Wednesday, November 07, 2007

Jardins


O Jardim do Éden é um jardim natural, resultando do primeiro gesto criador.Tem os quatro elementos, o ar, a água, a terra,o fogo (dos luminários do céu) ; todas as espécies animais próprias de cada elemento; e passeando pelo jardim, Yahvé, o seu criador, e o primeiro casal, Adão e Eva.
Na descrição da Bíblia nota-se a abundância: é um jardim que alimenta, colhem-se frutos de todas as suas árvores, à excepção de duas: viremos a saber que são a do Conhecimento do Bem e do Mal, e a da Vida (eterna).
Esconde-se no jardim a Serpente, que induzirá ao pecado (a quebra do tabú) e levará à Queda com as suas consequências: expulsão do Jardim, consciência do limite imposto à condição humana.
Esta primeira imagem do Jardim emana de uma sociedade antiga, rural, onde os valores são os da natureza e sua fertilidade garantida por intervenção superior. Expulsos do Jardim, Adão e Eva comerão abrolhos, e já não frutos variados e sumarentos, terão de arar, semear, colher com esforço tudo aquilo de que necessitem. Esta segunda imagem é já a da vivência real do trabalho da terra, numa sociedade que tem de garantir a sua subsistência; seguir-se-ão depois, com o espaço tribal mais organizado as referencias à caça e à pesca, ou ao pastoreio (Abel era pastor, manso e sedentário, Cain era caçador, cioso do que lhe dissesse respeito; fundou a primeira cidade, deixando assim perceber que na fundação das cidades preexistem Mal e Bem, são essas as duas realidades primordiais).
É interessante verificar o contraste deste Jardim com o Jardim dos Deuses que se encontra em Gilgamesh, fechando o capítulo IX:

"À sua frente surgiu o jardim dos deuses,
com árvores de pedras preciosas de todas as cores,
maravilha de se ver.
Havia árvores de rubis, árvores com flores
de lapis-lazuli, árvores com cachos de corais gigantes
como se fossem tâmaras. Por todo o lado,
brilhando em todos os ramos, havia jóias enormes:
esmeraldas, safiras, hematites,cornalinas, pérolas.
Gilgamesh contemplava tudo deslumbrado."

Este é o Jardim que um rei-herói imagina, como tesouro da sua cidade e do seu palácio; tudo ali se contempla, nada alimenta, como no Jardim natural.
Haverá outra maneira de ver: o Jardim do Éden é um jardim "terreal", o Jardim descrito no Gilgamesh é um Jardim "celestial", depurado de toda a matéria e sua contaminação.
Contudo é significativo que já neste primeiro texto fundador, aventura do crescimento e amadurecimento de alma de um herói (definido como dois terços divino e um terço humano) o bom regresso, ainda que perdida a planta da imortalidade, seja à cidade de Uruk, a bela, a muralhada, com o seu palácio e o seu templo de iniciação, fértil de terra arada e abundantes pomares - tudo distribuído em medida e proporção.

Agrada-me especialmente, neste percurso de mitos fundadores, trazer aqui a Jerusalém Messiânica dos cristãos.
Também ela protegida por muralhas de jaspe, sendo ela feita de ouro puro, límpido como um cristal (predomina a sedução oriental da jóia e do ornamento ostensivo). Mas "humanizada" de modo diferente: é ao mesmo tempo espaço divino e humano, recupera o primitivo Éden de que se foi banido, mas devolve, com a chegada do fim dos tempos e a salvação derradeira oferecida por Cristo à sua Igreja, devolve, dizia eu, a árvore da vida, e a vida eterna, junto do rio que corre atravessando o espaço mítico final.
O conhecimento trouxe a experiência e a dôr de uma divisão que parecia irreparável. A vida trará a união, a reconciliação de eus com o se povo, a espécie humana, redimida por Cristo, ele mesmo feito carne.

Mas vejamos de que modo é descrita, no Apocalipse, a Jerusalém Futura.

