Saturday, October 20, 2018

Orhan Pamuk, A Mulher dos Cabelos Vermelhos


Este é um livro que pode (e terá) uma leitura política, de duas Turquias em conflito, tradição e revolução, e o inevitável progresso, atravessado por ambas as situações.
Mas a sua força é outra, reside no modo de contar, através de estruturas de pensamento e reflexão de grande cultura, a história de um jovem, que deseja ser escritor, mas começa por um primeiro trabalho com um Vedor, Mestre Mahmut, conhecido por saber encontrar água e erguer poços para os empresários que ainda confiam na sua sabedoria. A experiência será para Cem, o nome do jovem, uma verdadeira iniciação. A escrita terá de esperar, até que ele regresse a casa. O trabalho é penoso, quanto mais escavam menos parece que haja ali água, ma o Mestre não desiste, está confiante na sua sabedoria. Cada vez surgem mais pedras, lá no fundo, difíceis de remover.
Está difícil, mas não será impossível, diz o Mestre vedor ao jovem, conseguir remover o bloco de pedra que impede que se chegue à água do poço no prazo previsto e exigido pelo patrão.
Nesse intervalo, quando vão descansar ao fim do dia,  cruzam-se sempre com o grupo de teatro que ali se instalou por um tempo, e com a estranha e sedutora  Mulher dos Cabelos Vermelhos, que lhes diz, apareçam ver a nossa peça.
O jovem acha que ela seja dez anos mais velha do que ele, que tem dezassete. Já se cruzou com o seu irmão, e fugiu, com algum receio de que ele lhe quisesse fazer mal. Mas tudo se apagava, ao sonhar com ela, de noite, sob as estrelas, revendo a sua alta e esbelta figura e aqueles cabelos vermelhos.
O inevitável, já quase a meio da narrativa, acontece.
Ele vai à noite ver os sketches do teatro, espera por ela, vão falando pelo caminho, dizem os seus nomes, ele
- Cem
ela
- Gulcihan
 (dizer o nome já é prenúncio do que irá acontecer, tornam-se mais próximos, mais íntimos) e ela leva-o para o prédio onde mora com o marido. É casada, tem 33 anos, o marido está fora, só regressa no dia seguinte. Ela comenta, afável: não tenhas medo, eu podia ser tua mãe. Aqui entronca já, discretamente, o mito de Édipo Rex, que o jovem tinha contado ao seu Mestre vedor, e de que ele nem por isso gostara. Era mais apreciador das tradições populares da sua Turquia antiga.
Em casa da Mulher, sucede o tão desejado momento de entrega a uma paixão que o jovem não consegue esquecer e mal disfarça do Mestre, no dia seguinte, enquanto regressam ao trabalho do poço.
Este escavar do poço, que parece infindável e votado ao insucesso tem sido até agora o principal núcleo da narrativa de Pamuk, cada vez mais incantatória: pois não é de um poço, sempre de um poço, real ou imaterial, que se bebe a água  da sabedoria?
Ocorre-me que esta noite de iniciação do jovem narrador, que assim adquire um novo conhecimento, acima de tudo de si próprio – o amor civiliza – poderia ser comparado à iniciação de Enkidu (o jovem amigo ainda selvagem, de Gilgamesh na epopeia suméria), pela deusa Inanna, a Grande  Mãe a quem ele foi entregue para através da relação sexual adquirir os hábitos culturais que lhe faltavam.
O narrador usa sempre maiúsculas para se referir à Mulher dos Cabelos Vermelhos, mesmo depois de já conhecer o seu nome. Mulher-Mãe, como ela sugere ao referir a idade e como podia de facto ser mãe dele, pela diferença de idades.
Estamos pois, como num quase sonho, no entre-choque de duas culturas: a tradicional, com a fundura de um Poço, escavado ainda à mão, a iniciação do EternoFeminino, e a moderna, os transportes, os estudos, o bulício (com as qualidades e os defeitos, por exemplo da presença dos soldados por todo o lado) de uma sociedade a crescer de modo muito veloz, como se lê nos capítulos seguintes, quando Cem, já casado, se transforma num grande empresário da área da construção.
Logo a seguir ao encontro com a Mulher, a suposta morte do velho Mestre no poço e a fuga apavorada para o regaço da mãe, e o regresso às aulas e às conversas habituais dos rapazes da mesma idade, ajudam a suspender por um tempo a narrativa que no entanto deixa sempre no ar o fascínio pelo mito de Édipo, e o que ele pode vir a pesar no destino do herói, que vive entre dois mundos: o oriental, da sua origem, e o ocidental, do progresso a que aderiu, com a ideia de um país laicizado, uma nova Turquia que pudesse entrar na Europa.
