Thursday, December 18, 2014

Mandalas

Escrevi, para um amigo que desconhecia a palavra Mandorla, um post em que falo de coisas várias, do poema de Paul Celan, com esse nome, mandorla, do simbolismo da palavra, e através (ou talvez de través, como muito me acontece) do simbolismo e da  unificação espiritual que a Tábua de Hermes (Tabula Smaragdina) nos procura transmitir.
Aquele que contempla, seja poeta, seja filósofo alquimista, junguiano (pois foi antes de todos Carl Gustav Jung quem trouxe a alquimia para o ocidente) está a caminho de um conhecimento superior, que diga respeito a si mesmo - quem é, e o que é ?- dos outros e do mundo à sua volta. Com misticismo alargado, a interpelação será a do cosmos, sua unidade absoluta e vertical, do mais alto ao mais baixo e vice-versa, como a Tabula afirma. Mas essa será talvez quem sabe uma revelação concedida aos astrólogos e astrónomos mais do que aos mais humildes obreiros do caminho.

Wednesday, November 12, 2014

O Ovo Alquímico


A gema de ovo – o ovo alquímico

Em vez de tentar esquecer vou relembrar aqui esta imagem de um sonho que tive há anos.
Hora de almoço, todos à mesa, a minha mãe (a sua Sombra) também está connosco.A refeição é de ovos, e de repente a minha mãe parte um ovo e deita para o meu copo de água uma gema que fica lá dentro a boiar, amarela, inteira. 
Acordo.
Sei, ou julgo saber, que esta imagem de uma gema de ovo se prende com o próprio simbolismo do ovo: um nascimento, um princípio. O imaginário alquímico está repleto destas imagens, das mais antigas às mais recentes.
Contudo falta-me alguma coisa nesta explicação. E procuro, tenho procurado, ao longo destes dias. Não paro de pensar.
Irei talvez reler Jung, era o meu Mestre, outrora.
Há muito que não o leio.Se soubesse desenhava: a gema de um ovo fresco, inteira, amarela, boiando no copo de água.
Mas julgo que são importantes outros factores do sonho: o estarmos em família à mesa; a minha mãe (que já morreu há anos) aparecer ali sentada connosco; e o ser ela a despejar o ovo para o meu copo.
Que associação fazer: morte e vida? 
Um renascimento espiritual? (seria o meu, que estou com uma depressão que não passa e não confesso?).
Num sonho a imagem simbólica é fulcral: diz qualquer coisa, avisa, alerta ou confirma.
E neste caso o que será?

Associações:
vida, origem da vida
alimento
nascimento e renascimento
regeneração

Recordo que o copo de água era um copo alto, tubular: tubo de ensaio? então fortalece a imagem da vida.
Se fôr buscar o imaginário alquímico: a Pedra filosofal, no início da busca. O ovo é o ovo primordial; nele tudo está contido, o princípio e o fim, o bem e o mal, a luz e as trevas, a matéria e o espírito, cada coisa e o seu contrário, no jogo infinito dos opostos. Também a vida e a morte: pois esse ovo ali aberto à mesa, se não fôr comido será deitado fora.
No sonho fico a olhar, espantada.

Podemos, com os alquimistas e místicos mais célebres, considerar as imagens e símbolos do OVO CÓSMICO.
Um ovo fechado é a imagem de um universo contido em si mesmo, ainda não desdobrado em acto de criação, múltipla e diversificada nas suas várias esferas até à material, que conhecemos.
Mas neste caso do sonho o ovo foi aberto, o que ali está é a gema, a imagem mesma da vida, um sinal importante com que o sonho nos deixa.
Do ovo cósmico há imagens belíssimas: recordo que John Dee (1527-1608) astrónomo e matemático da Côrte de Isabel I de Inglaterra, usava o ovo como imagem do céu etéreo, contendo na sua forma circular os planetas; e Paracelso, que foi seu inspirador, escrevia que “ o céu é uma concha que separa um do outro o mundo e o céu de Deus, tal como a casca de um ovo:’a gema representa a esfera inferior, a clara a superior; a gema a terra e a água, a clara o ar e o fogo’. ” (John Dee, Monas Hieroglyphica,1564).
Encontraremos em William Blake, séculos mais tarde, uma representação semelhante do ovo cósmico: do rodopiante centro negro do caos surge o mundo de LOS, em forma de ovo, originando o espaço ilusório tridimensional delimitado por duas fronteiras, a da opacidade (Satan) e a da materialidade (Adão) – que nos impedem a visão da eternidade e do infinito das coisas. 
É contudo em Hildegarda de Bingen, freira do século XII, erudita não apenas em matérias religiosas mas em todas as pertencentes ao domínio da Ciência, astronomia, mineralogia, alquimia, etc. que podemos encontrar descrições que ainda hoje surpreendem, pela sua beleza e capacidade de significar, ou simbolizar, melhor dizendo:
“ Foi então que vi um objecto enorme, redondo e sombrio. Como um ovo, era aguçado no alto. No exterior, à sua volta, uma camada de fogo (o céu). Sob esta camada, uma pele escura. Suspensa na camada de fogo brilhante uma bola avermelhada, flamejante (o sol). Etc. ( Scivias, Rupertsberg Codex).

Não irei de momento às descrições antigas dos Egípcios, ou de outras civilizações anteriores às do mundo ocidental, em que as imagens do ovo cósmico eram o suporte das narrativas ou dos mitos fundadores dessas civilizações. 
Interessa-me aqui desvendar o simbolismo do ovo primordial, e no caso do sonho, o da gema que flutua num copo de água mais parecido com um tubo laboratorial.
É em Michael Maier, medico e alquimista do século XVII, protegido da Côrte de Rudolfo II, em Praga, que encontraremos um conjunto de obras sábias de que beneficiou também Robert Fludd, hermetista inglês que ali conviveu com ele.
A obra mais interessante é a ATALANTA FUGIENS, Atalanta Fugitiva, que Étienne Perrot, psicólogo junguiano, traduziu para francês, ajudando à sua divulgação.  
Obra poética, musical e mística, oferece nos “Discursos” e nos “Emblemas e “Epigramas” uma súmula de todo o saber alquímico. Perrot usava-a como uma espécie de Bíblia, e é nela que também eu vou encontrar este símbolo do ovo como Pedra Filosofal que o adepto, no seu laboratório, junto à sua lareira, tem de abrir com um golpe certeiro da espada que levanta na mão ( Emblema VIII).

Antes de analisar com mais cuidado o que Maier nos diz, chamo a a tenção para um ponto que me parece de extrema importância e de que me apercebi entretanto: nas visões dos místicos, medievais ou mais recentes (como Blake) o simbolismo da imagem remete para o mistério do universo, antes ou após a criação; ou para o mistério da divindade criadora que através do universo se manifesta.
Mas nas visões dos alquimistas é do mundo criado que se trata, é desta Terra, também ela misteriosa, com os seus elementos, os seus princípios, os seus opostos, e bem no centro da terra é do Homem que se trata, não do universo, mas do homem que, sendo embora parte integrante dele, diante dele se espanta e tenta compreender: mais a si mesmo e ao mundo, ou no mundo, do que a Deus.
Julgo que é desta verdade profunda (escondida) que resulta o carácter esotérico da busca alquímica (os adeptos diziam-se filósofos herméticos) e sobretudo a natural desconfiança que sempre a Igreja manifestou em relação a estas práticas.
A gravura de Michael Maier é um excelente exemplo: num espaço que é de casa (pode ser castelo, seria natural) junto a uma lareira onde arde uma bela chama, um homem ergue uma espada (descrita como glaivo flamejante) e é incitado a quebrar  o ovo desse modo.
Tudo aqui é terreal, e não divinal, como nos místicos.
O Discurso, de que já falarei, desenvolve então o lógico: que pássaro nascerá desse ovo. Saberemos que é o pássaro da vida – outra figura simbólica, anunciando uma sublimação que se aguarda e deseja : no caso da psique humana a integração da sombra do inconsciente; no caso do “jogo” alquímico a integração dos elemntos que permitirá a obtanção da Pedra filosofal (da qual já sabemos que é apenas uma outra palavra para aludir ao ser humano completo, realizado).

