Monday, October 01, 2012

Dia Mundial da Música

Contribuo com uma obra-prima de Schubert, inspirada noutra, de Goethe e com o seu quê de simbologia de transformação, como na alquimia que sublima o corpo ( a matéria)  elevando-nos a todos a esferas mais altas.


Fulgurações de Mignon

O romance de Wilhelm Meister, tal como o drama de Fausto, foram obras que acompanharam Goethe ao longo da sua vida, dos anos mais turbulentos do Sturm und Drang aos amadurecidos da plenitude do conhecimento adquirido: pela experiência de vida, pela inquirição científica, filosófica, artística dos múltiplos pontos de vista, mesmo que contrários e contraditórios.
Aliás a sua maior lição é mesmo essa: da contradição que leva à plenitude do reconhecimento do Todo e do Uno, na esfera do grande como do pequeno mundo.- para usar uma expressão corrente no seu tempo ( e que conhecemos de Shakespeare e dos filósofos herméticos).
A leitura dos seus escritos autobiográficos permite entender melhor as características da sua formação; cresce num meio burguês de cultura cuidada, onde desde cedo estuda música, aprende línguas, segue direito filosofia, teologia, embora se oriente mais tarde para outras escolhas.
Mas a formação ficou lá e moldou o seu pensamento e a sua imaginação criadora. Não é por acaso que à data em que escreve as primeiras versões de Wilhelm Meister é a criação teatral que o apaixona, fazendo com que contraponha a escola francesa de Gottshed e a proposta de um teatro clássico aristotélico ao modelo muito mais livre e sedutor de Shakespeare, que Wieland dera a conhecer na Alemanha.
 Um encenação de Hamlet é discutida longamente com a troupe de quem Wilhelm se torna amigo, viajando com eles. Entre eles viverá o seu primeiro amor e o seu primeiro desengano. Através deles conhecerá Migon, e o Harpista – duas figuras emblemáticas da obra, de que falarei adiante.
A Par das discussões sobre o teatro como arte e expressão da vida no seu todo, no que tem de melhor e pior, e como arte suprema, pois inclui a palavra, a música, a dança - é uma arte total – desenha-se ao longo da narrativa um pensamento filosófico, inspirado na Ética de Spinoza, que  que está a ler, como diz na autobiografia e ainda em Rousseau, sobretudo nas Confissões.
Temos assim a apresentação e discussão de modelos filosóficos, estéticos e éticos (bem como pedagógicos, inspirados no suiço Pestalozzi) que ora Wilhelm ora outros intervenientes introduzem numa narrativa por vezes confusa e que só com a evolução do contar, sobretudo nos Anos de Viagem se aclara finalmente.
Contempla-se em Wilhelm Meister  um grande fresco da sociedade da época:
1 do pequeno mundo do povo, do teatro ambulante que se deseja maior do que é e mais interessante, como projecto de vida;
2 à burguesia culta, dividida entre o Iluminismo da Razão Pura e o Pietismo, doutrina de misticismo laico mas muito actuante na Alemanha do norte ;
3 sem esquecer a discreta mas real proliferação da maçonaria e suas Lojas, em que se proclamava a liberdade, a igualdade, a fraternidade, e sobretudo uma utopia moral e social que em Wilhelm Meister é representada pela misteriosa Sociedade da Torre.

Tudo isto vem a propósito de se sentir que as personagens de Mignon e do harpista que a acompanha, sendo como são inspiradoras, carecem de um enquadramento que as justifique no seu mistério e sobretudo no desenrolar do romance.
Pois na narrativa servem de fio que une os anos de Aprendizagem e de Viagem do herói, apesar de, numa leitura apressada, poderem parecer mais dispiciendas.