"Os alicerces da muralha da cidade são recamados de todo o tipo de pedras preciosas: o primeiro alicerce é de jaspe, o segundo de safira, o terceiro de calcedónia, o quarto de esmeralda, o quinto de sardónica, o sexto de cornalina, o sétimo de crisólito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo de crisópraso, o décimo-primeiro de jacinto, o décimo segundo de ametista.As doze portas são doze pérolas, cada uma das portas feita de uma só pérola. A praça da cidade é de ouro puro como um vidro transparente.Não vi nenhum templo nela, pois o seu templo é o Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro" (21)
Com esta frase, "não vi nenhum templo nela"...se marca a primeira grande diferença em relação à cidade pagã, primordial.
Não há templo, pois não haverá mais espaço de oferendas aos deuses naturais, da terra e da vegetação.
A consciência da espécie afinou-se, a vivência religiosa é outra: Deus é um ser supremo que materializou no filho, o Cordeiro simbólico, ao mesmo tempo o sacrifício (a devoção ) e a redenção esperada.

De seguida o Anjo que fazia estas revelações a João mostra "um rio de água da vida, brilhante como cristal, que saía do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça, DE UM LADO E DE OUTRO DO RIO HÁ ÁRVORES DA VIDA QUE FRUTIFICAM DOZE VEZES, DANDO FRUTO A CADA MÊS".

Embora descrita, também ela, como cidade mineral, de metais e pedrarias, esta é a cidade da Vida, corre nela o Rio, com a sua água abençoada, frutificam nela para sempre as árvores outrora proibidas.
O Criador reconciliou-se finalmente com a sua criação.

Monday, November 05, 2007

O Sonho da Vida Eterna


A epopeia de Gilgamesh deve grande parte do seu interesse e universalidade aos motivos que a compõem.
Falámos de alguns, que caracterizam a cidade primitiva, o culto da terra fértil, a iniciação (sexual) civilizadora, o castigo sofrido por quem quebra o laço de respeito com os deuses.
Mas há um outro motivo de grande e igual interesse: o da busca da vida eterna, desenhando-se ao longo da narrativa como uma verdadeira Queste, de um Graal neste caso não Pedra, nem Taça, mas puro alimento divino.
Morto Enkidu, Gilgamesh permanece inconsolável e declara que não voltará à cidade enquanto não obtiver de um seu antepassado, possuidor de vida eterna, o segredo que assim o manteve vivo.
São várias as peripécias, antecipando muito do futuro imaginário dos romances de Cavalaria, ultrapassando obstáculos, lutando com monstros tenebrosos, para alcançar o almejado sonho de uma vida eterna que fosse partilhada com o amigo, Enkidu.
Finalmente o herói encontra Utnapishtim, o imortal antepassado.
Está inserida aqui uma narração do Dilúvio, muito interessante pela semelhança com a que nos é narrada na Bíblia, e deixa em aberto a hipótese de ter sido real esse desastre (talvez se venha um dia a encontrar a Arca de Noé que os arqueólogos ainda procuram em terras do actual Iraque). Mas esta inserção, pouco justificada a não ser para memória, não nos deve distrair do objectivo da Busca de Gilgamesh: o segredo da imortalidade.
Utnapishtim procede a uma cerimónia ritual de prurificação do herói, com banho, óleos, novas vestes que substituam as peles de animais com que surgira coberto.
Enkidu fora outrora civilizado (humanizado) por uma sacerdotiza, passando de um estado primeiro de animalidade ao estado mais humano que lhe conhecemos; Gilgamesh é agora civilizado, mas de modo inverso ao do amigo: humanizando-se também, ao perder a parcial divindade que o constituía, como herói invencível ou semi-deus.
O que ele adquire é a consciência de ser humano- humano como qualquer outro- sujeito ao sofrimento, à esperança e ao desespero, um sinal que é dado pelo facto de "ceder ao sono", algo que antes seria impossível.
Embora longe um do outro, E. morto, G. vivendo ainda, o que lhes acontece em matéria de iniciação é semelhante: humanizados, tornam-se de facto espelho um do outro.
O nosso herói recebe de Utnapishtim o segredo " dos deuses": uma planta que se encontra no fundo dos mares, "nas águas do Grande Abismo" e lhe concederá " o segredo da juventude". Mas valerá a pena?
Eis a reflexão de Utnapishim, com que termina o livro X (antepenúltimo):

