Wednesday, July 26, 2006

Depois da Agua o Fogo


4
Y lo que decimos que se a de imitar
por el matrimonio que se a de haçer
no quiero lo ignores pues lo has de saber
que es el sol perfetto y el mas singular
no engannen los sabios con disimular
que el sol y la luna á la obra conviene
porque en sí la luna y el sol contiene
y la esperiencia se lo ha de mostrar.

5
Entiende ó operante que es menester
que eetos dos juntos de quien e hablado
hembra y macho los emos nombrado
porque es matrimonio de hombre y muger
encierralos luego sin mas detener
no le estorues la muerte secreta
que caussa la vida muy mas perfeta
segun por la obra podras conoçer.


Adiante, nas estrofes eguintes, se passa então à chamada via seca, obra do fogo; e as indicações prendem-se com o saber regular a temperatura certa desse fogo, para que a obra não se perca.
A noção de "medida" é muito sublinhada, como a de ordem, equilíbrio, que a balança representa, harmonia, enfim.
Tem de ser harmonioso e nunca precipitado o caminho da via filosofal, seja qual for o entendimento que se tenha dela.

15
Tendrás en memoria los grados del fuego
a donde el infante se nutra y cresca
....
19
Si mas adelante quisieres passar
al ultimo grado y perfetto balor
aumentale el fuego con mucho temor
que no ay otra forma jamas que ensenãr
de blanca muy roja se te a de mostrar
aquella donçella de todos nombrada
y aqui se te muestra la obra acabada
si saues la obra de multiplicar.

Um texto alquímico deve ser lido, tal como as gravuras, em função de conceitos ou imagens nucleares.
Assim vimos apontados os princípios complementares (macho e fêmea, sol e lua, negro e branco) ; o casamento químico, na dissolução da água; a fixação do filho (a pedra filosofal) na obra do fogo; e concluída a obra com sucesso a "multiplicação" como marca final. Pois do Um nascerão Muitos, em devida proporção:

23
....
no hierres la forma de multiplicar
pues es con mercurio del bulgo mas fino
la forma y el pesso tendras de contino
escrito en tu pecho con mucho contento
y desta una parte con diez no te miento
sera todo lapis perfecto y muy fino
24
de lo postrero assi multiplicado
se tiene otra vez de multiplicar
un pesso con çiento del mismo vulgar
como primero lo tienes obrado
y todo será mediçina forçado
con que metales agora curemos
y al mismo mercurio tambien si queremos
de la imperfection perfecto acabado.

Já nas últimas estrofes ( são 28 ) se erguem louvores à Trindade, acrescentando um tom piedoso, respeitador, ortodoxo que possa garantir sossego e boa consciencia tanto a quem escreve como a quem lê, ou pratica.
Pelo caminho ficaram os princípios, os elementos, as cores,a conjunção como fase primordial, até se chegar ao elixir, ou à pedra , e à multiplicação de benesses que a sua descoberta proporciona.

Bibliografia, para selecção e entendimento psicológico da Arte Real da Alquimia: JOHANNES FABRICIUS,The Medieval Alchemists and their Royal Art, 1976

LUANCO, LA ALQUIMIA...


Um acaso feliz permitiu-me encontrar a obra de Luanco sobre a Alquimia em España, repositório de descrições de códices e transcrições de textos encontrados nas bibliotecas de Madrid, de Sevilha e outras. É um volume precioso para os estudiosos de alquimia que não possam, como ele fez, dedicar-se aos arquivos que percorreu para dar o seu contributo de grande erudição nestes domínios.
O volume que cito é a reedição fac-similada dos dois volumes publicados em 1889 e 1897, na EDITORIAL ALTA FULLA, de Barcelona.Do seu conteúdo seleccionarei, com tempo, um dos códices mais interessantes, as COPLAS DE DON LUIS DE ÇENTELLAS( sic ).
Recordo, para entendidos que, como disse um sábio que Luanco, ele próprio decano de química e Reitor da Universidade de Barcelona, gostou de citar, a química actual é " a filha sábia de uma mãe louca": la hija sabia de una MADRE LOCA.
Don Luis viveu no século XVI, foi um dos três mais destacados alquimistas do seu tempo (primeira metade do século) juntamente com o Dr.Manresa a quem escreve, em carta datada de 1552, sobre matéria alquímica do interesse de ambos; Luanco acrescenta ainda Baltazar de Zamora como igualmente distinto.Eis a primeira das "coplas"sobre a pedra filosofal:

1
Toma la dama que mora en el çielo
ques hija del sol sin duda ninguna,
y aquesta prepara en bagno de Luna
do labe su cara de su negro velo
despues si pudieres al sol y al ielo
en el mismo banno la tenga en prission
hasta que purgada de su imperfeccion
nos sea lucero acá en este suelo.

