Monday, October 22, 2007

Shekura


Chegados ao fim do romance de Pamuk ( descoberto o assassino misterioso, ultrapassadas as discussões sobre a arte e seu melhor serviço, seguindo a tradição antiga ou abrindo portas às inovações trazidas do Ocidente ) vemos como foi importante a história de amor que enredara Black e Shekura nas teias do desejo e da hesitação, com um casamento formal mas não consumado.
Resolvidas as várias questões prévias que alimentavam o enredo, é de novo Shekura que surge como figura mais forte, carregada do simbolismo que é próprio do Eterno Feminino : mulher, amante, mãe, assim é ela descrita no capítulo 59, o último, que tem o seu nome.
Finalmente, como a Sulamita, se entrega ela aos amores do seu amado, que lhe corresponde inteiramente. Em pormenor são descritas as longas tardes de paixão.
Contudo ao envelhecer é como Mãe que deseja ser vista: mulher com o filho mais novo ao peito, a quem dá de mamar, e o outro a seu lado, como compete a um de maior idade. Neste seu desejo, que seria de um retrato que não virá a ter, se projecta a sua dimensão mais real (e que só a arte de um retrato poderia consagrar) de Femino Eterno, de força primordial da criação.
A mulher dá a vida, e é a consciência da vida que confere eternidade ao momento que passa.

Sunday, October 14, 2007

Pamuk e o corpo da Sulamita


Comecemos por ler o Quinto poema do Cântico dos Cânticos na bela tradução de José Tolentino de Mendonça para situar a simbólica do corpo da Sulamita tal como surge nesse texto e o tratamento que Pamuk dará ao corpo da amada, no seu romance, situado na Turquia antiga, do século XVI .
Cântico dos Cânticos,
Quinto poema, VII

"...quão formosos são teus pés nas sandálias
filha de príncipe
as curvas dos teus quadris parecem colares
obra das mãos de um artista
teu umbigo uma taça redonda
que o vinho nunca falte
teu ventre monte de trigo
cercado de lírios
teus seios dois filhotes
gémeos de gazela
teu pescoço torre de marfim
teus olhos as piscinas de Hesbon
junto às portas de Bat-Rabim
teu nariz como a torre do Líbano
voltada para Damasco
levanta-se tua cabeça como o Carmelo
e teus cabelos côr de púrpura
um rei trazem cativo dos seus laços


como és bela como és desejável
amor em delícias
semelhante à palmeira é o teu porte
cachos de uvas são teus seios
Pensei vou subir à palmeira
vou colher dos seus frutos
sejam teus seios cachos de uvas
o hálito da tua boca perfume de maçãs
tua boca guarda o melhor vinho
que na minha se derrama
molhando-me lábios e dentes".

Luciana Stegagno Pichio observa num dos seus ensaios como as descrições poéticas da mulher, nos Cancioneiros medievais da lírica de Amigo e de Amor, raramente se demoram deste modo na descrição do corpo da amada. E quando o fazem o corpo é visto de cima para baixo, com destaque para a cabeça e o peito em alusão discreta (olhos, boca, seios) e só muito raramente repetindo este modelo do Cântico dos Cânticos, de grande sensualidade : permite ver o Amado aos pés da sua rainha, acariciando, à medida que fala, o corpo que venera dos pés à cabeça, como adorando nele a manifestação da própria vida, da Árvore da Vida.
As metáforas, em que prevalecem o vegetal e o animal, sublinham bem o que há de instintual neste desejo, neste impulso que transforma o texto num dos mais lidos e comentados ao longo dos tempos, ora como emblema da paixão de Cristo pela sua Igreja, ora como delírio místico dos santos que nele encontram a perfeição da alma na união ao seu Criador, ora a perfeição da Pedra alquímica ( como é o caso da Aurora Consurgens, escrito atribuído a S.Tomás de Aquino e estudado por Jung e M.L.von Franz).
A palmeira a que o amado sobe, na suprema entrega ao corpo da Sulamita , surge algumas vezes nas ilustrações dos tratados medievais de alquimia. E neles representa a Árvore da Vida. Salomão e a Rainha do Sabá - Conhecimento e Vida-prefiguram assim, neste encontro ao mesmo tempo sublime e sensual, a união de opostos que de algum modo regenera e redime o crime da Queda no primitivo Éden.
O primerio par, de Adão e Eva, é sublimado neste segundo par, de Salomão e Sulamita. E se no Génesis o conhecimento do corpo era tabú e foi "pecado", no Cântico dos Cânticos é o conhecimento do corpo que dá a redenção, amor e desejo fundidos num só só acto de entrega.