"The sleeper and the dead, how alike they are!
Yet the sleeper wakes up and opens his eyes,
while no one returns from death.And who
can know when the last of his days will come?
When the gods assemble, they decide your fate,
they establish both life and death for you,
but the time of death they do not reveal."

Gilgamesh, de novo com grande coragem, mergulha, traz a planta consigo e ordena ao barqueiro que siga para Uruk, onde, para ver o seu efeito, dará primeiro a um velho um bocado da planta. Se o efeito for bom, então ele comerá também dela.Tornou-se cauteloso, algo que não era antes.
Já se refere à planta como antídoto para o medo da morte, em vez de planta da eternidade, ou da juventude eterna (à maneira do Fausto moderno).
Mas acontece o imprevisível, para descansar da viagem pousa a planta no chão, a dada altura, e uma serpente, atraída pelo seu perfume, foge com a planta. Ao desaparecer muda de pele: sinal de que se tinha rejuvenescido...
Gilgamesh senta-se a chorar de desgosto: o que fará agora? Todos os seus esforços foram em vão, perde a planta para uma serpente...( algo aqui que nos lembra a eternidade de uma outra serpente, a do bem e do mal, do Paraíso judaico-cristão).
O livro acaba com o regresso a Uruk, e a mesma descrição inicial da cidade belíssima, protegida nas suas muralhas, o templo inegualável dedicado a Ishtar, a abundância das palmeiras, dos jardins, dos pomares, dos palácios e templos gloriosos, o mercado, as casas, as praças...
De uma busca divina chegamos a uma lição bem humana, com um herói que se tornou mais humilde, aprendendo que nada é eterno, tudo morre, e ele morrerá também.
Que tenha sido a serpente a causadora do seu último mal....levava-nos a outras considerações.
Uma lição nos é dada: que o sonho da eternidade não passa disso mesmo, um sonho.

Saturday, November 03, 2007

Uruk


Uruk, a cidade primitiva, erguida dentro de forte muralha de tijolo cozido, residencia da deusa Ishtar que nenhuma outra iguala:
" uma milha quadrada é cidade, uma milha quadrada são pomares, uma milha quadrada são poços, bem como o terreno aberto do templo de Ishtar. Uruk é constituída por três milhas quadradas mais o espaço aberto".
As suas fundações foram lançadas por Sete Conselheiros, e nela reina Gilgamesh, que passou por toda a espécie de sofrimentos e experiências, narradas a seguir.
Os habitantes de Uruk, cansados de tanto perder filhos, filhas, sossego e bens da sua cidade, pedem à deusa Aruru, criadora da espécie humana, que crie um outro homem, igualmente poderoso, que faça frente a Gilgamesh, que os atormenta.
A deusa lava as mãos, pega num bocado de barro e atira-o para longe. Assim foi criado Enkidu, o primitivo, de corpo coberto de pelo, cabelos compridos luxuriantes, sem pátria nem companheiros. Alimenta-se de erva com as gazelas, bebe água dos riachos com os animais.
Certo dia um caçador descobre Enkidu e assustado pede ajuda a Gilgamesh. Perante a descrição feita, o rei, que era sábio, aconselha-o a levar o homem a uma sacerdotisa do templo de Ishtar, para que ela o civilize, por meio da sua arte do amor.
Shamkat é o nome da sacerdotisa que, ao iniciá-lo na arte do amor, o modifica e o conduzirá depois a uma tenda onde aprenderá a comer pão, beber cerveja, como era costume entre os civilizados:
"Eat the food, Enkidu,
the symbol of life.
Drink the beer, destiny of the land".
Depois de comer e beber Enkidu ungiu-se com óleo e " he became like any man": tornou-se igual a qualquer homem e, levado a Gilgamesh, virá a ser o seu mais fiel companheiro e amigo.