Foi um grande erudito, o médico e psicanalista Carl Gustav Jung - que durante anos se isolou para estudar os manuscritos e documentos de maior interesse das artes alquímicas  - o primeiro a chamar a atenção da importância dos Símbolos, tal como os descobria na alquimia, para o estudo da alma, da psique humana.
O símbolo era a voz do inconsciente a fazer-se ouvir, a dar-se a conhecer. E nos tratados de alquimia essa linguagem era quase explícita, era a ponte que faltava, da consciência para o mundo arquetípico do inconsciente.
Analisando ao longo de anos e anos os sonhos dos seus pacientes verificava semelhanças esclarecedoras, que os ajudavam a ambos, médico e doente. O inconsciente tinha uma linguagem própria, ora mais luminosa ora menos: símbolos e arquétipos que se manifestavam em visões ou em sonhos.
Mas em tudo haveria um sentido, adequado ao momento, à circunstância.

Maier no Discurso VIII, que acompanha a gravura escreve:
“ No ovo as sementes do macho e da fêmea estão juntas sob uma mesma casca.A gema produz o pinto, a raiz dos seus membros e das suas vísceras graças à semente do macho, formadora e operante, que se encontra no interior. A clara fornece a matéria, isto é a trama e o meio de crescer, no esquema ou cadeia do pinto”.
Na verdade é já da vida dentro do ovo, é deste pinto que poderá crescer, reproduzir-se, originar outras formas, que Maier deseja falar.
Ovo alquímico: forma integrada de vida.

Ainda hoje é venerado em Burgos o Santo Cristo, escultura de madeira do século XIV, diante do qual rezaram Isabel a Católica, o Rei seu bisneto Filipe II, Santa Teresa de Jesus, São João da Cruz entre muitos outros; a curiosidade maior é que tem a seus pés cinco ovos de avestruz (também em madeira) evocando os que terão sido oferecidos por um comerciante vindo de África.
Cinco ovos, como oferenda, e que ainda hoje ali permanecem, aos pés de uma das imagens de Cristo mais conhecidas.
Foi feita em madeira de castanho, coberta de pele de animal, sugerindo ao tacto a pele humana; tem rasgões de inúmeras feridas e é articulada, como ao tempo era usual, tornando a imagem mais viva e realista; o cabelo e as unhas são verdadeiros e reza a lenda que crescem todo o tempo. 
Quanto aos cinco ovos ali depositados: 
Uma alusão ao Quinto Império, aquele em que a fraternidade seria universal e a abundância uma verdade paradisíaca incontestável, como proclamara Joaquim de Flora nos seus escritos e visões?
São muitas as lendas que correm sobre este Cristo (e o mistério dos ovos, com todo o simbolismo que encerram, contribuem certamente para tal).

Recuperando outras imagens, igualmente fascinantes, do simbolismo do ovo como emblema de vida, ou, noutros casos, como frágil envólucro de decomposição, é forçoso evocar aqui a obra de um Bosch (c.1450-1516) ou de um Magritte (1898-1967) já próximo de nós e de um imaginário que nos é mais fácil de entender, pois sabemos, do Surrealismo, tudo ou quase, do que nos propõe como associação-livre de imagens.
No caso de Bosch deparamos com um Bestiário em que a desordem dos membros e dos elementos que se justapõem numa anti-natural narrativa (que temos de desconstruir), causam a perturbação de um natural terror: imagens de um universo que decaiu e perdeu forma e ordem, a harmonia outrora existente no Paraíso. Quer se trate das Tentações da Santo Antão, quer do Jardim das Delícias, as obras mais conhecidas, o que se vê e pressente, para além da abundância das imagens e suas deformidades, é a marca do excesso, de um negro pensamento sobre o Humano e seu destino caótico.
Bosch crê no que expõe, algo que se exprime ainda com mais virulência no quadro do Juízo Final. A sua pintura é religiosa, produto de um contexto medieval ainda em que a figuração do monstruoso cumpria uma missão que podemos dizer “pedagógica”: o temor de um Além desconhecido era maior do que a alegria de vir a conhecê-lo, ainda que liberto de Pecado…o Pecado era parte da condição humana, a sua mancha perpétua, e a prova disso era tudo o que  a imaginação do artista produzia, sem piedade. Na obra de Bosch (já noutros lugares me ocupei um pouco do seu imaginário alquímico) podemos “ler” no meio da confusão, correspondente ao CAOS ou à NIGREDO , várias alusões, mas muito discretas, à TRANSFORMAÇÃO que a Obra alquímica procura. Num enorme corpo-casca de ovo partida, de onde emergem cabeças e membros como patas, podemos adivinhar que ali se deu um parto-cósmico e que a criatura que nasceu, como duma esfera superior materializada, a alguma sublimação dará lugar : e de facto, em esferas transparentes, formas andróginas surgem, mais longe, delicadas, mas ainda tão frágeis que mal se sustentam no espaço imaginário desenhado.
Aqui o simbolismo do ovo, a existir, aponta apenas para a materialidade de um mundo em decomposição e de que parece não ser possível fugir, a não ser com mais sofrimento ainda. Bosch tem um olhar implacável. O  cosmos primordial originou uma multiplicação de formas luxuriantes que foram degenerando e de que até a forma humana é um exemplo cruel.

