Monday, November 05, 2007

O Sonho da Vida Eterna


A epopeia de Gilgamesh deve grande parte do seu interesse e universalidade aos motivos que a compõem.
Falámos de alguns, que caracterizam a cidade primitiva, o culto da terra fértil, a iniciação (sexual) civilizadora, o castigo sofrido por quem quebra o laço de respeito com os deuses.
Mas há um outro motivo de grande e igual interesse: o da busca da vida eterna, desenhando-se ao longo da narrativa como uma verdadeira Queste, de um Graal neste caso não Pedra, nem Taça, mas puro alimento divino.
Morto Enkidu, Gilgamesh permanece inconsolável e declara que não voltará à cidade enquanto não obtiver de um seu antepassado, possuidor de vida eterna, o segredo que assim o manteve vivo.
São várias as peripécias, antecipando muito do futuro imaginário dos romances de Cavalaria, ultrapassando obstáculos, lutando com monstros tenebrosos, para alcançar o almejado sonho de uma vida eterna que fosse partilhada com o amigo, Enkidu.
Finalmente o herói encontra Utnapishtim, o imortal antepassado.
Está inserida aqui uma narração do Dilúvio, muito interessante pela semelhança com a que nos é narrada na Bíblia, e deixa em aberto a hipótese de ter sido real esse desastre (talvez se venha um dia a encontrar a Arca de Noé que os arqueólogos ainda procuram em terras do actual Iraque). Mas esta inserção, pouco justificada a não ser para memória, não nos deve distrair do objectivo da Busca de Gilgamesh: o segredo da imortalidade.
Utnapishtim procede a uma cerimónia ritual de prurificação do herói, com banho, óleos, novas vestes que substituam as peles de animais com que surgira coberto.
Enkidu fora outrora civilizado (humanizado) por uma sacerdotiza, passando de um estado primeiro de animalidade ao estado mais humano que lhe conhecemos; Gilgamesh é agora civilizado, mas de modo inverso ao do amigo: humanizando-se também, ao perder a parcial divindade que o constituía, como herói invencível ou semi-deus.
O que ele adquire é a consciência de ser humano- humano como qualquer outro- sujeito ao sofrimento, à esperança e ao desespero, um sinal que é dado pelo facto de "ceder ao sono", algo que antes seria impossível.
Embora longe um do outro, E. morto, G. vivendo ainda, o que lhes acontece em matéria de iniciação é semelhante: humanizados, tornam-se de facto espelho um do outro.
O nosso herói recebe de Utnapishtim o segredo " dos deuses": uma planta que se encontra no fundo dos mares, "nas águas do Grande Abismo" e lhe concederá " o segredo da juventude". Mas valerá a pena?
Eis a reflexão de Utnapishim, com que termina o livro X (antepenúltimo):

"The sleeper and the dead, how alike they are!
Yet the sleeper wakes up and opens his eyes,
while no one returns from death.And who
can know when the last of his days will come?
When the gods assemble, they decide your fate,
they establish both life and death for you,
but the time of death they do not reveal."

Gilgamesh, de novo com grande coragem, mergulha, traz a planta consigo e ordena ao barqueiro que siga para Uruk, onde, para ver o seu efeito, dará primeiro a um velho um bocado da planta. Se o efeito for bom, então ele comerá também dela.Tornou-se cauteloso, algo que não era antes.
Já se refere à planta como antídoto para o medo da morte, em vez de planta da eternidade, ou da juventude eterna (à maneira do Fausto moderno).
Mas acontece o imprevisível, para descansar da viagem pousa a planta no chão, a dada altura, e uma serpente, atraída pelo seu perfume, foge com a planta. Ao desaparecer muda de pele: sinal de que se tinha rejuvenescido...
Gilgamesh senta-se a chorar de desgosto: o que fará agora? Todos os seus esforços foram em vão, perde a planta para uma serpente...( algo aqui que nos lembra a eternidade de uma outra serpente, a do bem e do mal, do Paraíso judaico-cristão).
O livro acaba com o regresso a Uruk, e a mesma descrição inicial da cidade belíssima, protegida nas suas muralhas, o templo inegualável dedicado a Ishtar, a abundância das palmeiras, dos jardins, dos pomares, dos palácios e templos gloriosos, o mercado, as casas, as praças...
De uma busca divina chegamos a uma lição bem humana, com um herói que se tornou mais humilde, aprendendo que nada é eterno, tudo morre, e ele morrerá também.
Que tenha sido a serpente a causadora do seu último mal....levava-nos a outras considerações.
Uma lição nos é dada: que o sonho da eternidade não passa disso mesmo, um sonho.

4 comments:

uf! said...

mas se nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma, estamos cá tod@s, está cá tudo desde o início dos tempos. É tudo uma questão de metamorfoses, de sucessivas reorganizações do caos. A morte é que não passa de uma miragem- ou pesadelo - dos humanos, «crisálidas» cegas com manias de superioridade...

uf! said...

crisálidas com pavor à mudança...

K. Douglas said...

A forma de redenção de Gilgamesh está no escrever. Parece um cliché, mas não. É ao escrever a sua história nas tabuínhas de barro que ele encontra a imortalidade.

Sérgio A. Correia said...

A morte é tão ilusória como a vida--eis um lugar-comum que se me vai tornando cada vez mais evidente à medida que o nosso inimigo ontológico, o tempo, vai passando por nós e nós por ele...