Sabemos então que na cidade de Uruk o culto da deusa é de prostituição sagrada, e que esse é o meio de civilizar os homens (bárbaros) que lá chegam, tanto quanto o de garantir a fertilidade da terra e a renovação das estações. Uruk é uma cidade de proveniencia divina, os seus heróis são semi-deuses, daí que não se estranhe que a ideia do repúdio da morte venha a ser um dos fios condutores da narrativa.
A cidade primitiva é uma cidade rural, dentro de muralhas que protegem o palácio e o templo e ainda a terra cultivada, que dará centeio e milho, e terá como ornamento jardins e pomares variados. Predomina, no templo, o culto da terra fértil, da Mãe-Terra ou Grande-Mãe, cujo animais votivos são a vaca, ou o touro, como no caso da antiga epopeia de Gilgamesh. Por terem morto o touro sagrado serão castigados, o rei e o seu fiel companheiro Enkidu, tendo um deles de morrer em troca ( e será Enkidu).
Sacrifícios animais ou humanos, para que com o sangue sacrificial se preste culto aos deuses, garantindo a sua protecção e a renovação sazonal das estações, serão referidos nos antigos mitos fundadores, ao longo dos tempos, até serem modificadas tais práticas com um novo conceito da dignidade humana e do respeito que merece.
Nos contos populares, de que a recolha dos irmãos Grimm dá testemunho, há ainda a memória de ritos sacrificiais, incluindo o incesto, a antropofagia, etc.








Gilgamesh



Nova tradução inglesa, em verso, que se lê com a facilidade de uma novela fascinante.
O mérito é de STEPHEN MITCHELL, de quem já se conhecem outras versões de clássicos como o TAO TE CHING, THE BOOK OF JOB, BHAGAVAD GITA e a SELECTED POETRY OF RAINER MARIA RILKE.
(Ver stephenmitchellbooks.com)

Mais uma vez, neste texto, nos deparamos com a memória viva de um mito: Gilgamesh, herói dos tempos bíblicos, rei poderoso que tudo e todos vence, em tudo manda, e que a dado momento inicia uma viagem especial em busca do seu alter-ego, o homem natural, nascido e criado na floresta e não na cidade poderosa já corrompida pelos vícios que a civilização trouxe consigo.
Uma primeira lição, ancestral: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Uma segunda lição: o poder (a absoluta racionalidade, razão vs. emoção, numa leitura simples) não substitui, no homem, a necessidade vital da alma, a entidade superior que permite e condiciona a verdadeira existência. Sem alma não há vida humana, citadina, social, que seja fértil. Daí a necessidade de Gilgamesh ir procurar Enkidu, que virá a ser o companheiro perfeito, ao ponto de se sacrificar por ele ( o que no mito significará uma suprema integração).