Diferente, por todas as razões, é o caso de Magritte: tal como Bosch deu largas a um imaginário de fusão (mas nunca de confusão) obrigando a que se discutisse o conceito de imagem /representação. O real que se apresenta e se representa na obra, pictórica ou verbal, afinal o que é?
Ao contemplarmos o conjunto da obra deste pintor, ao longo dos anos, vemos como da primeira sedução do cubismo, da côr intensa e pura de um fauvismo expressionista, passando pelo traço afinado da experiência publicitária, finalmente escolheu o seu terreno (a sua praia, como se diz hoje): o do surrealismo libertário, ou quase.
Magritte não gostava que o apelidassem de surrealista. Já me ocupei de alguns aspectos do seu imaginário noutros lugares. Mas é certo que vemos, na sua “representação” a associação livre de objectos /imagens, narrativas que aludem a processos oníricos (como os associados a Alice no País das Maravilhas) formas que surgem da leitura de poemas (o caso de Baudelaire) reagindo com uma ou outra construção imprevisível: e também o imprevisível é matéria do sonho.
Falemos pois, com Breton, pai fundador do Surrealismo em França, do sono e do sonho, como portais de um mundo outro, um mundo além, na sua existência consistente.
Não me esqueço que tudo começou, neste pequeno ensaio, com o sonho que tive, com ovos à mesa, e com a gema que é deslizada para dentro do meu copo de água; uma gema que fica inteira, não se desfaz ,sendo que é nessa altura que acordo.
Outro elemento que não esqueço é que é a Sombra da minha mãe que está connosco à mesa, e me dá esse ovo.Procuro em Magritte agora, por ser um dos meus pintores preferidos, o sentido alquímico, de transformação, ou de sublimação, que pode ter essa imagem, essa representação onírica do ovo.
Num quadro de 1930, A CHAVE DOS SONHOS, Magritte expõe, como é frequente e a seu gosto, um conjunto de imagens, entre elas um ovo. Em seis quadrados pinta um ovo, ao alto, do lado esquerdo e no seguinte um sapato; em baixo, do lado esquerdo um chapéu e no seguinte uma vela; por fim em baixo, do lado esquerdo um copo de água e no seguinte um martelo. E como é seu costume, legendas por baixo de alguns dos objectos que nada têm a ver com eles: sob o ovo “ a Acácia”; sob o sapato, “ a Lua”; sob o chapéu, “a Neve”; sob a vela “o Tecto”; sob o copo,” a Tempestade”; e sob o martelo,”o Deserto”; o título geral, é,como disse, A Chave dos Sonhos.
Há associação entre ovo e acácia: pois nas árvores há ninhos de pássaros com ovos; ou sob o copo a tempestade(uma tempestade num copo de água...provérbio popular conhecido). Mas não é forçoso que exista.
Contudo veremos noutro quadro de época próxima, pintado em 1936, Autoretrato com título português traduzido como PERSPICÁCIA, do que discordo, pois no original é LA CLAIRVOYANCE ( A Clarividência) uma associação bem mais explícita: olhando para um ovo colocado numa mesa ao pé de  si, o pintor pinta na tela um pássaro. Podia tratar-se de uma gravura de Maier, o alquimista que já referi…pois o natural destino de um ovo saudável é que dele nasça um pássaro…se é o pássaro da perfeição dos alquimistas, não saberemos, mas está expressa a metáfora, e isso é o que importa. Da representação que parecia displicente nasceu um conceito ordenado.
Para mim, nesta busca do sentido de um sonho, de uma chave que o abra e o torne mais claro (daí o interesse e a pertinência do título A Clarividência) o encontro com mais um quadro onde a imagem do ovo permanence foi muito interessante:
Datado de 1939 – continuamos, repare-se, na década de 30, tão marcante para os surrealistas   - o seu título é A ESCADA DE FOGO.
E agora sim, se tornou claro o simbolismo da transmutação alquímica, da sublimação da terra pelo fogo, elemento primordial em todo o processo de criação. No quadro, ardendo sobre uma mesa, estão uns papéis, um ovo, uma chave; as chamas brotam dessas imagens, em pequenas labaredas. O fogo é  a escada, isto é, o fogo é o elemento que espiritualiza, que eleva, que sublima.
Haverá aqui uma reminiscência da Escada de Jacob, onde ele luta com o Anjo? Hà em todo o caso uma alusão directa à chave de um segredo, e esse segredo é o fogo que o contém. Aliás veremos o elemento fogo aparecer como fulcral em muitos outros quadros, por exemplo o óleo de 1934/35 A DESCOBERTA DO FOGO, representando uma tuba a arder em chamas. Associação imediata: o Sopro criador é um Verbo de Fogo, e quando o Verbo “se fez carne” assim se formou o ovo, a primeira das formas da natureza material, semente de todo o futuro “crescimento”, já no mundo criado.
Vale a pena citar um comentário que Magritte fez a um amigo,Paul Waldo Schwarz, em conversa de 1967, a propósito da aliança entre Mistério e Poesia:
“ O mistério existe porque a mensagem poética possui uma realidade. Visto que o pensamento inspirado imagina uma ordem que une as imagens do visível, a imagem poética possui a mesma espécie de realidade que a do universo. Porquê? Porque responde ao nosso interesse natural pelo desconhecido. Quando pensamos “universo” é no desconhecido que pensamos – a sua realidade é desconhecida para nós. Eu crio principalmente o desconhecido com coisas conhecidas” (Jacques Meuris, Magritte, ed Taschen, p.112).
Assim surgem, dispersas pelas suas pinturas, matérias do banal quotidiano ligadas a outras, de forma imprevisível, deixando no ar interrogações e perplexidades – nunca respostas – pois como o ovo aprisionado em AS AFINIDADES ELECTIVAS, de 1933, imagem enorme fechada numa gaiola da qual não se prevê que possa voar um pássaro – o Universo continua, para nós, igualmente fechado e encerrando muitas e distantes surpresas. Ambos os universos: o exterior, que os astrofísicos perscrutam, e o interior, que se abre aos artistas e aos psicanalistas ( mas nem sempre).
Outro dos aspectos a não descurar, na pintura, ou no exercício de criação de Magritte é a escolha dos títulos  e das legendas com que acrescenta o mistério dos quadros. Ainda que por vezes, como ele diz, sejam escolhas aleatórias, têm frequentemente um suporte literário, numa associação que só pode acontecer porque estamos perante um homem de grande cultura e muito lido. Assim, estas Afinidades Electivas apontam para o célebre romance de Goethe, com o mesmo título: a sua estrutura é simbólica, alquímica, no respeitante à paixão-fusão dos dois pares em confronto. O jogo proposto no quadro é que o ovo preso na gaiola pede um vôo, pede as asas de um pássaro, pede a libertação sublimadora, que os heróis de Goethe obtiveram. 
Haveria mais a dizer, neste sentido: já o fiz, a propósito de LA GÉANTE, e falarei adiante das associações com Alice no País das Maravilhas, ou Através do Espelho, de Lewis Carroll.
A dimensão simbólica da arte (na poética da palavra ou da pintura ( ou em qualquer delas no sonho) é a ponte que liga o conhecido do real ao desconhecido surpreendente e que se torna ainda mais real do que o já conhecido.
Daí que as imagens simbólicas, os arquétipos (imagens do colectivo, como as designou Jung) assumam tanta importância, desde tempos imemoriais.

