Wednesday, April 18, 2012

O Crepúsculo dos Deuses


Fecha-se o ciclo do Anel do Nibelungo, com esta última ópera que Wagner demorou a levar a seu termo, pelo intrincado conjunto dos temas míticos escolhidos, a partir das antigas sagas dos Eddas, da História dos Nibelungos medievais cuja leitura também o fascina,já para não falar da sedução dos Contos de Grimm, que Cosima lia ao Serão.
 Em todos estes textos se encontram estruturas arquetípicas que ainda hoje, pela sua universalidade, podem e são recuperadas,em banda desenhada, em filmes como o mais recente, THOR, ou em romances actuais de igual sucesso.
Em O Ouro do Reno, Prólogo que é em si mesmo uma verdadeira ópera, e de que já me ocupei noutros posts, apresenta-se o tema fundador, da maldição do anel, feito com o ouro roubado às ninfas do Reno: simbolismo especial da Água de onde a Vida provém e a que voltarão, fundidos na sua morte, o herói Siegfried e a bela Virgem guerreira Brunilda, sua mulher.
Erguendo as labaredas de Fogo que abalarão o castelo e a esfera dos deuses - a terra superior e a terra média - Brunilda permite a União que alude à Água e ao Fogo como elementos primordiais, que já no Ouro do Reno tinham sido colocados em oposição.
Aqui, no apocalipse final, com o anel devolvido ao rio, fecha-se um ciclo: o do eterno retorno, nascimento, vida e morte, sobre o qual pairam, indiferentes, as Nornas ( equivalentes wagnerianos das Mães no inferno de Goethe, no Fausto II).
As Nornas, as tecedeiras do fio dos variados destinos.
As Mães abissais do Informe do Tempo, a que a vida dará a temporalidade, dos breves sucessos e infortúnios de cada um, deus ou apenas homem, pois os deuses não são, na óptica wagneriana, mais do que os homens, enquanto produto de um imaginário antigo, universal mas perdido.
São pulsões da nossa criatividade, no permanente esforço de entender Deus e o Mundo, o Ser e o Tempo (meditação que nos levaria a Heidegger! )
O excerto do video pertence à belíssima produção do centenário, com direcção musical de Boulez e direcção cénica de Chéreau.

Thursday, April 05, 2012

Baudelaire e os cabelos de Mélisande

Baudelaire e os Cabelos de Mélisande...

Pélleas e Mélisande, peça e libreto de Maurice Maeterlinck - um dvd com Direcção de Pierre Boulez e Encenação de Patrice Chéreau aguardando na minha estante que eu o redescobrisse.
E isso aconteceu graças à recente apresentação da mesma ópera em encenação de Bob Wilson ( de que aguardo com impaciência que também se faça um dvd). Extractos do espectáculo de Bob Wilson já se podem ver na internet, e por eles recordar o seu imaginário sóbrio, contido, rectilíneo, explorando ( e nesta peça muito a propósito) o contraste entre a luz e a sombra, a pureza e a treva das almas que fascinaram Maeterlinck.
O todo do silêncio e da voz  elevados a uma esfera superior pela música de Debussy, que é, muito mais do que simples enquadramento da tragédia, a verdadeira sublimação dum nefasto encontro de paixões. 
Um dos momentos mais intensos, e significativos pela sua dimensão simbólica é, no acto III, cena 1, o momento em que Mélisande, no alto da torre penteia os seus longos cabelos, cantando e encantando Pélleas que lhe anuncia que está de partida. Pretexto para lhe pedir que se incline, quer pegar-lhe na mão, mas é na longa cabeleira que se enleia e perde, e se afunda, como nas onda do mar: o fatídico mar do desejo e da paixão.
Não seria preciso evocar os cabelos de Samsão, no Antigo Testamento, com o poder da energia vital que perde, enganado por Dalila, nem sequer a trança da bela Rapunzel, que às escondidas ela lança, como escada, ao seu apaixonado. Em todas estas evocações, e outras mais haveria, o cabelo é mais um meio de intervenção no desenrolar da história que se conta do que um elemento de grande força simbólica em si mesmo.
Mas no caso de Melisande esse cabelo farto, mar ou árvore (da Vida), como surge na cenografia de Chéreau, adquire outra força, outro mistério: simboliza a terra, a sua energia primitiva, feita da sensualidade da vida que uma certa e vã espiritualidade pretendia ofuscar ( mas sem sucesso). Temos assim um jogo subtil de opostos entretecido com uma narrativa de tom medieval e de memória tradicional popular, como era gosto da época.
Dia e Noite, Luz e Sombra, Floresta e Mar, Pureza e Pecado (na relação de corpo e alma), ou Fidelidade e Traição.
Enfim, todos os ingredientes que poderiam levar a um desfecho dramático pois neste conto moral a traição precisa de castigo (Mélisande morre no parto) ainda que se pressinta algum desejo  de esperança, já que não haverá perdão.
A esperança é a da criança que nasce bem (temos aqui um vago eco do Wozzeck de Georg Buchner, onde apesar do fim trágico o autor nos deixa com um grupo de crianças, entre elas o filho de Marie, assassinada, que vai junto com elas).
Bom, mas onde entra, afinal o poeta Baudelaire?´Verdadeiro pai do Simbolismo, Mestre de Rimbaud, de Verlaine, bem conhecido de Maeterlinck, é no seu poema LA CHEVELURE que poderemos ler o encanto, a atracção feliz, a grande sensualidade do toque e do emaranhar das mãos numa farta e bela cabeleira, a da amante que de momento lhe é fuga, paisagem e vivência do Paraíso sonhado.
Neste como noutros poemas de igual beleza e impacto, Baudelaire canta  A VIAGEM que permite ao finito do corpo perder-se nas paragens de um Além infinito, distante e só aparentemente libertador. Este poema longo, de 8 estrofes, termina com a célebre exclamação:
"O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'encre!
...
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!
...
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?
Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau!


Poema nascido de um profundo ennui, escrito noutra fase da sua vida, em que o desafio da arte pela arte já se revelava insuficiente, Baudelaire não deixa no entanto de ser o mais influente nas gerações que o leram.
Pelas estrofes de LA CHEVELURE ( A CABELEIRA) passa o êxtase declarado, proclamado, que em si concentra todos os sonhos possíveis, continentes como a Ásia, a África, seus perfumes quentes e sensuais, suas florestas, seus mares, seus navios de velas e mastros poderosos, portos atravessados por sons e cores, céus e mares que se fundem e confundem, numa alquimia de todos os sentidos - que veremos depois num Rimbaud ou num Fernando Pessoa serem "retrabalhados".
Esta cabeleira lisa ou entrançada de Baudelaire põe a nú o que os tímidos mas longos cabelos de Mélisande também não conseguem esconder: que ali se concentra todo o perfume do corpo, e que o desejo imparável dos amantes ali sonha o seu leito, o seu mar, o seu oásis verde, o seu Éden perdido.