Tuesday, October 21, 2008

Os Mochos e as Marcas Alquímicas em Bosch e Magritte




Será útil, para esta nossa apreciação, considerar a Metáfora Viva, no sentido em que Paul Ricoeur a entendeu (La Métaphore Vive, ed. du Seuil, 1975).
Aqui, nesta aproximação alquímica de dois grandes pintores e suas metáforas, não se tratará nem da forma da metáfora, nem do seu sentido, mas da sua referência, ou seja da realidade exterior à linguagem.Se é certo que a metáfora tem o poder de redescobrir e re-descrever a realidade não é menos certo que a sua proposta  é aberta, multidisciplinar, podendo ir da poesia à filosofia, passando por outras artes, como será o caso.
O mocho, na Grécia antiga, era a figuração animal de Atropos, a Parca encarregue de cortar o fio do destino.Também no antigo Egipto o consideravam, por ser animal nocturno, uma representação da morte. Como animal mítico é um dos mais antigos símbolos da tradição chinesa, ligado ainda ao trabalho do ferreiro no fogo em que forjava a sua obra.Em resumo, é nefasta, para a maioria dos povos, a simbólica desta ave.É da Idade-Média que se recebe, nos tratados de alquimia e em alguma pintura, como a de Bosch, a herança e a memória da simbólica lunar desta ave, que tanto pode ser desejada como temida. Pois a  dada altura, na tradição popular em França, surgem os contos do mocho-sábio, em que a maturidade dos seus discursos e exemplos o tornam numa figura de cariz positivo.Assim veremos que a marca do negro é a marca do início, na alquimia, da obra de transformação. E no Bestiário alquímico pode surgir o corvo negro, mas podem surgir corujas ou mochos com idêntica função: de indicar um caminho que será de recuperação de uma totalidade perdida, outrora, na Queda, mas desejada agora, e talvez ao alcance de quem seguir as boas práticas herméticas...
A alquimia tem um corpo: a natureza ; e uma alma: o andrógino mítico.
O que se pretende no exercício desta Arte é recuperar esse Todo, essa Unidade, de que se guarda uma memória mítica, inconsciente.O mocho que Bosch representou está a coroar um ser oculto, de quatro braços e quatro pernas, surgindo de uma flôr ou de um fruto vermelho.Clara figuração do Andrógino hermético, perdido algures no Éden onde tudo se perdeu com o primeiro pacto, feito pela Serpente com o par primordial, Adão e Eva, criados à imagem e semelhança de Deus.No quadro de Bosch é pelo sexo que o par aparenta estar ligado: o que faz todo o sentido, pois foi pela descoberta do sexo e da sua diferença, tornando-os em um e outro, quando antes eram um Único, que a Queda primordial se verificará, com o castigo e a expulsão do jardim do Éden.A figuração de Bosch é ambígua. Está nesse mocho a punição ou o prémio? Metáfora da morte ou da sabedoria? (Saber que se foi uno, que se foi unido, como no mito do Banquete de Platão). Realça-se o castigo ou aponta-se a possível redenção, que virá do aprofundamento do saber?
Não temos de concluir, apenas de reflectir sobre as possibilidades que se abrem. No Jardim das Delícias ( c. 1510) o pormenor do mocho situa-se à direita do observador, na metade inferior do quadro. É preciso descobri-lo, ao contrário de outros pormenores que são mais evidentes, situados no centro da tela, forçando uma determinada ordem do olhar a partir deles.No painel central vemos um globo atravessado por uma torre de 3 pilares ( os 3 princípios, enxofre, mercúrio, sal?); a torre tem em redor 5 flores em forma de vaso alquímico (athanor) em cujas folhas pousam pássaros, emblemas da volatilização ou sublimação aguardada; o topo da coluna é também ele uma flôr-vaso, ou vaso-flôr, com um pico que aponta para o céu. O mito de Babel está aqui apontado, como supremo perigo de desordem fatal, a ser evitada, ultrapassada por sabedoria superior, que passa pela humildade e não pela arrogância do que se julga poder ser, ou fazer.
Ao adepto é exigida humildade.O globo está semi- afundado numa água  fervlhando de criaturas inquietantes, multiformes, multicoloridas, incluindo formas humanas em Conjunção, mais explícitas do que nas gravuras alquímicas conhecidas. Há uma atmosfera malsã em toda a cena, apesar da imagética alquímica utilizada. Bosch descreve aqui o Jardim do Éden como o grande laboratório de Deus, com a sua obra múltipla de expansão e dispersão marcada mais pelo sofrimento e pela tortura do que pela transformação luminosa desejada. É o Jardim de que se cai, terreal,  e não o Jardim da salvação futura, celestial. 