Como observa um dos críticos da versão deste texto de há 3500 anos, não nos podemos considerar cultos sem o ter lido, depois da Bíblia, de Homero e de Shakespeare...
A civilização floriu no que hoje é o Iraque, naquele espaço situado entre o Tigre e o Eufrates, onde Hammurabi escreveu o seu código de leis e a épica de Gilgamesh, a mais velha história do mundo, foi escrita em tabuínhas de argila e vezes sem conta narrada, até chegar assim aos nossos dias.
Gilgamesh reinou na cidade de Uruk da Mesopotâmia, por volta de 2750 A.C.
Na epopeia diz-se que teve um amigo íntimo, Enkidu, um "homem nú, selvagem, que teria sido iniciado na civilização graças à arte erótica de uma sacerdotiza de um templo".
Aqui está a primeira forma do mito do "bom selvagem", marca que reencontraremos na TEMPESTADE de Shakespeare, onde o selvagem Caliban é iniciado por Próspero no modelo da civilização (mas sem sucesso). Rousseau, séculos mais tarde recupera a ideia, mas como vemos  no imaginário humano tem matriz bem antiga.
Com Enkidu, Gilgamesh vence os monstros com quem tem de lutar para se manter reinando vitorioso. Mas Enkidu morre, e Gilgamesh, inconsolável, parte para uma viagem em que espera encontrar o único homem que lhe pode dizer como vencer a morte.
Este é um dos núcleos fundamentais da história: a morte, o medo da morte, única vencedora de toda grandeza do percurso humano. Mas há outros, e em íntima relação com o que sentimos, somos ou não somos, relativamente aos grandes motivos universais do amor, da fragilidade da vida, da ambição de saber.
O rei herói desta epopeia é talvez mais um anti-herói, que aprende à sua custa, como num Bildungsroman, que a infinita prosápia do poder não leva a nada, só ao grande sofrimento de descobrir como é limitado o momento da nossa vida, seja qual fôr a condição em que se viva, de maior ou menor grandeza.
É uma história que contém uma moral: a da cidade civilizada pela fraternidade, temperança e sabedoria. O texto começa e acaba com a cidade e, entre o seu princípio e o seu fim, decorre a aventura da humanidade com os seus fundamentos, naturais, religiosos e sociais.

Thursday, November 01, 2007

Mitos da Mesopotamia


1.
Os Mitos são eternos?
A tradição parece indicar que sim.
Embora o mito seja uma "narrativa" fundadora, ergue-se sobre uma estrutura arquetípica, universal, que desde a figuração mais antiga até aos nossos dias ora submerge, ora reaparece, ainda que sob outras roupagens (outras formas).
Contudo a estrutura pemanece.
Vem isto a propósito da minha leitura recente de um antigo mito da Mesopotamia, em tradução de Stephanie Dalley:
THE DESCENT OF ISHTAR TO THE UNDERWORLD.
Nesta descida aos Infernos a travessia é longa, sendo a deusa (que podemos assemelhar à Perséphone dos gregos,deusa da fertilidade raptada por Hades e que este devolve periodicamente à terra e à sua mãe, Deméter).
Ishtar é obrigada a atravessar várias PORTAS enquanto é despojada gradualmente de todos os seus atributos. Entra-se nú nos Infernos, como se entra nú na última e definitva morada, ao ser devolvido à terra, ao pó de que fomos feitos.
Esta descida é no entanto uma morte simbólica, que permitirá depois uma ressureição: a da deusa, como a da vida da natureza, entretanto perdida ao ausentar-se a Grande Mãe que a deusa Ishtar personifica.
Ishtar desce aos Infernos buscar o seu amante, o seu amado,Dumuzi (ou Tammuz, noutras versões, deus ligado aos meses de Junho e Julho).
A história remonta à Idade do Bronze, surge na Babilónia e na Assíria e mais tarde na biblioteca do palácio de Ninive. É algo diferente da versão suméria da descida de Inanna, texto mais antigo e mais longo e detalhado, em que se vê que Dumuzi periodicamente morre e ressuscita, sendo causa da mudança das estações e manutenção dos períodos de fertilidade da natureza.

Ishtar resolutamente dirige-se à "Terra de não-Regresso", à casa de que não se regressa, onde o alimento é pó e lama.
Chegada ao portão, guardado por Kurnugi, diz-lhe que o abra ou choverão desgraças sobre o mundo, assolado para sempre pelos mortos e pela morte.
Com autorização da Rainha dos Infernos (neste mito a entidade é feminina, ao contrário do mito grego) Ereshkigal, irmã de Ishtar ( uma é a da vida luminosa outra é a da morte das trevas) será aberto o portão.

