Tuesday, August 14, 2012

Alice através do espelho

Para a Rita Roquette de Vasconcellos
Quando se fala de Transformação é impossível não recordar Alice, a heroína de Lewis Carroll, que no limiar do sono e do sonho vive uma aventura sem igual: corre atrás dum coelho para um mundo onde tudo acontece, ou pode acontecer, basta que se imagine, se tema ou se deseje...
Quanto tenho saudades de ler, releio as aventuras de Alice.
Escrevi há dias um texto sobre o Ovo Alquímico, a partir de um sonho que se tornou difícil de entender. Fiz um enquadramento de contexto cultural, através da pintura de Bosch, das gravuras de M.Maier, dos quadros de Magritte; mas ocorria-me sempre à memória o Humpty Dumpty de Alice: tão súbito, também ele, como nos sonhos, e tão enigmático no seu discurso.
O que eu tinha apontado, no meu enquadramento, era a "humanização" da imagem simbólica do ovo: em Bosch, ligado à criação e sua decadência, sua degradação que ele torna bem visível, figurando através de formas que hoje se diriam do domínio do surreal, a sua visão da Queda, de uma humanidade que o pecado corrompera para sempre. Já em Maier o ovo simboliza o mistério da Obra que tem de ser "aberta" (pela espada, pelo glaivo de fogo) para que dela possam os elementos naturais ser "sublimados" e a natureza ser redimida da corrupção, ou do pecado primordial (se aplicarmos à alma esta mesma simbólica alquímica, como fez Jung). Magritte ironiza, nos sues quadros, sobre o poder da imagem e da linguagem...aplica títulos que confundem, em vez de esclarecer!
Mas nos corropios de Alice não há visão decadente, não há pecado que se aponte com o dedo, o que há, em cada momento, é a surpresa da transformação e do crescimento: ela por vezes cresce; e se foi demasiado, logo diminui....aqui está pois a lógica, que é uma "outra" lógica, da transformação. Dir-se-á : de uma criança em mulher? E procuramos em Freud a leitura que ajude? Não me parece.
A lógica será outra: do sonho, da diversão que liberta, da interrogação que questiona, do amadurecimento que confronta, tranquilo, qualquer dificuldade.
Bom, e Humpty Dumpty, o ovo tão enigmático?
Ele surge nas aventuras DO OUTRO LADO DO ESPELHO. Isto já significa qualquer coisa. É o espaço-tempo para lá da consciência. Alice quer um ovo, a lojista oferece dois, Alice insiste que não quer dois (seria o par consciência-inconsciente) mas apenas um: o do inconsciente. Não que se exprima assim, somos nós a fazer esta leitura. O espaço, alterado, transforma-se, torna-se cada vez mais escuro, a loja é agora um jardim, pois tem lá dentro uma árvore e um regato: tudo aponta para o espaço de um imaginário transformado, uma revelação do inconsciente, que o ovo, um só em vez de dois, já iam prefigurando, no desejo de Alice.
Tomemos a árvore como Árvore da Vida (pois vamos lidar com um ovo), o jardim que nasce da escuridão da loja como Jardim do Paraíso, e o ovo que ela já tem na mão como Ovo Primordial. Um símbolo do princípio de tudo: da Vida, na sua evolução.
O ovo cresce, cresce, torna-se imenso, como o mundo que representa., mas é de um mundo humano que se trata: Alice vê que ele "tem olhos e  boca e nariz" e reconhece Humpty Dumpty, figura do imaginário tradicional. Contudo é do seu simbolismo que nos vamos ocupar: ovo-figuração do inconsciente humanizado.
Características a ter em conta: olha sempre para o "outro lado" mesmo a falar com Alice; ele pertence aos seu outro lado, o do inconsciente, aquela esfera da psique que mesmo ao manifestar-se sentimos como outra, designamos por mais funda, mais longe,  - tudo o que signifique distância e não proximidade; próxima é a esfera da consciência imediata, longínqua é a esfera da consciência mediada (pelos sonhos, pela criatividade, pelo impulso a-lógico, etc) ou seja, o inconsciente.
H.D. pergunta a Alice como se chama: e não há nada mais complexo do que re-conhecer e dizer o nome, o verdadeiro...De alguma maneira o Ovo, ao interrogá-la sobre o nome, interroga-a sobre a vida, a existência, que o nome justificará...ou não!Alice percebe que a situação é difícil: questão de vida, mesmo. Pois H.D. lhe confirma que o nome significa o que se é: " o meu nome significa a forma que eu tenho" : é redonda, e ele é um ovo.
O nome é a manifestação da essência e da existência que ela assume.
Estamos em plena sessão de análise e discussão da linguagem e sua potencialidade: não a linguagem que dá voz ao coloquial, mas a que dá voz ao essencial da natureza humana e da sua existência.
O diálogo envereda por um jogo de palavras e de números em que o tempo também entra, mas entra acima de tudo a lógica do "ver ao contrário"  ou melhor do ver ( e do dizer) de forma aleatória o que bem se entender, sendo que tudo tem o significado que se quiser: "Quando eu emprego uma palavra ela quer dizer exactamente o que me apetecer...nem mais nem menos, retorquiu Humpty Dumpty". E passa a explicar o peso que as palavras podem ter, sendo que os verbos são os mais difíceis de controlar, e por aí adiante num jogo que parece interminável e se destina a isso mesmo: a explicar que tudo é possível, na lógica própria de um imaginário  livre e naturalmente complexo. E por se tratar de um ovo direi que é fértil o maravilhoso mundo do inconsciente, em que a nossa Alice mergulhou.

7 comments:

Elsa Gonçalves said...

Querida Yvette, entre o sonho e o sonho, fiquei com saudades enormes. Acabei de a ter comigo aqui na memória, ao "enjarrar" uns descabelados trevos que me pareceram dignos do lugar que lhes escolhi, contrariando o destino do saco da compostagem. Apeteceu-me tanto mostrar-lhe os meus novos verdes, agoa que de armas e bagagens os Viegas assentaram praça na Caparica. Posso desafiar para um cházinho ou uma jantarada? Tenho saudades de a ver e de a ouvir, Yvette. Ou será a "Alice através do espelho"?. Beijo

Yvette Centeno said...

Querida Amiga, Imagina que o "nosso trevo" continua a florir todos os anos?
É a sua magia.
Quando acabarem as férias, lá para as frescuras do Outono, falamos.Aceito sempre um café!

Rita Roquette de Vasconcellos said...

é um grande fascínio
"...make words mean so many different things."
um pouco como os desenhos.

Mal sabia falar quando aprendi o:
'Humpty Dumpty sat on a wall,
Humpty Dumpty had a great fall.
All the king's horses and all the king's men
Couldn't put Humpty together again'

a Alice veio depois.
A Yvette está sempre.
Obrigada
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