Carl Gustav Jung (1875-1961) discípulo de Freud, pai fundador da psicanálise, levou mais longe que o Mestre as considerações sobre os significados simbólicos de antigos mitos e lendas, permitindo que se abrissem ao entendimento e cura eventual das psicoses que tratavam nos seus pacientes. Definiu o conceito de arquétipo para as manifestações, nos sonhos, de conteúdos cujas semelhanças com matérias primordiais eram evidentes, ainda que paradoxais; e chegou, por meio dessa definição, a outra, de inconsciente “colectivo” , espécie de armazém e memória da espécie humana e não apenas do indivíduo (em cujo inconsciente Freud via somente manifestações da repressão sexual de dado momento, sobretudo da infância, como tempo-espaço mais distante).
Ora o que Jung fez , ao estudar a História da Ideias Religiosas da Humanidade, seus mitos fundadores, foi alargar o campo da possível análise dos sonhos e seus significados simbólicos. Para que o indivíduo, ao situar-se também noutro contexto, mais antigo, caminhasse melhor na sua busca de si mesmo,  na progressão e cura do seu problema, se de tal se tratasse.
Jung não descurou a alquimia, desde os Escritos mais antigos, da Alexandria dos sécs.II-III (refiro-me a Zosimo, entre outros) até aos Tratados medievais, árabes e latinos que inspiraram os autores mais conhecidos da Europa dos sécs. XV-XVI em diante. Encontrou, a propósito da busca incessante da Pedra Filosofal, ou do Ouro que a figurava, (ou mesmo do Graal, vaso sagrado de abundância, como a Pedra) sempre a mesma estrutura, assente em 3 princípios, Enxofre, Mercúrio e Sal, 4 elementos, água, fogo, terra e ar, e um idêntico propósito: a sublimação da matéria imperfeita em perfeição espiritual.
Não descurou, para lá da real experimentação química, laboratorial, descrita, a dimensão mística sempre presente. (referi-me a estes aspectos num estudo de outrora, sobre a Alquimia como Misticismo Secular, em Literatura e Alquimia, ed. Presença,1987).
Em Jung, em obras como METAMORPHOSES DE L’ÂME ET SES SYMBOLES (na tradução francesa,1973) encontraremos um verdadeiro guia para as nossas meditações, e também, neste caso, para o simbolismo do ovo como figuração primordial.
Uma das imagens mais significativas que Jung escolhe para exemplificar o seu pensamento é retirada de N. Mueller, Glauben, Wissen und Kunst der alten Hindus, Religião Ciência e Arte dos Antigos Hindus,1822,fig.21. Vemos neste exemplo Prajâpati e o ovo universal. Do triplo Sopro da boca de Prajâpati emanam dois seres opostos, e um par colocado já na esfera que envolve o ovo cósmico. Na fractura do envólucro, casca quebrada, podem ver-se ainda a esfera e a roda que simbolizam a vida criada, o eterno retorno…por outras palavras “a multiplicidade do mundo” (Jung, p.630-631). Paradoxal, como tudo o que respeita aos símbolos, diz-se, no Livro Egípcio dos Mortos, que Prajâpati é “o ovo gerado por si próprio, o ovo do universo que ele mesmo chocou”. O deus tem de encerrar-se em si mesmo , engravidar de si mesmo, para dar à luz o mundo da multiplicidade.
Na leitura que Jung faz deste arquétipo da criação eis o sucede: é preciso, por introversão, descer em si mesmo, transformar-se em algo de novo, a multiplicidade do mundo. Para o criador, e podemos agora falar do indivíduo, o acto da criação é sempre um momento de alienação de  si mesmo. A introversão, o  descer em si mesmo, afundar-se no mundo do inconsciente, é uma ascese; esta ascese é para os místicos a renovação espiritual, o renascimento a que aspiram. Mas há muito de semelhante entre o criador e o místico, no momento da criação-revelação – daí o imprevisto, o imprevisível de que Magritte, entre outros, falava. E para nós a surpresa que a obra de arte, ou um sonho, podem representar: uma iluminação.

Trazendo à colação Lewis Carroll, cuja obra não cessa de nos interpelar, assombra e ilumina também ela (penso em Magritte e mais recentemente em Bob Wilson, por exemplo, que habita as mesmas esferas de sombra e luz) veja-se como Humpty Dumpty o Ovo que se humaniza, no capítulo VI de Alice Através do Espelho, nos remete para o mesmo problema que nos fez chegar até aqui: de que modo um ovo que começa por ser arquétipo de fundação primordial “ensina” a lição da vida: que do uno sai o múltiplo, que do pouco sai o muito, e que é sempre necesário “abrir” o mistério com que nos deparamos para seguir em frente com mais cautela, como faz Alice, com mais cuidado (mais sabedoria).
A associação entre árvore, pássaro, ovo, é a natural, e assim nos surge em muitos textos e quadros e não vou insistir nela. Nesta divagação onírica de Alice o mesmo se passa:
“ Por isso continuou, cada vez mais espantada, porque todas as coisas se transformavam numa árvore assim que ela chegava ao pé delas, e ficou à espera que o mesmo acontecesse ao ovo (cap. V). Contudo o ovo apenas ia aumentando de tamanho, adquirindo contornos humanos. Quando se aproximou a escassos metros dele, Alice viu que tinha olhos e boca e nariz; e ao chegar-se mesmo ao pé adivinhou logo que era Humpty Dumpty em pessoa” (cap.VI).
Sabemos que também a árvore pode adquirir, em contexto, uma determinada carga simbólica, como árvore do mundo, centro criador, basta evocar as Árvores do Éden, do Conhecimento e da Vida.
Mas aqui interessa-nos ficar pela associação mais directa: árvore (ninho, pássaro), ovo; e um ovo que se humaniza, como convém ao facto de ser elemento criador, pulsão de vida ao mesmo tempo formadora e formada, como na mitologia egípcia.
Alice está, de momento, ainda a desenvolver-se, pouco percebe do que vai sucedendo.
O imaginário subtil torna-se explícito em Magritte, com o conjunto de duas pinturas dos anos 40: A VOZ DO SANGUE, (1948) representando uma árvore de tronco aberto, com uma casa iluminada em baixo e um ovo enorme em cima: na Árvore da Vida encontrar recolhimento (a casa) e alimento (o ovo). Para não falar do quadro de 1945 que se intitula mesmo ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS e em que precisamente é duma árvore que surge uma parte de um rosto: olho fixando o horizonte, nariz enorme  e erguida no céu uma pera verde com mãos que podiam estar a aplaudir… 

Chegou talvez o momento de voltar ao meu sonho e aos seus elementos mais significativos: a mesa, a refeição à mesa, com a Sombra da Mãe participando, sendo que o alimento são ovos; e de repente a imagem ( o gesto) que me acorda: a gema de ovo despejada pela Mãe no meu copo de água; uma gema amarela, perfeita, de luz solar que não se desfaz.
E finalmente, ao fim destes dias, será que percebi?
É preciso partir o ovo para que ele seja alimento. De um ovo (um coração) fechado nada pode sair.
Mas penso também na gema: forma, redonda (de mandala); côr, dourada, luminosa, solar.
E outras associações ocorrem…

 (texto publicado na Revista do CEIL, da Universidade Nova)

Saturday, October 11, 2014

Miguel de Carvalho
Deste poeta que faz livros à mão ( quem me dera  ter essas mãos, e esses olhos ) recebo uma prenda única:
do vento coagulado no pano
edição artesanal Debout sur l'Oeuf, exemplares numerados e autografados, como se deve em livro de arte...o meu tem o número 75, e eu gosto especialmente do 7, meu número, e do 5, número da vida (para Fernando Pessoa, num dos dos seus escritos do espólio).Uma pequena-grande obra-de-arte, cabe na palma da mão.
O título do poema lança-me um desafio, e por isso o trago para este blog, que se ocupa de mistérios um pouco maiores, quando a leitura permite.
Gaston Bachelard diria temos no vento o Ar e no pano em que se coagulou, a Terra. Dois elementos do nosso imaginário arquetípico, a que o verbo coagular acrescenta uma dimensão alquímica: solve et coagula...et quod quaeris invenies.
Dissolve e fixa e descobrirás o que procuras. 
Ao estudioso não será necessário lembrar que é na fusão de opostos que se encontra a lei máxima da filosofia hermética e suas doutrinas que podem variar muito nos nomes atribuídos à Perfeição que se busca (como se pode ler em Dom Pernety, no seu dicionário): Pedra filosofal, Elixir de Longa Vida, Graal, Matéria Negra, etc. mas que nos processos e considerações apontam sempre para um mesmo caminho de estudo, leitura, releitura, meditação (das imagens ou dos textos) até que pela chamada Via, pela chamada Obra, se atinja a sublimação da consciência num Eu Superior Espiritual.
Mas primeiro entender os opostos....Vento - que é pensamento, e "pano" que é matéria-prima terreal, e receberá a dimensão espiritual que o Vento traz consigo. 
Eis o poema:
Os pássaros sabem de cor
esculpir um rosto no núcleo da calçada marmórea
sulcar um corpo caminhante entre sombras que rasgam
tendo o vento e o moinho como testemunhas
e sobre eles o silêncio das cantarinhas desnudadas.