Na primeira porta o guarda tira-lhe a coroa da cabeça, a isso obrigam os ritos de passagem.
Na segunda porta o guarda tira-lhe os brincos das orelhas.
Na terceira porta tiroa-lhe os colares do pescço.
Na quarta porta tira-lhe as jóias do peito.
Na quinta porta tira-lhe a corrente de pedrarias à roda da cintura.
Na sexta porta tira-lhe as pulseiras dos pulsos e dos tornozelos.
Na sétima porta tira-lhe as belas vestes que lhe cobriam o corpo.

Este despojamento de todos os elementos exteriores é feito cumprindo os ritos da Senhora da Terra, conforme o guarda vai explicando a par e passo, porta a porta.
Segue-se, com a ausencia da deusa Ishtar, um período de grande infertilidade sobre a terra:
o touro e o burro não cobrem as suas fêmeas, o jovem não procura a rapariga, fica a dormir sozinho no seu quarto, e a rapartiga fica com as suas amigas. rapariga dorme com as suas amigas. Foi necessária uma intervenção superior para que Ishtar fosse "benzida com as águas da vida" e se procedesse ao caminho inverso, em que a deusa volta a atravessar as portas onde lhe são devolvidos tos os seus paramentos.
Na agora primeira porta (que fora a última) entregam-lhe as vestes que a cobrem, na segunda porta as pulseiras de pulsos e tornozelos, na tereira porta o cinto de pedrarias, e assim por diante.
Na sétima porta, finalmente, colocam-lhe na cabeça a sua grande coroa.

O texto deixa supôr que o " amante da sua juventude", Dumuzi, lhe foi devolvido, "lavado com água pura, ungido com óleos puros, envolto em vestes vermelhas, ao som de um tubo de lapis-lazuli" ( pensemos numa flauta, como é o caso nos ritos de Diónisos).

Vários elementos nos chamam a atenção: o ritual de despojamento evoca outros, como o que encontramos no RICARDO II de Shakespeare, quando ao rei são retirados todos os símbolos do seu poder e grandeza, no momento em que abdica da coroa. São os símbolos que desenham o chamado "segundo corpo do rei", o corpo místico de que deriva a força supostamente concedida por uma entidade divina, superior. E naturalmente a "entronização" posterior de Ishtar é a mesma que simbolicamente se verifica com as coroações reais, e religiosas (Bispos e Papas, por ex.)

Também é interessante a insistência no número 7, em variadas tradições: os 7 dias da criação, os 7 planetas, e regra geral nas tradições esotéricas o facto de resultar da soma do 3 (o chamado plano divino) com o 4 (o plano da criação); o 7 representaria então o mundo como totalidade no interior do 10, a perfeição da década, (que resulta da adição de um zero à unidade).
Este número é ambivalente, pode representar tanto o bem como o mal, na medida em que contém a tríade celeste e o quaternário terrestre, elementar ( os 3 princípios, os 4 elementos). Um belo exemplo seria trazer aqui a tradição bíblica do Apocalipse, e o SÉTIMO SELO, de que um artista como Ingmar Bergman se soube apropriar. É isso que fazem os grandes artistas, apropriam-se de símbolos, arquétipos, mitos e sobre eles erguem o seu outro mundo.

2.
Darei então um exemplo de como a travessia de portas, sendo a porta, como "passagem" elemento tabú, é tratada por Bartók, no libreto inspirado no conto popular do CASTELO do DUQUE DE BARBA Azul.
São 7 as portas que Judith, demasiado curiosa, insiste em atravessar, e com isso perderá a vida.
Diz-se no Prólogo:
"ao cantar a melodia antiga/ quem sabe de onde provém?/ouvi e maravilhai/ senhoras e senhores!...antigo é o castelo e antigo é o conto que nos fala dele".