 Mas pressentimos, ao ler, que é bem maior a força dos mitos e lendas que alimentam o imaginário dos homens e das suas nações, e do destino eventual a que são votados.
Finalmente, a partir do capítulo 37, a grande reviravolta, como nas grandes tragédias que nos surpreendem nos palcos (do teatro ou das vidas). Cem tem um filho, cuja existência ignorava, concebido naquela noite de paixão com a Mulher dos Cabelos Vermelhos.
Pamuk vinha, de longe, com subtileza, de forma cautelosa, insidiosa até, sugerindo que nada estava ali a acontecer por acaso. A leitura de livros que se referiam a mitos descodificados por Freud, descobre-se mais tarde, no caso de Édipo Rei, e outros que o jovem narrador, Cem, que queria ser escritor, escrever o seu Livro) - tudo viria a ter uma razão que não era de acaso, era de destino traçado.
Cem, já casado, visitando Museus pelo mundo, com a sua jovem mulher, descobre, graças à gentileza de uma curadora, a grande epopeia SHAHNAMEH, o Livro Persa dos Reis, que não conhecia e era um enorme repositório de mitos, lendas, fábulas, narrativas, entre elas a que ele tinha visto representada pelo Teatro das Moralidades, e em que o Sultão mata o seu filho, desfazendo-se em lágrimas e fazendo chorar toda a plateia, de emoção. A Mulher dos Cabelos Vermelhos tinha aí o seu grande momento de representação, como se de facto estivesse a viver um tal desgosto.
No fundo, de novo em contraste com o Édipo ocidental – em que o filho mata o pai (embora sem saber) tínhamos aqui uma versão oriental conhecida e lida desde sempre, em que pelo contrário é o pai que mata o filho. Mas em ambas as histórias por falta de se reconhecerem no momento da luta. Outra subtileza com que Pamuk nos deixa, para absorvemos o que pode existir nas diferenças, porque ele, na narrativa torna real outro mito, o de Freud: pai e filho lutam, sabendo finalmente quem são, e o filho, que se deu a conhecer, sem esconder revolta e ódio ao pai que o ignorou, mata Cem, (dirá depois que foi em legítima defesa) arrancando-lhe a pistola de mão e baleando-o num olho, antes de o atirar para dentro do poço que o pai ajudara a erguer. Assim, em leitura moderna, se cumpre o seu  destino: cegar um pai e matá-lo, porque de todo o modo Édipo é o que teria feito: cegar-se, de arrependimento. Já fora cego, antes mesmo de o ser.
Passo adiante uma reflexão que se me foi impondo, mas deixo para outros momentos: a questão da Culpa, que nos conduzirá para lá da força do Destino à questão da Queda, do Pecado original.
Mestre Mahmut e a semanas da busca da água num poço já tão fundo, como o se fosse o centro último da terra (teria ele morrido, estaria vivo, alguém o teria salvo, libertando assim o jovem, agora homem, do sentimento de culpa que nunca o abandonara? ) –torna-se em obsessão que o levará a Ongoeren, numa espécie de regresso às origens: ali tudo começara, sem esquecer a iniciação ao amor pela Mulher de Cabelos Vermelhos, ali se desvendaria a verdade (constava por ali, pois era um meio pequeno, que ele abandonara à sua sorte o Mestre, e tivera um filho dessa Mulher, abandonado também).
A narrativa acelera, como numa tragédia que precisa rapidamente de chegar a um desfecho.
Quanto ao suporte mítico vamos ficando entre Sophocles e a épica de Shahnameh e em breve, quando Cem é conduzido, sem saber de início que é o filho que o conduz ao lugar onde o poço fatídico se encontra, mas já carregando no peito tanta incerteza, tanta interrogação e mesmo tanto medo, tanta culpa – até que o desfecho, na noite escura, entre uma luta e uma discussão carregada de sentido finalmente se dá. É o filho que mata o pai.
O filho, concebido na noite de uma paixão fogosa, transforma de repente a antiga deusa Inanna na cruel deusa Ishtar, variante também ela da Grande Mãe, a que inicia e mata depois os seus amantes de uma única vez, para que nesse sacrifício a fertilidade da terra se perpetue sempre.
O romance está dividido em 3 partes.
E agora Pamuk, como Joyce no Torrencial Monólogo de Molly Bloom, dá uma voz igualmente torrencial à Mulher dos Cabelos Vermelhos, que ali se ergue em defesa do filho, afirmando que foi em legítima defesa, e sem intenção de matar,  que Enver (é o nome do filho) durante a luta acabou por cegar e matar o pai, atirando o corpo para o poço de maldição.