engravidar ao crepúsculo as estrelas nos campos de batalha
à semelhança das consciências rendilhadas pelo sol
dos espojinhos
enquanto diz uma criança 
o poema dos nossos receios
....
Se dúvidas houvesse, de que estamos perante uma "iluminação" (Rimbaud gostaria desta ideia) um súbito caminho que se rasga nas trevas, na noite, no corpo das estrelas, que têm, também elas, como o poeta que as diz "fome e luz" .
Não é fome de luz, é uma "conjunção" (leia-se Jung, na definição do Mysterium Coniunctionis ) de espírito e matéria, um corpo transfigurado, como na visão da Aurora Consurgens atribuída a São Tomás de Aquino. A carne feita Verbo.
Deixo ao leitor o esforço e o prazer de procurar o livro, junto ao Rio Mondego, de Coimbra e não o transcrevo todo.
Uma palavra mais para a editora que foi criada: DEBOUT SUR L'OEUF !
Aqui está uma denominação que faria as alegrias de um Jean Cocteau e seu grupo de amigos poetas da vanguarda surrealista. E de Magritte, o genial pintor que não gostava que se falasse de surrealismo ou de simbolismo (hermético) na sua obra...como sou atrevida, falei, nalgum destes posts mais antigos. Mas agora teria de procurar e não é o momento.
Mas esta imagem do OVO, mais uma vez me faria caminhar para os significados do Ovo alquímico: o Todo e o Uno que o ovo em si contém!
Como diz o poeta, na última estrofe:
" Este poema vivido
não foge da memória"...

E não fugirá, pois a memória é o depósito imenso, oculto, em que se vive o Tempo e se recorta o Espaço.





Thursday, July 31, 2014



ALBERTO CAEIRO
Ler Caeiro é um desafio maior.

Porque Pessoa lhe deu o título de Mestre. 

Que ele se foi, foi sem querer, pois na verdade não queria ser nada, nem isto nem aquilo, quando muito, se possível, ser, simplesmente.
Viver e deixar viver. Não se demorar a pensar sobre isso.
Na tradução inglesa de Chris Daniels, se nos dermos so trabalho de a retroverter para o original, sobressai a limpidez das ideias, que de tão claras não permitem enganos.
Cito e depois retroverto:
I don't have ambitions or desires.
Being a poet isn't my ambition,
It's my way of being alone.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é minha ambição,
É o meu modo de estar sozinho.

Não fui ver ao original, pode haver aqui e ali, na retroversão que fiz algumas diferenças.
Mas a ideia centralé a seguinte: em primeiro lugar a consciência de que é poeta.
E em segundo lugar o sentimento consciente de que está sozinho.
Ser - poeta
Estar - sozinho.
Em poucas palavras a grande definição da essência e da existência, do SER noTEMPO, que demorou a Heidegger centenas de páginas e nem por isso o tornou mais humano (ao não querer receber Paul Celan, o poeta rescapado de um campo de concentração que o filósofo alemão talvez tivesse ignorado).
Neste primeiro poema de O Guardador de Rebanhos, Caeiro, que afirma logo nunca ter guardado rebanhos, o que oferece à nossa pastorícia mental é o conjunto das suas reflexões, das suas considerações filosofantes, e não ou nunca a imagem de rebanhos de ovelhas em prados felizes e distantes.Caeiro será Mestre?
Se os outros afirmam...
Teoriza a razão de ser poeta, o seu sentido ou ausência dele...e teoriza a Arte da sua escrita, de engenho  tão múltiplo e complexo:
When I sit and write poems
Or, walking along the roads or paths,
I write poems on the paper in my thinking,

Looking after my flock and seeing my ideas,
Or looking after my ideas and seeing my flock,
With a silly smile like when you don't understand what somebody's saying
But you want to pretend you do.

Quando me sento e escrevo poemas
Ou quando, a passear por estradas e caminhos
Escrevo poemas no papel no meu pensamento  
etc.
...
À primeira vista podia ser uma versão Bing, libérrima, e em nada nos espantaria!
Mas não há acasos na escrita de Caeiro , e peço desculpa, antecipando alguma diferença, pois não encontro o original e não posso agora perder mais tempo.
Não tendo cão de pastor, as minha ideias fogem.
Vou seguindo a excelente tradução inglesa.

Caeiro só é Mestre de si mesmo no exercício de ser um outro de Fernando Pessoa - mais um outro, mais velho, mais lido, e que na busca de estilo próprio encontra um espaço ainda vazio, o do campo, das suaves colinas por onde estende um olhar atento: não às ovelhas mas às ideias, sensações mais do que sentimentos que livremente lhe ocorrem.
Os sentimentos - que como bem afirma Ricardo Reis, o excelso grego, são apenas exageros a evitar, serão recuperados em toda a linha e até ao desregramento, por Álvaro de Campos, o despudorado engenheiro, que nunca ergueu casas, mas sim e sempre tempestades dentro de si mesmo.

Quanto ao Mestre de todos - estes e outros tantos, sempre que queria, ou se quisesse,
Fernando, agora, estudado o espólio, sempre designado por " o Ortónimo" quando talvez desejasse antes que o designassem por "o Oculto" continuou a brincadeira que tinha iniciado, na época do sonho de Orpheu, de escrever ora como uns ora como outros, sem esquecer António Mora, o filósofo repetidor, que ficou inédito por mais tempo.
Mesmo assim algumas coisas interessantes, para a teoria poética são de notar: a definição e a prática, ou tentativa dela, do Sensacionismo.
Será altura de referir Mário de Sá-Carneiro, o eterno e saudoso e sempre jovem poeta, que foi cumpridor à risca do programa que o Mestre Pessoa lhe impunha.
Mas ele morria longe, em Paris, enquanto Fernando se estirava pelas ruas de Lisboa, se desassossegava, se aborrecia, aguardando que alguém lhe sacudisse a Alma entorpecida.
Havia de ser o Mago Crowley, que rapidamente o desiludiu. Pessoa não era inglês, faltava-lhe apesar de tudo esse distanciamento necessário. O Mago foi-se, romântico e despenhado na Boca do Inferno, e o Mestre Pessoa cansou-se de brincadeiras.
Matou os alter-egos por volta de 1915 - talvez esta data também faça parte da brincadeira astrológica inicial - um horóscopo para cada um dos  eleitos - mas pouco importa.
Assumiu-se como ele próprio, um eu agora Maior, um Eu a tornar-se centrípeto, pequeno ponto denso que só uma leitura hermética poderia entender.
Agora Mestre, sim, conhecedor do Um e do Todo que só o afundamento total permitiriam.






Tuesday, July 22, 2014



O TAROT DE CROWLEY
(a Leonardo Chioda)

Baralha as cartas
corta
divide
escolhe:
sai a Sacerdotiza
com o seu fio
de luz

não é ponte
não é escada
não ilustra
não ajuda
não conduz

o Mago
ficou perdido
entre as cartas
baralhadas
postas ao lado
de parte
com o seu segredo
esquecido

tanta carta apaixonada....

