, e dos seus Anjos, sobre as suas criaturas? Abençoadas ou malditas?Um poder afinal limitado, porque contornável pela astúcia, neste caso, de um Rabbi Santo, ou por uma serpente malvada, no Génesis. Um conquista um lugar no paraíso, os outros são miseravelmente expulsos e castigados, embora Deus tenha, ao sétimo dia, louvado a sua obra e descansado, confiante.Como Robert Graves aponta nas suas notas (é uma obra que recomendo não apenas pela leitura directa, mas sobretudo pela riqueza de informação que acrescenta nas notas finais),há muitos elementos da Queda do homem que remontam a épocas muito mais antigas do que os relatos do Antigo Testamento como o conhecemos. Só que a sua sistematização é mais tardia, e até contém, por vezes, elementos de influência grega. A epopeia de Gilgamesh - de que eu já me ocupei em posts anteriores deste blog - datada de 2000 A.C. numa primeira versão, descreve como a deusa suméria do amor, Aruru, fez com argila um selvagem de nobre porte, Enkidu, que cresceu entre gazelas e animais selvagens, até ao momento em que uma sacerdotiza enviada por Gilgamesh o levou para a cidade de Uruk e o iniciou nos mistérios do amor (Graves, p. 94). Irmãos de sangue, os dois heróis não voltam a separar-se e a narrativa segue com a busca de uma planta da imortalidade que lhe será depois roubada por uma serpente, no fundo mar, fazendo com que Gilgamesh acabe por aceitar a sua mortalidade.Estas e outras narrativas, que Graves refere , todas se ocupam da questão da mortalidade do homem e do erro, ou abuso e arrogância, que levou à expulsão do paraíso oferecido. Curioso é ver que em outros mitos, um cretense, outro lídio, contado por Plínio, é dito que as serpentes possuíam uma "erva da imortalidade" (Graves, p. 95).Neste conjunto que estivemos a ler, pela mão de Graves, uma transição se verifica, nas lendas e mitos hebreus: a passagem de um matriarcado politeísta, do culto das deusas em grutas escondidas ou templos misteriosos a um patriarcado monoteísta, de julgamento severo sobre o papel da mulher na sociedade, um papel que a reduzia a uma função menor e de quase anulação.
Os mitos são o que são: memórias de um imaginário antigo, em que permaneceram até aos nossos dias figuras e temas fundamentais. Porque sumarizam mistérios ainda não desvendados: o do mal, o da morte, o da esperança de alguma ressurreição. Que uma serpente seja veículo, um par primordial remeta sempre para o feminino o negativo do mito, e Adão seja a vítima perpétua - quem diz Adão diz, como se sabe, o Homem, a Humanidade criada - o ser que nos primórdios tinha um corpo que cobria a terra inteira, quando se deitava no chão...tudo isto nos interpela, ainda hoje, sobre o nosso destino e o destino do mundo, causa ou efeito do que nós outrora, com ou sem Deus teremos praticado...A caixa de Pandora, (que é um Vaso) que tem inspirado múltiplos artistas, permanece aberta, ou mal fechada e deixando sair todas as vilezas possíveis e imaginárias. Só muito lá no fundo uma esperança, que mal se vê, ou adivinha.Que mão poderá, algum dia, selar de vez a tenebrosa caixa?Nos mitos o castigo surge como a quebra de uma ordem, um juramento, uma promessa feita. Uma desobediência, em suma.O que deseja o mito, na sua lição, ensinar? Que a ordem não pode ser quebrada? Que se tal acontecer o regresso ao caos será irremediável?E de que ordem e de que caos se fala então nos mitos?Ainda não temos resposta.