Arnaldo Saraiva, a quem vai dedicado este post, deu a conhecer a obra de Carlos Drummond de Andrade numa época, anos 60, em que em Portugal só havia interesse pela literatura francesa e pouco mais. Por via de Paris a cultura chegava a Portugal, melhor dizendo, Lisboa, Porto, Coimbra - capitais universitárias. Aí se procuravam livros, ou chegavam livros e se lia.
Arnaldo conta como leu Drummond pela primeira vez, na tradução francesa, e eu posso acrescentar aqui um pormenor pessoal: o tradutor foi grande amigo nosso, além de apaixonado pelas letras e artes brasileiras.Seu nome: Michel Simon, que, para não o confundirem com o grande actor do mesmo nome apelidavam carinhosamente de Michel Simon-Brésil. Tinha um programa na rádio: Aquarelle Brésilienne e fora o grande tradutor de Manuel Bandeira, e de outros grandes daquele tempo.
Uma vez por ano viajava de barco para o Brasil: fazia escala em Lisboa, e aqui, na Yorkhaus, ficava para visitar o Museu de Arte Antiga: o seu quadro de paixão um Bosch que ainda hoje podemos ir contemplar, como ele fez durante anos, fielmente.
A nossa amizade datou de um encontro de acaso, num TEE em que ambos regressávamos de Milão; ficou sentado ao meu lado e espreitava o que eu ia escrevendo num caderno; a dada altura interrompeu-me, em português com sotaque: ah, esse poema é belo!
Desculpou-se pela indiscrição: de idade podia ser meu pai, e ficámos a conversar, ora em francês, que sempre falei bem, ora em português, o que lhe dava prazer; os textos iriam ser mais tarde publicados em Irreflexões, e ele falou-me dos seus amigos brasileiros e da tradução de Manuel Bandeira, que me enviou depois.
Quando eu ia a Paris falava com ele; levou-me na Rue Mabillon, num sábado, ao restaurante onde os brasileiros se encontravam, para comer a boa feijoada e tocar e cantar pela tarde fora com uma alegria que animava o exílio forçado de alguns.
E quando ele parava em Lisboa lá íamos admirar o nosso Bosch de sempre.
Não conheci Drummond pela tradução dele, eu nessa altura estava a ler Clarice Lispector. Mas vou procurar agora, pois será decerto tão fiel e inspirada quanto a de Bandeira, que tenho aqui ao meu lado!
Paremos então no poema da Pedra, que deu origem, como explicou Arnaldo Saraiva a tanta discussão, a tanto comentário, a tanto espanto também, por algo de tão simples e aparentemente corriqueiro vir a causar tanto "barulho" literário e literal.
Eis o poema:
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Na realidade o que faz deste poema o grande desafio é a afirmação de que havia uma pedra no meio do caminho; uma afirmação simples e directa que grava uma imagem para sempre indelével, e que a repetição do verso ao longo do poema torna mais firme e intensa. Não mais sairá do nosso imaginário, pessoal e colectivo ( o poema fez caminho, na sociedade de então e ainda hoje, na nossa). O poema com a sua pedra.
Leio ou repito em voz alta (tão fácil de fixar) e não é pelo ritmo, pela repetição que o poema intriga, mais do que comove. Igual a um poema chinês, ou a um Haiku japonês, é a condensação da imagem, pedra e caminho, ou ainda o meio do caminho que tinha uma pedra, e aqui entra nova imagem, a que corta o caminho ao meio, quando devia estar (esperava-se) livre e desimpedido.
O meio do caminho: o meio da vida;
a pedra no caminho: o desgosto ou a contrariedade inesperada, que fez (ou não) impedir a continuação do caminho. Esta suspensão do destino do caminhante aumenta o mistério do que é dito: viu a pedra e seguiu adiante? tropeçou na pedra, caiu e levantou-se? Ou ficou demorando magoado no chão?
Tal como nos ditos orientais a resposta não é dada, tem de ser encontrada por cada um, precisamente no seu caminho de leitura....a pedra, para nós, é o próprio poema, a interpelar a nossa vida.
Aqui entra a imagem forte do inconsciente colectivo (diria Jung):
todos, ao longo da vida, e segundo Jung em especial "no meio" da vida (é banal falar da crise da meia-idade) tivemos, temos, teremos "uma pedra no caminho", uma crise que poderemos ou não ultrapassar.
Drummond já mais velho e sábio ( de "retinas fatigadas") evoca essa pedra que teve no caminho. Ultrapassou, pois escreve o poema, mas não esquece. Com as suas palavras condensadas em tão breves imagens abre o coração ao mundo, forçando o mundo a que faça como ele: revivendo o caminho, fixando a pedra que lá estava no meio, procurar entender o destino.
Pois é disso que trata a pedra, desde sempre (e poderia então falar da tradição alquímica...). Do entendimento do ser : o ser no espaço da vida, do seu caminho, mas mais ainda no tempo (e não vou citar Heidegger), daí que a imagem do meio adquira tanta importância.