Cornelius Agrippa de Nettesheim fala de uma "melancolia imaginativa, racional e mental", considerando esta última como a mais importante.A alquimia bebe nestas três formas havendo, conforme a inclinação de cada adepto (artista) a evidência maior de uma ou outra. De Durer se diz que exprimiu a melancolia "imaginativa", mais do que as outras. Também ele era conhecedor da alquimia.Este imaginário, esta metaforização, continua pelos tempos fora, e é Magritte, nos tempos modernos, um dos exemplos mais interessantes que podemos encontrar. Com os seus mochos, claro, entre outras coisas.
O poder do sono e do sonho é algo de bem conhecido e trabalhado pelos pintores Surrealistas e Metafísicos. Na obra de Magritte há muita magia e sedução, desta que esses movimentos desenvolveram com as suas práticas artísticas. Magritte, ainda por cima, inspira-se por vezes em imagens-ideias que podemos, antes dele, encontrar em Bosch: é o caso dos desenhos a pena do homem-árvore, por exemplo e outros, como o intitulado "O campo tem olhos, a floresta tem orelhas" . Busque-se em Magritte e encontrar-se-ão variantes.
Mas queremos os mochos.
O quadro a que me vou referir, Les Compagnons de la Peur é de 1942 e já diz muito no título: medo da morte, em plena guerra, com a sua mão de treva espalhada pelo mundo.Neste óleo podemos ver grandes mochos em pose hierática, entre arbustos com que se confundem pela côr verde acastanhada; são formas emanadas da natureza, como que nascidas dela, de modo aterrador. Pois todo o mal vem também da natureza.É importante o número dos mochos: 5. Magritte, companheiro de escola dos surrealistas conheceria bem a simbólica dos números.A soma é o 5 da quinta-essência, da perfeição, mas para os harmonizar ou os pequenos crescem ou os grandes diminuem...haverá, é certo, como em tudo na vida, um tempo para crescer, outro para diminuir.
Magritte, como Breton e outros da mesma Escola, acreditava nos mecanismos do automatismo criador do inconsciente. Nos Écrits complets de René Magritte, André Blavier sustenta que, embora o artista o negasse, há marcas do exercício do cadavre-exquis nas suas obras.Magritte afirmava gostar de "criar o desconhecido com coisas conhecidas", algo que fazem todos os grandes, como ele, pois o conhecido é a base de que se parte. Como metaforizar, criando, aquilo de que nunca houve marca, anterior ou recente? A definição que o artista nos dá de surrealismo é importante para o nosso ponto de vista, da ligação da sua obra ao imaginário tradicional alquímico:
" O Surrealismo é o momento em que já não há contraste algum entre o alto e o baixo, entre o branco e o negro" (La Ligne de Vie, 1955). É pois o momento da plena fusão, da plena união de consciência e inconsciente, que os alquimistas definiam como coniunctio, conjunção de opostos, que Jung e Marie-Louise von Franz estudarão no célebre volume do Mysterium Coniunctionis (Rascher 1956), Bíblia dos estudiosos.
A fusão dos opostos apaga o eu, o tu, o outro, que pode ser a treva do centro, pois na indiferenciação que se verifica o que passa a existir é a relação,  a harmonização das diferenças. 

Wednesday, October 15, 2008

Herberto Helder



Citei, do seu último livro, A Faca Não Corta  o Fogo, um dos poemas mais alquímicos que tenho lido, sabendo embora que na obra de Herberto tudo é transformação, tudo é trabalho oculto, a terra, nele, é a matéria negra que só ele pode tornar mais luminosa, a ponto de ofuscar. A sua luz ofusca, e o próprio Verbo de Deus súbito se recolhe e organiza em outras geometrias: de vida? de morte? A cada qual segundo a sua leitura, Herberto apenas levanta o espelho que nos assustará, de tão real a imagem que reflecte.
Na sua alta esfera há uma música própria, mas saberemos ouvi-la, saberemos adivinhar as estrelas da bela noite que já Shakespeare cantara pela boca de Jessica e Lorenzo? 
(In such a night as this...) as estrelas e o seu ritmo, a sua perpétua devoração.