Como surge Mignon e como é descrito?
De início como criatura meio andrógina, Wilhelm não sabe dizer se é rapaz ou rapariga, roupas trapalhonas, ar algo selvagem; mas vendo melhor opta por menina; de facto é uma menina, criança que anda com a troupe fazendo habilidades, e que Wilhelm, compadecido do seu destino, e logo atraído por ela a compra por 30 tálers (30 dinheiros de Cristo…), libertando-a do jugo cruel do seu dono, que era o dono do circo.
(Mas permanence o nome de Mignon: de origem francesa, Mignon era na corte o favorito do rei; detecto aqui no romance alguma ambiguidade de relação, implícita, mas que não se pode confirmar).
Ela será a favorita de Meister, e a ele se devota de todo o coração.
Pela mão dele sera educada, vestida como deve ser, ainda que sempre de branco, alusivo a uma outra origem, mística, mais sublime. Um embrião de alma descido a um mundo de imperfeição.
Mignon não fala, ou muito pouco, e sempre de modo hermético, carregado de alusões: canta, como se fosse o seu modo natural de expressão, mais intuitivo e expressivo do que seria um dizer articulado.
O seu mundo é o da pura emoção. Daí que ao longo dos tempos tenha inspirado tantos e tantos compositors, sendo Shubert um deles.

Do ciclo que vamos ouvir, a canção mais célebre é a da nostalgia de um país maravilhoso, solar, em que florescem limoeiros e laranjeiras, se erguem belos palácios e antigas lendas e mitos encantam a imaginação. É para aí que Mignon deseja ir, levando Wilhelm, Amado, Protector, e Pai.

Conheces o país onde os limões florescem,
E brilha na folhagem escura o ouro das laranjas,
Do céu azul sopra um vento suave,
A murta silenciosa e o altivo loureiro,
Conheces?
Partir! Partir,
O meu desejo é ir para lá contigo, meu Amado.

Conheces a casa? Sobre colunas está pousado o tecto,
A sala brilha, refulge o aposento,
As estátuas de mármore fitam-me com o seu olhar:
Pobre criança, que fizeram contigo?
Conheces isso? 
Partir,  partir,
É o que desejo, contigo partir, meu Protector

Conheces o monte, o carreiro entre as nuvens?
A mula procura o caminho na névoa;
Nas grutas vive a antiga raça dos dragões;
Despenham-se os rochedos e em torrente as águas,
Conheces?
Partir! Partir,
Seguir nosso caminho! Ó Pai, vamos embora!

Nos últimos capítulos do romance saberemos do que se trata e quais foram as peripécias trágicas da vida de Mignon.
Mas a resolução final do mistério, ou dos mistérios, da sua vida terrena, que tanto aproximou Wilhelm da sua própria iniciação nas mais altas esferas da vida Superior (a que a protecção da Sociedade Torre não é alheia) não impede a dúvida que permanece:
Afinal o que representa, na iniciação do herói esta jovem Mignon? Raptada (do seu mundo perfeito, que ela evoca numa canção), sofrendo em silêncio os males (a degradação) do mundo (evocados noutra canção), protegida pelo herói , que a entrega aos bons cuidados de uma alma generosa, Natalie (com quem Wilhelm virá a casar) morrendo nos seus braços do amor excessivo que a consumia em silêncio – afinal o que representa ela?
No segundo capítulo do livro VIII  Mignon surge diante das outras crianças da casa vestida de Anjo, numa figuração alegórica (como era costume, ao tempo, para surpresa e divertimento nos salões, perante amigos e convidados).
É travado um diálogo que remete para o Maerchen, conto maravilhoso datado de 1795, próximo da escrita dos Anos de Aprendizagem,   carregado de simbólica alquímica e maçónica em que diálogos cifrados também cumprem um papel.
Natalie explica a Wilhelm que Mignon, na companhia das meninas da casa de que ela se ocupava, se habituara a gostar das roupas femininas, antes tão difíceis de lhe impôr. E para festejar o aniversário de umas gémeas a vestira de Anjo, de longas vestes brancas, a que não faltava um cinto dourado, tendo-lhe colocado também na cabeça um diadema igual. Tinha ainda duas asas a compor a imagem. Nas mãos levava um lírio e um cestinho com prendas.
À sua chegada Natalie exclama: Aqui está o Anjo!
E seguem-sa as perguntas das crianças, que reconhecem Mignon.

-Tu és um Anjo?
-Quem me dera, responde Mignon.
-Por que trazes um lírio?
-Se o meu coração fosse tão puro e sincero eu seria feliz.
-E as asas? Mostra lá!
-As mais belas são as que ainda não se abriram.

