Tuesday, May 23, 2006

Alquimia e Misticismo


" Todos os místicos falam a mesma língua,pois vêm do mesmo país", escreve Evelyn Underhill.Pois a língua dos alquimistas, e o país de onde eles vêm é este mesmo, dos místicos. E a definição mais adequada de alquimia identifica-se com a definição geral de misticismo, e com a definição especial de misticismo secular,enquanto forma "marginal", "laica", "secularizada" da experiencia mística, por não se integrar em nenhum contexto tradicional sistematizado, antes mantendo-se como forma de leitura ou vivência aberta,heterodoxa.
O objectivo da alquimia era a produção da Pedra Filosofal, ou do Elixir de Vida, ou de alguma outra variante filosófica dos mesmos, com múltiplos outros nomes.Mas a procura da Pedra é o equivalente da procura da perfeição,do conhecimento e identificação com um absoluto imanente, no aqui e agora da vida, se tal for possível.
Esta procura, como também Underhill observa,é característica comum a místicos e alquimistas, pertencendo aqueles, neste caso ao modelo que ela define como do grupo C., e cito:"Aqueles que têm consciência do divino como Vida Transcendente Imanente no mundo e no eu, e de uma estranha semente espiritual dentro de si, através de cujo desenvolvimento o homem,elevando-se a níveis superiores de carácter e consciência atinge o seu objectivo..."
Nas INSTRUÇÕES ESPIRITUAIS, de 1298, Meister ECKHART afirma que um espírito "renunciado" pode tudo.
E Santo Alberto Magno, que foi considerado místico, cientista e alquimista, escreve, no TRATADO DE ALQUIMIA: "Deus pode ser encontrado em toda a parte."
Pela alquimia, como pela experiência mística,se procura obter a perfeição, a completude neste mundo, nesta vida que é dada.É aqui e agora que se procura a realização, por esforço consciente e paciente da fé e da vontade.
Talvez não se possa considerar o alquimista um "filho de Deus" legítimo, no sentido em que ECKHART usou a palavra.Mas de Deus é sem dúvida um filho ilegítimo e como tal merece ser estudado.

Ler mais: in Y.K.Centeno, Literatura e Alquimia,Presença,1987 ; Evelyn Underhill,Mysticism, Londres; Herbert Silberer,Probleme der Mystik und ihrer Symbolik, 1961.

A ilustração é do belíssimo fac-simile do LIBRO DE LA FELICIDAD, nas ed.MOLEIRO, mandado traduzir do árabe por ordem do sultão Murad III ( 1574-1595 ).O original pertence à B.N.de França, datado de 1582.

1 comment:

carolus augustus lusitanus said...

O que há de mais místico na alquimia é que a Pedra Filosofal pode (mesmo) ser obtida através de uma aturado labor (ora lege, lege, relege, labora…) em que o «esforço consciente e paciente da fé e da vontade» conduz o Adepto ao país dos pomos de ouro, esse país imaginário que será o império real onde todos os cidadãos falam a mesma língua: a gaia ciência, a língua das aves. Pois não será o místico essa ave rara que sobrevoa os enigmas da língua diplomática, da cabala, que era, segundo o abade Perroquet, e é, uma introdução ao estudo de todas as ciências? A cabala é, utilizando as palavras de Fernando Pessoa, o conhecimento saído das «escrituras mágicas que serviram de base à elaboração de uma língua nova que permite exprimir e explicar a natureza de todas as coisas simultaneamente», tornando-se assim um instrumento de uso difícil, já que é preciso o insight para poder penetrar os arcanos do seu vocabulário.

Embora, como diz Yvette Centeno, a língua falada pelo alquimista e pelo místico seja a mesma, as imagens são, no entanto, veiculadas por práticas e discursos diferentes, a que ouso ligar, grosso modo, as duas vias da filosofia hermética: a via húmida, através da suspensão das «faculdades individuais condicionadas pelo corpo e pelo cérebro», superando assim «o obstáculo que elas constituem»; e a via seca, que partindo dessas faculdades e «submetendo-as a uma acção tal que, como consequência, fique virtualmente assegurada a possibilidade da separação e da ressurreição na Vida» (Evola, Tradição Hermética), correspondendo a via húmida à ascese mística e a via seca à prática alquímica. Senão ouçamos Evola: «a dificuldade por via seca consiste em superar a barreira constituída pelas faculdades comuns, sem mais ajuda que essas mesmas faculdades, o que […] implica uma especial qualificação privilegiada, uma espécie de ‘dignidade natural’, ou uma iniciação preliminar»; por outro lado, «por via húmida, especialmente quando os meios utilizados são violentos e externos, a dificuldade encontra-se precisamente em conservar a consciência que se vê bruscamente privada do apoio do ‘fixo’ ou corpo», mas que uma vez superada eleva «a níveis superiores de carácter e consciência» (E. Underhill, citada por Y. Centeno), atingindo assim «o seu objectivo». Se se fizer uma leitura atenta, chega-se à conclusão que estes dois estados são intermutáveis, embora possam ser mais ou menos acentuados num ou noutro caso, pois a procura é a mesma…

O objectivo espiritual da alquimia é a coniunctio oppositorum de que falam os Adeptos, para quem, e contrariamente ao que vem escrito num certo tipo de discurso moderno, «a iniciação não possui um conteúdo místico, de êxtase da alma cindida do corpo, mas é no corpo que se realiza e passa, transformando-o no veículo da vidência da alma». (A. Telmo, História Secreta de Portugal). A iniciação é, portanto, nesta linha de pensamento, a união mística corpo/alma ou, em termos herméticos, a conjugação do Sol e da Lua.

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

Fernando Pessoa, Mensagem, ‘Iniciação’