Na descrição da vasta entrada do castelo vemos ao alto da escadaria 7 portas enormes, 4 face ao público, as outras colocadas de lado. Já aqui o 4 e o 3 são desenhados, com a sua carga simbólica, que o 7 vem confirmar. A entrada do castelo é descrita como vazia e escura, mais parecendo uma caverna talhada no "coração" de um rochedo.
Nova imagem simbólica: estamos num "centro" iniciático, como pouco a pouco viremos a entender.
Judith chega com o Duque Barba Azul, que a chama e lhe pergunta se não tem medo. Ela estranha que não haja janelas, nem luz do dia., ele reponde nunca e "nunca mais".
Dali não se sairá, como em regra nãose sai do escuro reino dos mortos.
Barba Azul pergunta que razão levou Judith a querer vir com ele, e ela exclama que "aquecerá o mármore frio/ com o seu próprio corpo vivo", e mais, "encherá de luz aquele triste castelo", "rasgará as muralhas,/ o vento soprará por elas/ a luz entrará " e finalmente tudo brilhará como ouro.
Barba Azul responde que nada pode brilhar naquele castelo.
Judith repara então nas 7 portas trancadas e pede-lhe que as abra.
Uma após outra as portas serão abertas, enquanto se ouve um suspiro de angústia exalado pelo próprio castelo.
A primeira é a câmara de tortura do Duque, na segunda encontram-se escudos e armaduras que são brasão do castelo, na terceira encontram-se montanhas de ouro e pedras preciosas, tesouro do castelo, na quarta Judith desbore o jardim secreto do castelo, com lírios gigantes, rosas perfumadas, cravos de beleza nunca vista. Mas as flores estão manchadas de sangue, e o Duque não responde quando Judith lhe pergunta quem regou com sangue aquelas flores.
Barba Azul tinha-lhe dito, ao entregar as chaves das últimas portas que ela NÃO DEVERIA perguntar nada; e agora ela estava a quebrer esse tabú com uma curiosidade insistente e mal recebida por ele.
A quinta porta revela um reino espaçoso, com vista deslumbrantes de "florestas de veludo, riachos prateados, altas mntanhas azuis...".
Percebe-se que aquele momento, em que Barba Azul lhe diz que tudo é dela, é o momento de não pedir mais nada.
Mas Judith quer ver todas as portas abertas. Diz-lhe "ainda falta abrir mais duas".
De nada serve que ele implore, prevenindo que o castelo depois deixará de brilhar, ela não resiste à muita curiosidade.
A sexta porta deixa ver um lago de águas paradas, que são lágrimas, mutas lágrimas, como o Duque lhe explica. Só então Judith abraça o marido, que lhe pede de novo que não faça mais perguntas e se limite a amá-lo.
" Abre a sétima e última porta!
Adivinhei o teu segredo, Barba Azul.
Sei o que estás a esconder.
...
As tuas primeiras mulheres sofreram
brutalmente assassinadas.
...
Abre-me a última das tuas portas!"

Barba Azul entrega-lhe a chave da sétima e última porta, para que Judith veja as suas anteriores mulheres : são 3, sendo ela então a quarta ( o 4 da materialidade).
Coroadas, cobertas de jóias, aproximam-se enquanto o Duque cai de joelhos prestando-lhes homenagem.
Segue-se a narração do mistério, feita por Barba Azul:
A primeira mulher foi encontrada ao nascer do sol, a segunda ao meio-dia, a terceira ao pôr-do-sol, e a cada uma pertence o momento de que são soberanas: aurora, dia, poente.
E conclui, para Judith: tua é agora e para sempre a noite.É para ti a coroa de diamantes.Daqui em diante tudo é treva, treva, treva.

Assim se conclui o conto de Judith e as sete portas- título que poderia ter sido o da ópera.
O Duque é o guardião do espaço mítico, que não pode ser violado. Judith quebrou o tabú, não teve remissão.
Por outro lado, o facto de ela ser a quarta mulher, e transportar a noite, a treva, faz dela, neste libreto, o símbolo do Eterno-Feminino que o homem procura e não entende, recusando-o, como memória antiga que é dos primitivos cultos da terra fértil que era preciso regar com sacrifícios.


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