Desde logo surgem o sol e a lua como pai e mãe da Obra que vai decorrer, por via húmida (em banho, e não em fogo) até que a perfeição conseguida se transforme em astro iluminando este mundo.
A Pedra é feminina, referida como "dama" e a não ser confundida com qualquer espécie animal ou vegetal - como o autor explicará na segunda e na terceira estrofes. É esta descrição feminina da Pedra Filosofal que levará Jung, nos seus estudos, a identificá-la com uma projecção da ANIMA do adepto.

2
No entiendas que es obra de algun animal
ni menos es planta que nace en el suelo
mas es una dama que vive en el cielo
de allí nos la baxan esta obra real
y para nosotros es tan natural
que nuestros cuerpos con ella curamos
y los imperfectos perfectos tornamos
de todos secretos el mas principal.

3
Y quando tu bieres la dama hermossa
así preparada por nuestro artifiçio
has que la pongan en otro exerçiçio
á donde se vea tan maravillossa.
Juntalda luego con la otra cossa
por el matrimonio do se a de engendrar
el hijo mas noble y mas singular
que el padre y la madre y mas preciossa.


A referencia ao "matrimónio" e ao filho que dele há-de nascer é o que permite que se defina a conjunção de opostos (sol e lua,água e fogo, negro e branco,etc.) como o processo mais subtil de que nascerá o philius philosophorum, que podemos ver representado em tantas e tantas gravuras antigas.
Adiante o alquimista explicará ao adepto que se trata de macho e fêmea e que na dupla dimensão física e metafísica se entenderá o processo.Com o passar do tempo, e o receio aumentado de perseguições, dado que existiram e não foram poucas, a linguagem alquímica se "espiritualizará" mais, e se tornará mais confusa e de algum modo esvaziada do que podia ser o seu alcance profundo. A Perenelle de Flamel, companheira da Obra, Maria Profetiza, iniciada e iniciadora, desaparecerão por trás de uma simbólica pretensamente divina onde até Jesus e a Virgem como representações da Pedra terão o seu lugar.

Monday, July 03, 2006

O Soneto, com Herberto Helder

Em OFÍCIO CANTANTE ( 1953-1963 ), Portugália Editora, 1967 encontramos uma recolha da poesia com que Herberto Helder começava a renovar o país literário. Não por acaso o livro começa com uma citação de Michaux:
"Je ne peux pas me reposer, ma vie est une insomnie, je ne travaille pas, je ne dors pas ...tantôt mon âme est debout sur mon corps couché, tantôt mon âme couchée sur mon corps debout, mais jamais il n' y a sommeil pour moi...car cherchant, cherchant et cherchant, c'est dans tout indifféremment que j'ai chance de trouver ce que je cherche puisque ce que je cherche je ne le sais".
Estamos perante o labor do lê, lê e relê dos alquimistas e do esforço da contemplação e da descoberta - através de uma procura incessante.
Logo no primeiro conjunto dos poemas aparece - e de novo, julgo que não por acaso, mas por "coincidencia feliz" - a releitura transformadora do célebre soneto de Camões, de marca mística, platónica, com o seu primeiro verso tão intenso que se torna avassalador fixando-se para sempre na memória.

Eis como Herberto o leu e releu, caminhando por dentro do soneto como quem caminha, insomne, por dentro de um labirinto:

" ' Transforma-se o amador na coisa amada' com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro.Traz ruído
e silêncio.Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador.Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.


Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta.O amador entra
por todas as janelas abertas.Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como no primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimenta
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor ".


Da espiritualidade mística, conceptual, de Camões à fisicalidade, à corporificação, da experiência do amador e da amada, todo um processo criador tem lugar de que vamos, gradualmente, fazendo parte: o corpo está presente, os elementos, as estações, e o grito, que remete também ele não só para a explosão do amor como para o primeiro grito de todos, o primordial do Verbo quando a divindade ( simultâneamente amador e coisa amada ) explode no desdobramento do universo criado. Do dois que se deseja Um chegamos no fim do poema ao entendimento do Um que se descobriu dois, no silêncio "do mundo e do amor".