(Julho 2014)

Monday, July 07, 2014

Um leitor perguntou se eu conhecia uma tradução completa em português da Aurora Consurgens de São Tomás de Aquino.
Não conheço, embora fosse tão interessante tornar acessível a um público mais alargado este belíssimo tratado de transformação espiritual.
É um apócrifo, segundo os eruditos, embora Carl Gustav Jung e Marie-Louise von Franz, que o estudou e traduziu para alemão não recusem a ideia de que possa ter sido, em leito de morte, uma visão de Tomás que ele descreve ao secretário que teria ao seu lado. 
Percebemos, ao ler, que há ali muita inspiração do Cântico dos Cânticos, e do amor, do êxtase que flui no discurso dos amantes.
Mas há algo mais, e aqui entra um entendimento superior da alquimia e da sua Pedra como pedra de perfeição, sendo que essa pedra é figurada como eterno Feminino, a "pedra ao rubro" que nalgumas iluminuras de tratados antigos vemos de facto como "mulher vermelha".
Um vermelho que não é diabólico, mas divinal.
Mas voltando à pergunta do leitor, lembrei-me de que tinha nos meus livros uma tradução castelhana - afinal quem lê português pode ler castelhano sem dificuldade - do Tratado de la Piedra Filosofal Y Tratado sobre el Arte de la Alquimia, de SANTO TOMÁS DE AQUINO, com uma bela introdução de Gustav Meyrink, autor ele mesmo adepto da filosofia oculta em muitas vertentes que expõe na sua obra romanesca (editorial SIRIO, 1987).
Meyrink foi um dos primeiros que li, quando na Alemanha pesquisava outrora materiais herméticos, ( já pouco reeditado numa Alemanha, que detestava à época Jung e todo o pensamento menos ortodoxo, só estando traduzido para francês). 
O segundo Tratado é dedicado "ao irmão Reinaldo" de quem se conta que tomou nota da Aurora Consurgens.

É Grillot de Givry quem em primeiro lugar traduz do latim e faz uma bela edição na ARCHÈ,1979, com prefácio e notas inéditas.
Abrindo o livrinho temo uma reprodução de um quadro que se encontra na Igreja de Notre Dame de Paris, de autoria de Antoine Nicolas Langres (c. 1648) e representando São Tomás na Fonte da Sabedoria.
Claro que o autor/ tradutor aponta que os tratados são ditos como atribuições, pois seria difícil, séculos atrás, tendo até alguns alquimistas sido perseguidos pela Igreja, aceitar sem mais que um santo e filósofo desta envergadura pudesse ter tido interesse em alguma vez estudar e ainda menos escrever sobre matérias "obscuras".Mas aí estão, a Aurora... que terá inspirado Jacob Boehme, o célebre teósofo alemão e estes tratados, cuja indicação deixo, em francês e castelhano, para quem deseje ler.
Acrescento, por ter sido tão importante na minha formação intelectual a obra de Etienne Perrot,
L'AURORE OCCIDENTALE (ed. La Fontaine de Pierre, 1982) que abre com a tradução integral do texto de Tomás de Aquino, seguido da série de seminários que deu em Paris, nos anos 60 e 70, e a que tive a honra de poder assistir (não a todos, mas à maior parte).
Alquimista Junguiano, com ele se pode aprender, nesta como noutras obras, o sentido "amplificado" das matérias alquímicas e simbólicas, bem como o sentido arquetípico dos sonhos recorrentes.
Boa sugestão seria traduzir para a nossa língua os seus títulos mais destacados.


Friday, June 13, 2014


Luís Tinoco
O Silêncio e as Pedras

Oiço primeiro o silêncio
a gravidade 
uma harmonia que voa
um sopro que se levanta 
e nos magoa
já anunciando as pedras
que são muitas,
(são de mágoa)
as pedras pelo caminho
com o seu grito suspenso
com o seu nome gravado

E de repente ocorrem-me
os versos de Celan,
o dos silêncios de cinza
a cinza que não se guarda
como pedras que se atiram
como pedras afogadas
no Sena de negras águas

Mas este silêncio é outro:
é de harmonia dourada
criatura que respira 
faz-se ouvir numa palavra
que é só nossa 
e nos aguarda


Monday, May 19, 2014


Iniciações

O PORTÃO
Esse portão que se abre
abre para o infinito:
não se pode ir de pulseira
nem de colar ou anel

Entra-se nú e descalço
de súbito
desprevenido


O PUNHAL
O punhal que rasga o peito
é uma adaga preciosa:
traz na lâmina, gravado,
um nome ainda imperfeito

um nome feito de sangue
um sangue contaminado
um nome que ainda espera
poder vir a ser chamado...

Monday, March 17, 2014

A Chave, da imagem ao arquétipo.
(relendo Joana Emídio Marques, Ritornelos)

Vem esta ideia a propósito de um livro de poemas, Ritornelos, de Joana Emídio Marques, publicado pela editora Abysmo neste ano de 2014. Perguntam-me às vezes: um livro é bom porquê? Depende de cada um, a opinião?É bom porque se vende muito, porque se fala dele na crítica?
Para mim um bom livro é aquele que abrimos, ainda que ao acaso, e nos prende por determinada frase lapidar, ideia, imagem, e nos desperta o desejo de ler mais. Ler mais e ler melhor, ou seja, ler o livro do princípio ao fim.
No caso de um livro de poemas algo mais me atrai, a dimensão do seu imaginário, seja ele mais contido (como na poesia oriental) deixando um espaço de emoção que será só nosso, ou também nosso, seja ele um imaginário mais discursivo e intencionalmente aberto, para que o leitor seja mais conduzido do que condutor, ao longo da leitura.
Ainda melhor será para mim o livro que depois de lido me faz voltar a ler o que já li, parando neste ou naquele verso que por qualquer razão me intriga mais.
Dou como exemplo (era o que faria, num dos meus seminários de outrora, de escrita criativa) o poema seguinte, em que uma determinada imagem, a das "chaves" se amplia à dimensão de arquétipo ( a saber, de imagem universal, transversal ao tempo e aos tempos):
38.
Mostra as mãos-chave
da porta do abismo
aí, onde o corpo
encontra a suspensão da noite imortal
e a carne desfaz-se aro
e o sangue desfaz-se aço
....
Dá-me essas mãos-chave
essas mãos-porta 
essas mãos-abismo!
Dá-me essas mãos
para que eu possa entrar-te.
(p.83)

Este poema está colocado entre dois outros, um de que a luz é elemento essencial de revelação e um outro em que o elemento é o fogo, sendo que nenhum deles permite que o poema se abra a um sentido "que acolha". Há o desejo, expresso, mas falta a chave, a mão condutora de que se fala no poema 38.
São muitas as significações simbólicas da Chave, ou das Chaves: São Pedro tem nas mãos as Chaves do Reino dos Céus, na tradição cristã, outros santos ou profetas têm igualmente a Chave (o Segredo) da beatitude eterna, em certos rituais de iniciação a Chave é a do Templo, nos contos infantis a Chave é do tesouro que se busca, uma Chave é também dada a Alice para abrir a porta que a levará ao País das Maravilhas, enfim, o poder da Chave é duplo, de abrir ou de fechar e daí a força de que se reveste este símbolo: liga ou desliga, actuando sobre as energias humanas e /ou divinas, ou, usando uma linguagem mais próxima da busca de realização de um Eu sempre em transformação, actualiza, na nossa psique consciente, as pulsões de um inconsciente que carece de ser reconhecido , entendido e aceite como existindo em si mesmo, por si mesmo, para si mesmo. No escudo papal podemos ver duas chaves, uma de ouro, outra de prata, o que do ponto de vista alquímico significa o acesso às fases últimas da Obra de Perfeição, sendo que prata e ouro são os metais que, a partir do chumbo da matéria negra, só os Iluminados conseguem obter. Basílio Valentino, célebre alquimista medieval, monge de Erfurt, tem um tratado que se intitula precisamente As Doze Chaves da Filosofia.
O seu "Paradigma da Grande Obra" tem como legenda, inscrita num círculo, "Visita o Interior da Terra e Rectificando Descobres". 
Rectificar é aqui Sublimar, como no solve et coagula alquímico dos sábios: dissolve e fixa; isto é, dissolvendo na água das emoções as energias físicas mais negras, fixa-as, coagulando, para que ao tornarem-se visíveis, apreensíveis também pela Razão, fortaleçam o Eu ( o Em-Si) e a Consciência mudada, sublimada, tornada universal.
As mãos-chave de que se fala no poema, pedindo que se mostrem, que se deixem ver, são mãos excessivamente carnais: do corpo, da carne, do sangue; as imagens fortes são da noite, do abismo, e do apelo a um "tempo suspenso" em que os opostos "horror" e "harmonia" se reconciliem.
É este apelo à intemporalidade que afinal nos dá a Chave da leitura simbólica do poema.
Suspendido o tempo, segue-se a "suspensão da matéria" que é a existência limitada. Abrem-se, com ambas as mãos, os portões desejados. A partir daí, o infinito.