A Mulher, ligada ainda, com os seus sessenta anos, à troupe do seu teatro, une todos  os pontos, preenche todas as falhas e lacunas desta história de magia com que Pamuk nos tinha vindo a encantar. E de que modo se chega ao final mítico, e trágico, de que ela espera dos Juízes que o filho venha a ser ilibado. No entretanto, entre muitas carícias e consolos, promete vir visitá-lo à prisão, ler as páginas da epopeia que é a deles, a dos Reis Persas e em que as histórias da Vida são contadas, na sua verdade mítica de sempre, universal. 
É ela quem afinal salva Mestre Mahmut, e ajuda a que o retirem do fundo do poço, quando vê passar ao longe, de mala na mão o jovem Cem e deduz que alguma coisa devia ter acontecido para que ele abandonasse o seu trabalho. Levam-no para o hospital, onde é tratado.
Nessa altura ainda não sabia que ficara grávida do filho de Cem, fruto dessa noite de louco amor por um jovem tão mais novo, que podia ser seu filho (por aqui subtilmente se alude ao mito grego).
E assim vai contando a sua história, que esclarece tudo o que ficara oculto na narrativa em suspenso de Pamuk...uma arte magnífica de labor, ou de bordado oriental. Não omite, na narrativa, como se extasiava ao ver crescer o filho de Cem, o seu corpo macio, que lavava e acariciava (e por aqui, de novo a subtil relação com o incesto grego) e como nele colocou todas as expectativas de que viessem a conhecer-se, ainda que de forma inesperada, e Enver pudesse ser o escritor que fora o sonho de Cem, que trocara a arte pelo negócio e pelo sucesso que o levaria, no fim, a uma morte trágica. 
Há mais mistério adiante, mas terão que ler sozinhos...Deixo reflexão sobre duas figuras em contraponto: O Mestre Vedor é o Sábio, que conta as lendas persas e a história de Sohrab, morto pelo seu pai, e a Mulher é medianeira transmissora, neste novo Édipo moderno.
O romance levantou-me dúvidas, sobre o que é a Culpa, o que é a Mentira, em que ponto residem, da história mítica da humanidade? Fiquei e continuo a pensar.
Escrevi um pouco, nas notas que escrevo  ao acaso dos dias, quando tudo o que leio nos jornais, vejo na televisão  ou encontro no facebook me aborrecem de morte. O facebook é o espelho do que somos: simplórios e grosseiros.
Mas não tenho um Pamuk novo para ler todos os dias...
6 de Novembro (das minhas notas, inéditas)
Acordei com a ideia de retomar o que é afinal a CULPA, a mancha primordial, de que se ocupa Pamuk no romance da Mulher dos Cabelos Vermelhos.
Ficou muito por dizer no blog. Esse Édipo antigo, arcaico e simbólico que ele recupera no romance, estabelecendo uma espécie de ponte entre duas culturas, a ocidental e a oriental, a que ele pertence, não esclarece com a simplicidade da leitura de Freud a descida ao poço, o abandono, a sedução quase incestuosa entre a Mulher e Cem, o jovem que iniciou na arte de amar e a quem ela diz eu podia ser tua mãe (pela diferença de idades, mas também porque fora antes amante do seu pai) e depois o próprio filho de Cem, que a engravidara, sem saber, cuja existência e cujo nome ela oculta, amando-o por rever nele a beleza de Cem, na mesma idade, jovem, e cuidando dele, até no banho, com um desvelo mais de amante do que de mãe, deixando no ar uma quase suspeição de incesto não explícito. O verdadeiro nome do filho é Enver, mas ela habituou-o a usar outro nome, Serhat – não queria a revelação (que se daria mais tarde, tragicamente) que o identificasse logo: assim vai ele, conduzindo o pai, Cem, num logro ( a mentira ) que culminará na sua morte, em luta violenta como que de  castigo, ajuste de contas, de há muito aguardado. Cega-o com um tiro e mata-o. 
 Voltando à ideia de culpa: residirá então na mentira?
Afinal neste romance tudo é construído, como se descobre no fim, pela narrativa da mulher, em trompe-l’oeil.
Jogo de enganos: ela não é ruiva natural, pinta o cabelo de vermelho, como viu noutra mulher, um dia num café, e como era fácil de fazer, sendo ela actriz, “mulheres daquelas”, entenda-se, capazes de tudo, como se dizia, de pequena moral...
Esse é o primeiro gesto de mentira e sedução. Haverá outros, para que se substancie o mito trágico de um Édipo agora em ponto miúdo, de uma escrita de marca oriental, como se inscrito numa miniatura de um tapete persa muito antigo...
E agora a leitura que se impõe:
nos Penguin Classics, ABOLKASEM FERDOWSI, SHAHNAMEH, The Persian Book of Kings, translated by Dick Davis, forward by Azar Nafisi, ed. 2007, revisto e ampliado em 2016. Julgo que é este o momento de ler, nem que seja ao acaso das páginas, as belas histórias que contém.