Sunday, July 02, 2006

Mais Leituras, com Reckert



Pois é verdade, podemos seguir o rasto do Livro do Amigo e do Amado, pelo século XX, em Cesário Verde, e pela mão de Stephen Reckert que não deixa cair no esquecimento a obra deste poeta.
Em UM RAMALHETE PARA CESÁRIO,1987, somos levados a um conjunto de fontes, sendo por vezes Cesário a própria fonte, como no capítulo relativo a Cesário Verde e Álvaro de Campos "ENTRE QUALQUER CAIS E O CAIS ".
No capítulo seguinte, "SUBITAMENTE - QUE VISÃO DE ARTISTA! " o percurso vai de Baudelaire a Cesário e à Arte de 'Fazer Novo'.
Concordo com o que diz o autor, "toda a viagem- mesmo uma modesta deambulação sem meta predeterminada- pode e deve ser também aprendizagem.O 'não~evoluo:viajo' de Fernando Pessoa não passa de uma boutade, típica da ironia mistificadora de quem o disse.FAHREN é sempre ERFAHREN, e quem não aprendeu não viajou, deslocou-se apenas" (as maiúsculas são minhas ).
Nesta viagem de Baudelaire a Cesário descobrimos então como as gerações de criadores alimentam o seu imaginário recuperando e transformando os conteúdos poéticos uns dos outros.
O caso interessante que desejo citar é o do poema de Baudelaire LE SOLEIL e do último verso em que "a alma do poeta baloiça 'sans mâts, sur une mer monstrueuse et sans bords,'" ( Reckert, p. 48 ) ; um verso que será desdobrado por Cesário, segundo Reckert nota, em "terrível visão final das 'marés de fel, como um sinistro mar', em o SENTIMENTO DUM OCIDENTAL, e ainda no 'mar sem praias' de SETENTRIONAL."
E aqui surge então a interessantíssima observação, em rodapé:
" Trata-se neste último poema de um amor grande como um mar sem praias : eco fortuito de Ramon Llull : Amor és mar tribulada...que no ha port ni ribatge" ( in Libre d'Amic e Amor ), Reckert, p. 48.

O imaginário português é atravessado pelo contexto ibérico, lírico, filosófico e religioso ( místico ) ainda no nosso tempo, de forma mais directa ou mais fortuita, mas sempre portadora da informação que as viagens como esta nos permitem.
Escreveu um amigo no seu Blog, de título sugestivo HEAVENTREE: Travel broadens the mind. Não podia estar mais certo. E ler e estudar são formas de viagem, só viajando é possível comparar, e comparando crescer e aprender.

Saturday, July 01, 2006

Mais Leituras



Aqui ficam mais leituras para estes assuntos abordados:

LEÃO HEBREU ( Iehudah Abrabanel ), DIÁLOGOS DE AMOR, 2 vols., texto fixado, anotado e traduzido por Giacinto Manuppella ,ed. INIC, 1983.

"Mensagem de amor em clave filosófica aberta para um cauteloso sincretismo clássico e medieval " assim define o texto G.Manuppella.

Luis de Camoes, o Soneto mais estudado

A quem tenha lido o Livro do Amigo e do Amado de Raimundo Lúlio este soneto de Camões parecerá desde logo ter uma mesma linha de reflexão neo-platónica e simbólica :

"Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minh'alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia
que, como um acidente em seu sujeito,
assi com a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma".

Citando uma estudiosa camoniana, MARIA DE LURDES SARAIVA, que procedeu à edição da Lírica completa de Camões na BIBLIOTECA DE AUTORES PORTUGUESES da Imprensa Nacional-Casa da Moeda ( 1980 ) : " A densidade ideológica desafia a condensação de qualquer perífrase ".Maria de Lurdes, embora aluda ao platonismo que parece evidente, não recusa a ideia de uma assimilação das doutrinas aristotélicas de ESSÊNCIA e ACIDENTE : " a essência de Aristóteles é a matéria, mas a matéria é categoria anterior à realidade que, só pela pela inteligência ou pela passagem do virtual ao real ( o acidente ) se concretiza e realiza " ( Lírica II, p. 265 ).
Haveria aqui muito a discutir.
Mas deixo a sugestão das leituras que, como as de Lúlio, reforçam a dimensão poética mais esotérica, oriunda das anteriores correntes de gnosticismo e neo-platonismo bem conhecidas em Portugal, a que se poderia ainda acrescentar, como Helder Macedo defendeu para a MENINA E MOÇA uma dimensão judaizante.

Vejamos de novo Lúlio:

95.

Se ausentó el amado del amigo, y el amigo lo buscó con sus pensamientos.Y preguntaba por él a la gente con palabras de amor.
...

96.

La luz de la habitación del amado iluminó la del amigo, para expulsar las tinieblas y llenarla de placeres y pesares y pensamientos.
Y el amigo vació su habitación para que cupiese su amado.
...

A luz da casa do Amado expulsa as trevas da casa do Amigo ; esta depois de esse FIAT adquire uma nova dimensão de "actualidade" e "realidade" : com os prazeres e os sofrimentos e os pensamentos próprios do" amador da coisa amada", da "casa amada", se me permitem o trocadilho que o texto mesmo pede, e aqui como em Camões ou no Cântico dos Cânticos pode ser a casa, a esfera de Deus, tanto quanto uma desejada e amada pessoa real.