Black, no romance de Pamuk ( de que já saiu a tradução portuguesa na editora Presença) encontra-se com Shekura, a amada, sob o signo de uma romãzeira, e mais tarde, já convencido de que haverá correspondência ao seu amor, pede um encontro que seria mais definitivo.
O encontro dá-se na casa do "judeu enforcado", entra-se nela por um jardim vazio, "cheirando a morte", descrição bem diferente do perfumado jardim da Sulamita.
Shekure tapa discretamente o rosto com o seu véu, e Black ao chegar, na quietude da casa pede-lhe que retire o véu, para a pode ver melhor. Esperar muitos anos por um tal momento. Black demora-se no rosto e nos olhos da amada, que é agora uma mulher amadurecida pelo casamento e pela maternidade. Abraçam-se, "sem sentir culpa", nas palavras de Shekura. Beijaram-se e o mundo pareceu banhado de uma luz suave, irradiação do próprio sentimento de amor: "como se o mundo inteiro mergulhasse numa luz divina".
Chegamos então à diferença do que acontece com a Sulamita e o que vai acontecer aqui, neste capítulo 26:
Black acaricia os seios de Shekura, mas não os beija, como ela desejava, demasiado atrapalhado para isso, e tomado de desejos mais rápidos e fortes: puxa-a contra si e fá-la sentir a " sua masculinidade endurecida", o que de início não a inquietou. Mas o que se segue corre mal, Shekura não se dispõe a satisfazer todos os desejos do amado, e eu poupo o leitor aos pormenores.
Foi como se o fantasma do judeu enforcado tivesse amaldiçoado aquele lugar, não permitindo mais do que uma directa e algo grosseira exposição do desejo de Black pela sua Shekura.
Haverá aqui algum oculto jogo de palavras com a Shekina, o rosto feminino de Deus, na tradição da Kabala? A Shekina que, afastada do Éden, perdida no mundo da materialidade, se lamenta em busca da unidade perdida?

Da perfeição dos pés da Sulamita, ao seu pescoço torneado, à cabeça de altivo porte construiu o rei-poeta um edifício, uma torre de grande nobreza, a do corpo que suporta, com a dádiva da vida, o monumento da Criação.

Quanto a Shekura:
O encontro com Black não projecta idêntica energia (uma romãzeira invernosa e melancólica, uma casa amaldiçoada) mas somos levados contudo a uma certa indulgência perante o comportamento que chocou de início a amada e Black tenta ele próprio compreender melhor; subtil artista, capaz de esperar longos anos por Shekura e levado num impulso a tratá-la como uma prostituta, a saber, nas suas palavras " como tendo perdido todo o sentido do decoro e autocontrole por ter dormido com todo o género de mulherio barato, da Pérsia a Bagdad".
Ao longo do capítulo 27 alguma coisa se corrije.
E É então Shekura que, invertendo o processo da descrição de um corpo de amada, pergunta a Black, já recomposto:
Ainda sou bonita? responde depressa.
Ele vai então dizendo o que ela pede (repare-se, é no dizer, não no fazer, que reside o maior encantamento; a sugestão da palavra, tão forte quanto a da imagem, no caso da pintura).
E a minha roupa?
ele diz-lhe.
Cheiro bem ?
etc.
Foi tão bom o noso abraço de há bocado, conclui então ela. E foge à nova tentativa de Black de recomeçar os seus jogos de amor.
Fora delineado, neste final de capítulo, o denominado "jogo de xadrez do amor", no dizer de Pamuk.