Cumprido este momento mágico ( e de verdadeira iniciação, como acontece no Maerchen), quiseram despir Mignon das suas vestes, ao que ela se opôs, pegou na sua cítara, sentou-se numa escrivaninha e cantou uma canção de grande suavidade: “ So lasst mich scheinen, bis ich werde / Zieht mir das weisse Kleid nicht aus! “
Nesta canção se exprime o alto conhecimento adquirido por toda uma experiência de vida que trouxe Wilhelm Meister até aqui, ao reencontro com Mignon, e com o destino que junto de Natalie o tornará maduro e sábio, pois entenderá as emoções que desde a juventude (na agitada vocação teatral o tinham perturbado). Mignon for a a sua Anima : incipiente, indefinida, como um Daimon ( a que Goethe se refere, noutros escritos) exprimindo-se por impulsos intensos a que cedia. Mignon morrerá para ele sobreviver: pois a pulsão tem de ser integrada ( sofrer morte simbólica, como na alquimia) para se progredir no domínio da Razão superior, da Sabedoria que só a vida concede. No Maerchen, de que se respira aqui muito da sua influência, as palavras de redenção iniciática são maçónicas: a Sabedoria, a Aparência, a Força ( na maior parte dos tradutores de “die Weisheit, der Schein, die Gewalt” , a que no Conto se irá acrescentar outra palavra, o Amor, como força criadora). Rudolf Steiner, Oswald Wirth, teósofos e maçons é assim que traduzem  estas palavras de iniciação.
João Barrento, na sua tradução escolhe a palavra que me parece mais adequada: “ a Sabedoria, a Luz e a Força” (p. 318, vol I, ed. Relógio d’Água).
Porque o verbo scheinen, e  especialmente aqui, nesta canção de Mignon,tem tudo a ver com o brilho, o brilho da luz da alma, da pura essência em que ela, ao morrer se tronará para sempre, ascendendo à esfera em que não se distinguem mais as formas masculinas/femininas, partilhando todas a mesma fusão do Uno e do Todo na perfeita completude primordial.

Assim também eu traduzo de um modo que me parece mais fiel ao ideário iniciático de Goethe, esta canção que fecha o ciclo, aberto no capítulo IV do Livro Segundo, quando Wilhelm, ao ver Mignon surgir de surpresa e logo fugir dali, não sabe dizer ao certo se a criança é rapaz ou rapariga. Opta pelo sexo feminino, a que ela se irá moldando com o tempo (sobretudo com Natalie). O que faz todo o sentido, pois Mignon será um daimon prefigurando uma Anima que Natalie incarnará por completo, já no fim.
Curiosamente, ao traduzir esta canção, João Barrento que no Maerchen optou pelo brilho da luz, aqui cede ao jogo da rima entre parecer e ser (scheinen /werden) recuperando o termo dos tradutores que acima referi.
Prefiro manter a sedução da luz e do brilho das altas esferas, até porque o termo werden implica, como no Fausto, transformar-se, não é um verbo estático, como sein, em que o ser (a essência) já se dá por adquirida.

Deixai então que brilhe até me transformar,
Não me tireis ainda as brancas vestes!
Da bela terra apresso-me a sair
Para descer àquela escura casa.

Deste termo, “feste Haus” casa segura, há uma variante, que prefiro recuperar: “ dunkle”, escura. Pois é na descida à escuridão da alma ( a casa) que toda a sublimação se dá.

Aí descansarei por um momento,
Até que que em mim se rasgue um novo olhar
E deixarei então as vestes puras
O cinto  e a coroa de enfeitar.

E aquelas formas celestiais
Que não distinguem homem ou mulher
Ou roupagens ou pregas envolventes
Receberão o corpo sublimado.

É certo que vivi sem esforço nem cuidado,
Mas sofri dores bastantes nesta vida
E de desgosto envelheci antes de tempo;
Fazei-me jovem de novo eternamente!
Aqui está finalmente a chave do romance e a sua conclusão: que o mistério da vida é insondável, que o destino é força que tem de ser entendida e assumida na sua complexidade, que inclui a treva ( o sofrimento) como inclui a luz, a Vida Eterna por todos desejada.
Jeanne Ancelet-Hustache, grande germanista, tradutora de Wilhelm Meister,(ed. Aubier Montaigne) relembra no Prefácio os poemas órficos de Goethe, nos últimos anos de vida (1815-1831). Um deles é especialmente interesssante para esta figuração, fulguração de Mignon como daimon-pulsão sublimadora: o título é Daimon, e  tem o seguinte verso: “ a ti não fugirás, assim terás de ser” (trad. Paulo Quintela).