Thursday, February 13, 2014

La Dame à La Licorne
Para A Teresa Horta e sua bela Dama

Quando visitei o museu de Cluny, em Paris, com a bela colecção das tapeçarias da Dama e o Unicórnio, sempre me intrigou a sexta, A Mon Seul Désir, que ora traduzo por "ao meu único desejo" ora por "só ao meu desejo".
Ao meu único desejo: e qual é ele?
Satisfeitos os cinco sentidos, do gosto, do tacto, do olfacto, da visão só talvez um desejo imaterial a que se faça apelo poderá ser esse que falta.
Só ao meu desejo: seduzido o unicórnio, que simboliza a pureza que se conservou ou a que se aspira, esse é então o desejo, o úinco e assim é celebrado, nesse lema que é de brasão, tanto como de coração.
Há algo de oriental, nestas tapeçarias: uma tenda aberta num deserto ou num oásis, num jardim de alma, e cá dora, exposta mas com reserva natural, a Dama com a sua aia.
Rodeiam-na alguns animais também eles emblemáticos, o cão, companheiro fiel dos alquimistas, em tantas gravuras conhecidas; o macaco, figuração de Hermes, o deus Thoth dos egípcios (mítico  pai da alquimia), para não falar do leão e do unicórnio, os animais que ladeiam a Dama, como que em protecção.
É na sexta tapeçaria que ela tem diante de si um cofre, que a aia segura, e de mão estendida parece estar a guardar a jóia que usou nas outras; ou estará antes a retirar alguma mais bela, diferente?
Não poderemos saber.
Mas a legenda inscrita ao alto da tenda está ali bem à vista para que seja lida e entendidada. De que modo? Aconselhamento? Aceitação? Pura referência de identificação, como num Brasão de Armas?
A Dama que ali se encontra, em tenda tão ornamentada, não poderá simbolizar a Pedra Filosofal, a perfeição da Pedra?
Teríamos então de permanecer na língua original, sem traduzir, e ver o leão como emblema masculino, solar - que assim é na simbólica alquímica- e na licorna, mantendo o feminino do francês, la licorne, o emblema lunar e feminino, ambos compondo então o par primordial da Obra, em Conjunção.
A narrativa expressa nas peças seria então o caminho do material (os sentidos) para o espiritual (a pomba que voa sobre a tenda)  e esse seria o desejo, o único, o perfeito.
Carl Gustav Jung, em Psicologia e Alquimia (Psychologie und Alachemie, 1952, " Das Einhornmotiv als Paradigma, pp.585-634) estudou com cuidado as origens do mito, ou da lenda, da Licorna, que terá chegado ao ocidente por via da Índia, ou do Egipto antigo em que se encontram referências a esses animais estranhos, munidos de um único chifre a que se atribuíam poderes mágicos, de cura ou de veneno mortal, conforme os casos.
Aponta também a licorna, ou se se preferir o unicórnio, como um dos motivos fulcrais da produção do imaginário alquímico, transitando desde os gregos, como Zosimo, no século III da nossa era, até aos adeptos que na Idade-Média já o cristianizam como emblema de pureza, nos vários tratados conhecidos.
Para melhor se acompanhar o estudo de Jung temos de regressar ao significado do mercúrio simbólico, no processo de elaboração da Obra que conduzirá à Pedra Filosofal - emblema da absoluta perfeição, e também ela, posteriormente, identificada ora a Cristo ora à Virgem Maria.
Mercúrio, neste contexto, é o elemento da mutação, da metamorfose, que surge durante o trabalho sobre os outros princípios, que são o enxofre e o sal. Assim é desde a tradição gnóstico-pagã e cristã já referida e são estas as qualidades de que se reveste a licorna, descrita como animal de fábula, podendo surgir como cavalo, burro, peixe, dragão, escaravelho, etc. (Jung, p.587). Essa capacidade de mutação é o que distingue o unicórnio, e deste modo já o veremos, nas Bodas Químicas de Christian Rosencreutz, 1459, narradas por J.V.Andreae.
Sabe-se que o autor verdadeiro é de facto Valentin Andreae, teósofo alemão do século XVII, e é deste século, de 1616, e não do século XV que é datada a obra.
Para todos os efeitos o que se nota é que é conhecio na tradição o motivo emblemático da licorna ou do unicórnio, como se queira chamar.
Pessoalmente, para os efeitos das considerações que faço, e também para o caso do livro de Teresa Horta, que irei enquadrar adiante, prefiro o feminino, como já escrevi no post anterior ( em  literatura e alquimia).
Nas Bodas Químicas surge uma licorna, branca como a neve, que faz uma reverência perante um leão. Segundo Jung, "licorna e leão são ambos símbolos do mercúrio". Contudo, mais adiante na narrativa, a licorna transforma-se em "pomba branca", outra figuração do mercúrio, volátil, devido ao seu vôo. que também permite que se identifique ao Espírito Santo, nas tradição cristã.
O mercúiro volátil é comparado, em alguns tratados, como por exemplo o de Lambsprinck, a pelo menos uma dezena de animais,  ilustrando a obra com essas gravuras belíssimas ( Lambsprinck, La Pierre Philosophale, ed. bilingue, latim -francês, Archè Milano, 1971). Nas antologias, ou recolhas, como o Theatrum Chemicum, de 1602, a natureza mutável de mercúrio é apontada, junto com a do leão, a águia e o dragão, como submetida ao ouro superior.
São muitos os exemplos que se poderiam buscar.
Importante é o sinal dado: mudança e submissão a uma ordem perfeita, seja natural seja divina.
No tratado apócrifo atribuído a São Tomás de Aquino, citado por Jung (p.590), o Tractatus qui dicitur Thomae Aquinatis de Alchimia (ms. de 1520) vemos então a licorna a ser amansada, que é como quem diz, recebida por uma virgem vestida de negro.
Poder-se-ia jogar com os opostos negro e branco, a nigredo e a albedo, no decurso da Obra, mas basta que se tenha em mente que estamos perante uma transformação, que tocará tanto a quem a permite, ou a concede, ( a Dama) como a quem a sofre, ou precipita, aceitando (a licorna).
Da cristianização do motivo os exemplos são tantos que não se exige continuar.
Jung percorre o resto da memória do mundo, com os textos antigos dos hindús, dos chineses, dos judeus, dos persas, dos primitivos cristãos em todos apontando que a energia animal está bem presente, e propicia o nascimento de deuses e heróis - que operam as mudanças, como em mágicos ritos de passagem, em cada memória, cada civilização nascente.
Mas o que eu suponho sentir, nas tapeçarias da Dame à la Licorne é algo de mais antigo (dir-se-á, é próprio das imagens arquetípicas, guardadas no inconsciente), a saber que há ali marcas oriundas de um oriente longínquo, talvez da alma, sim mas talvez igualmente de um imaginário que na Idade-Média circulava por força das guerras contra o Islão, dos tesouros do Templo, da sabedoria que os Cavaleiros Templários traziam consigo de Jerusalém, a cidade perfeita.
Na haveria ali, na figura tranquila de uma mulher na sua tenda, sentada com a sua aia, algo do eco profundo dos Cânticos de Salomão à Amada perfeita, a Sulamith, uma alusão a novo paradigma, o da reconciliação de opostos, Leão e Licorna, ambos triunfantes, porque submetidos a uma Ordem maior, erguendo bem alto os seus belos estandartes? E sendo assim, tanto faz, para a nossa relação com este mito, que este mercúrio alquímico mutável seja licorna ou unicórnio, pois que em ambos os casos o que se figura ali é uma das nossas energias (pulsões) do inconsciente.
Deixo só a pergunta.
Esta tapeçarias ocuparam o pensamento de uma grande poeta, Teresa Horta, que em finais de 2013 publicou os seus belos poemas, com um profundo sentido do mistério que as rodeava.
Teresa intitula a sua obra A Dama e o Unicórnio, optando pelo lado masculino da figura, e fazendo da Dama o centro fulcral da sua meditação.
E como poeta que é, e numa relação intuitiva com todo o potencial simbólico que o unicórnio, como se viu, transporta consigo, Teresa fecha o seu ciclo, tão misterioso quase como o das tapeçarias, com uma interrogação, que as interpela, mas nos interpela, sobretudo a nós todos:
"O que faço da minha eternidade"? pergunta abrindo nova estrofe, uma e outra vez, procurando resposta, sempre incompleta (como a vida) até ao ponto final. Porque tudo é mudança, mercúrio está ali, sob uma forma que podia ser outra, mas não, é mesmo aquela, e é aquela que, ao escolher-nos, nos obriga também a escolher ( a dar resposta...).