  


2 comments:

Michael Maier said...

Belíssima lição sobre Literatura com simbologia alquímica, e a sua influência numa arte tão alquímica como a música. Sim, realmente, a Alquimia é a Arte da Transformação e da Criação. Construir algo de novo (CRIAR) a partir de coisas que já preexistem (portanto TANSFORMAR). Criar a Nova Vida do Homem e, mesmo, criar o Novo Mundo onde esse Homem irá viver. Esse país dos limoeiros e das laranjeiras, deve ser criado pelo próprio Homem, ou então transformado, a partir da matéria imprfeita deste mundo onde vivemos, mas isto também implica a transformação do Homem num ser criativo. É essa a lição que me parece deduzir desta magnífica lião da Professora Centeno. Os meus parabéns. Sou um admirador seu e da sua obra.

ono said...

Constituindo a Música uma significativa parte integrante e integradora da minha personalidade - não só através dos sons intra-uterinos que os progenitores cuidavam em oferecer-me, mas por uma propensão, ao longo dos anos cultivada e desenvolvida, pela beleza abstracta dos fenómenos sonoros e pelo prazer do raciocínio, mesmo que "gratuito", i.e., sem outro fim a não ser o do próprio desenvolvimento de estruturas lógicas em ondulantes argumentações e contra-argumentações), confesso-lhe a minha admiração pelos seus escritos e blogues, que sempre que posso acompanho deliciado.
Aproveitando o comentário anterior de Michael Maier: se o acto de Criar (através do pré-existente ou do nada) é condição para a existência consciente do Ser Humano (à qual a nossa espécie não pode fugir); se a Utopia é o horizonte e ao mesmo tempo a força motriz que faz os homens e as mulheres caminharem na sua direcção, sempre já ali, já aqui; se um Novo Mundo moldado pelos valores e princípios que julgamos serem melhores, mais completos, éticos, sociais e justos delinea o próximo horizonte, será razão para afirmar a impossibilidade da rejeição do acto criativo e transmutador ao longo da vida de cada um de nós e da humanidade no seu todo. Num tempo de longa duração onde a história das mentalidades habita, assistimos a essa comprovação. Num tempo de curta duração onde a vida de cada um de nós vive, exige-se uma revolução permanente, à medida das possibilidades permitidas e/ou condicionadas por infra e super-estruturas. Como cidadão, como trabalhador braçal ou intelectual, cabe-nos sempre lutar pela liberdade (efectiva ou conceptual), pela criatividade e originalidade, pela justiça social e humana, a fim de tecer os fios dos horizontes sucessivos com que construímos as utopias, no fundo, o(s) nosso(s) futuro(s).
E se sem "sopa ou caldos" não se consegue dar corpo ao pensamento que se deseja desenvolvido (como dizia Agostinho da Silva) - justificando-se "a priori" a luta reivindicativa a que quotidianamente temos vindo a assistir, particularmente pela Europa - cabe igualmente à força do pensamento artístico, filosófico e intelectual o papel de despertar consciências.
Para além do "simples" gosto e prazer fruitivo que a arte e a arte de pensar oferece, elas sempre (mais ou menos) tiveram um papel fundamental nesta luta pela construção do País dos Limoeiros e das Laranjeiras!
Se bem que a arte que nos ocupa mais o tempo seja a dita "erudita", a cultura popular também a cria. Num momento em que cada vez mais a urbanidade e o cosmopolitismo transformam o cenário da matéria económico-social (que no contexto neo-liberal, capitalista e consumista adquire contornos sinistros), as fronteiras entre a arte contemporânea de tradição erudita e a popular aproximam-se sem, no entanto, escaparem-se como areia fina entre os dedos.
Respirar e fazer reviver as heranças culturais no presente é um contributo essencial para nos realizarmos enquanto pessoas e sociedade. Não só por isto, mas também, agradeço-lhe o seu delicioso, profundo e sublime contributo.

(Perdoar-me-ão ter-me afastado do "post" original e o tom de manifesto que a actualidade política convida)