O que faço da minha eternidade?
Pergunta de novo a si mesma.

Enquanto impassível nos fita, imobilizada
na trama armadilhada das tapeçarias
com aquele travo mudo, com aquele
brado surdo, com aquele olhar sem fundo

Numa fala sem mundo

Nós somos aquele espelho que ela estende à licorna, o nosso olhar é cego, mas na nossa mudez (e na nossa nudez, já despidos do mundo) iremos depois mais longe, iremos depois mais fundo - numa fala sem mundo - quando, como se diz no célebre Mutus Liber nos forem dados "olhos para partir".

Wednesday, January 29, 2014

Lu Tsou
Le Secret de la Fleur d'Or
tradução francesa de Liou Tse Houa

De um amigo a quem perguntei se conhecia esta obra recebi como resposta que tinha lido, mas sem perceber nada.
Nem tudo é para perceber, logo à primeira, nas obras herméticas, ainda menos chinesas.
Na nossa cultura ocidental temos algumas flores igualmente misteriosas e inacessíveis: penso na Flôr Azul, de Novalis, obra que ele até deixou por acabar!
Essas flores misteriosas que simbolizam a perfeição inalcansável, seduzem, mas não se deixam colher.
O que fica então que nos leve a ler e a reler?
Os passos do caminho...
Não é por acaso que neste mesmo volume o tradutor acrescenta outro tratado: o Livre de la Conscience et de la Vie, o livro da Consciência e da Vida.
Porque em ambos é da consciência e da vida que se trata. A flôr da perfeição é um horizonte, não chega a ser real. Mas real é a vida que vivemos, e acima de tudo o modo, a consciência com que a vivemos.
Consciência da Vida, a nossa e a da pulsação do universo em geral, do mundo que nos rodeia, e em que tudo está "ligado" é uma forma de sabedoria.
A Rosa, seja dos Rosa-Cruz, dos alquimistas antigos (como Basile Valentin) ou dos poetas - lembremos a rosa de Rilke, ou a de Eugénio de Andrade, são sempre mais do que aparentam.
O mesmo se dá aqui, neste tratado chinês.
Foi traduzido para alemão por Richard Wilhelm, em 1929, e desde aí lido e estudado pelos curiosos destas matérias um pouco por todo o mundo.
A busca da flôr de ouro, como a da flôr azul dos românticos, parece-se com a busca do Graal, outro emblema de iniciação que tem atravessado os séculos. Será a busca de um Todo que abarca o eu e o mundo, mas que exige a entrega total do eu a esse Todo que se ignora o que seja. Viagem que atemoriza? Sem dúvida, pois dela não sabemos se terá regresso, e ainda menos se será bem sucedida.
Ao abordar estas matérias, precisamo talvez de ter conhecido outras: o Bardo Todol, por exemplo,  Livro Tibetano dos Mortos, - que alerta para eventuais perigos, projecções do nosso próprio imaginário irracional, povoado de génios e demónios aterradores, e que teremos de entender, para afastar. Aqui se fala, por fim, da Clara Luz à saída dos abismos da viagem, a Luz do Entendimento desejado, e que só no fim da vida é concedido ( ou em vida, só a alguns iluminados).
Esta Luz é descrita, no Livro dos Mortos, como "Clara Luz do Vazio", conceito que em Jacob Boehme, teósofo alemão do século XVII, por exemplo, é melhor definido com Abismo, o negro abismo de onde emana, com a energia do Verbo, toda a luz, em simultâneo com a matéria densa da criação. A Obra consistirá, para Boehme, em sublimar essa matéria densa, até que toda ela seja de novo luz...
O mesmo discurso encontramos nós nos alquimistas ocidentais, que chamam à sua Pedra Filosofal "flôr do sol", ou flôr de ouro"entre tantas outras designações igualmente místicas e simbólicas, que podemos encontrar no célebre Dictionnaire mytho-hermétique de Dom Pernety, de 1758.
Referi que há obras que deviam acompanhar a nossa leitura deste tratado de Lu Tsou. Uma delas é sem dúvida o I Ching, Livro das Mutações, que foi igualmente traduzido para alemão por Richard Wilhelm e que inspirou Carl Gustav Jung, que o estudou durante toda a sua vida, como nos conta na sua Aubiografia. Era o seu livro de cabeceira. E percebe-se, pois não se esgotam nunca as imagens e juizos, carregados de mistério e de sabedoria.
O segredo é aparentemente simples: saber adaptar-se a todas as transformações, em cada um dos momentos da vida. Lição que serve tanto para os Imperadores da antiga China, a quem o I Ching era dado como modelo, como para o homem normal, na sua vida.
Na transformação reside a eternidade: "a transformação é o imutável", e para o homem durar "é deixar passar" (Lu Tsou, p.18).
Em regra a lição surge logo de início:
"O que existe por si mesmo é chamado a Via. A Via não tem nome nem forma.É a essência única, o espírito original único.Não se pode ver nem a essencia nem a via. Estão contidas na luz do céu; não se pode ver a luz do céu; está contida no dois olhos" (p.45).

Quem conheça o taoísmo saberá que o nome do Tao é precisamente a Via, e que está é o Uno, aquilo que nada tem acima de si mesmo, e é por definição inatingível.
A flôr de ouro é a luz, essa mesma que não pode ser vista, pois está contida, como luz do céu, nos nossos olhos...
Assim, do céu à terra (dos nossos olhos) se entra no jogo dos opostos que são a chave de todos os enigmas e de toda a energia transformatória.
Para que não restem dúvidas, Lu Tsou confirma:"Toma-se a flôr de ouro como símbolo"(p46).
E a partir daqui é deste modo que a leitura deve ser prosseguida, num alargamento da cadeia do Ser, do homem ao mundo, do mundo ao céu e ao universo inteiro.