Albrecht Duerer
Dele dizia dizia
Vasari, em 1568, que a sua mestria espantava o mundo inteiro. Tantos desenhos,
tantas gravuras e pinturas,
sempre inovando até ao
fim da vida. Em Nuremberg, sua cidade natal, ilustra o Apocalipse de São João,
tornando-se
o primeiro artista
ilustrador e editor de uma obra
em que o texto se
submete à imagem, algo de nunca visto até ele.
A gravura de Adão e
Eva, de 1505, dá origem em 1507
a uma pintura
idêntica, em que ressalta a proporção
que estuda no corpo
humano. Escreverá sobre isso,
anos mais tarde, num
ensaio: Sobre a Proporção Humana
(1520-1522). Mas
talvez não seja tanto a sua mestria mas antes
a sua dimensão
simbólica e alegórica o que até hoje fascina quem contempla a sua obra, desde a
Melancolia I até ao Adão e Eva de que me vou ocupar.
O que há nestas
gravuras de indicação silenciosa que é preciso decifrar? Que segredos, que
harmonias encontradas, que pontos
que nos descentram das
imagens desenhadas permanecendo enigmáticas?
Dizem os críticos: é a
mistura sábia de alegoria e realismo,
como num sonho vivido.
A gravura da Madonna com o Macaco revela influência
italiana, numa época em que os macacos eram animais de companhia,
como os cães ou os
gatos. Atribui-se a esta gravura a data provável de 1498. E é interessante
compará-la ao Adão e Eva já citado,
como fazem os críticos. Pela associação que se faz do macaco à mulher, Eva,
pecadora, ou neste caso uma Virgem de desenho puríssimo.
Era minha intenção
reflectir sobre o que chamo de bestiário alquímico na obra de Duerer. Temos a
imagem do Filho Pródigo entre os Porcos,
(com data provável de 1496) gravura de um realismo quase brutal, o homem de
joelhos, frente ao casario da sua aldeia, mas em que os porcos são a sua
figuração imaginal, um deles visto a meio do corpo do homem e quase fundido com
ele.
Da mesma presumível
data, uma gravura de uma porca monstruosa, nascida como é relatado num texto de
Sebastian Brant, autor célebre da Narrenschiff
( Nave dos Loucos ) com uma cabeça, quatro orelhas, dois corpos, oito pés,
apoiando-se em seis deles, e duas línguas. Um animal idêntico, embalsamado, foi
exibido em Nuremberg, em 1496, na Páscoa.
Este tipo de
acontecimentos, anti-naturais, era visto como aviso de Deus para grandes
catástrofes, e na verdade pressente-se na gravura de Duerer o horror do que
pode vir a ser um fenómeno assim.
Tempo de medos e
bruxarias, Duerer também o apresenta, na gravura das Quatro Bruxas, essa sim com data confirmada, de 1497, mas que a
mim, na reprodução que tenho me parece 1491.
Seja como fôr,
anterior a 1500. O diabo espreita, do lado esquerdo, escondido no escuro, e a
caveira e uns ossos no chão, aos pés das bruxas, sublinham o perigo e o horror.
Trata-se de uma iniciação, revertendo a imagem das Três Graças, mais conhecida,
em que as bruxas se apossam da jovem que tem uma grinalda na cabeça.
A esfera vista acima é
uma romã, símbolo de fertilidade. Quanto às iniciais, não há opinião firmada,
mas podem significar Ordo Graciarum
Horarumque (Ordem das Graças e das Horas).
Noutra gravura, O Monstro Marinho, a que Duerer se
refere em 1520 no seu Diário, o monstro mais parece um leito em que se reclina
uma mulher voluptuosa, dando a ideia que é mais a ela que o artista quer que se
dê atenção, tratando o seu corpo com especial cuidado e erotismo. Por sua vez o
monstro, cabeça de velho barbado, não mete medo a ninguém e não sentimos que se
trate de um rapto, mas de uma expressão de desejo amoroso.
O chamado Sol Da Justiça (data suposta, 1499), tem
como figuração simbólica um Cristo-Leão, sabendo nós que o Leão é o supremo rei
da criação, e que nesta gravura se aponta para o fim dos tempos, quando o “Sol da Justiça” abaterá a sua
espada sobre a raça humana, pecadora.
Outra gravura, com
simbolismo animal, tradicional, é a da Bruxa
Cavalgando de Costas numa Cabra (data suposta, 1500).
Voa, sobre crianças
que brincam pelo chão, lembrando um pouco as da Melancolia I.
Embora não se tratasse de um brasão de alguma
casa nobre, Duerer concebeu numa gravura provavelmente de1500, um brasão que os
críticos de arte definem como grandioso e de rara beleza: Um galo enorme, de
asas abertas, sobre um leão mais pequeno, de garras estendidas, e parecendo
emitir um rugido pouco intimidatório. À época, dizia-se que só um galo poderia
derrotar um leão.
Interessante sem
dúvida, para o nosso estudo do Bestiário de Duerer, não encontro aqui
referências alquímicas, pois nas gravuras mais célebres, como as de Michael
Maier, na Atalanta Fugiens, o que se
vê, na chamada “obra da mulher” são galinhas
espalhadas pelo chão, fazendo todo o sentido, pois são as galinhas que
põem os ovos da fertilidade que se atribui também à Obra hermética. Seria a
Fénix, na gravura de Duerer, que deveria estar, em vez do galo...e assim se
entenderia o simbolismo maior que se sobreporia à nobreza do leão.
Mas adiante.
Veremos cavalos,
sempre de porte magnífico, veados, galgos, em muitas outras gravuras que já não
irei detalhar, pois se distinguem mais pela dimensão e técnica que os críticos
apontam, do que por alguma dimensão simbólica. E os detalhes da Mestria deixo a
quem sabe mais do que eu para poder comentar. Temos um São Jorge a pé, de 1502, com o dragão que matou, estendido atrás no
chão.
Embora não referido
nos Diários de 1520-21, da viagem feita aos Países-Baixos, o Brasão com uma Caveira evoca o tema do
Amor e da Morte, em tempos de guerra, que deram à cidade de Nuremberg a sua
independência territorial, em 1503. A figuração da caveira tem também, na
linguagem alquímica, o sentido de nigredo, aludindo ao negro da Obra ( ou da
alma) em hora de depressão.
Em 1520, Duerer aponta no seu Diário: “também
dei ao representante de Portugal um Santo
António, uma Natividade e A Cruz. Gravuras de evocação religiosa,
que na opinião dos críticos devem ter sido prenda de Ano Novo. Na época de
Duerer o primeiro dia do ano era celebrado no Natal.
Assim chego à gravura
que mais me chamou a atenção, tinha sido colocada num post pelo pintor Pedro
Chorão, e de imediato me fascinou, tal e qual como a da Melancolia I.
É a de Adão e Eva, datada de 1504 numa tabuleta
que tem também a assinatura do artista, e pende dum ramo de árvore que Adão
segura enquanto agarra num bocado do fruto proibido. O fascínio é imediato,
pois o ramo tem num galho um papagaio, ave que fala, colocada na imagem dum
Adão que sempre obedeceu, sem abrir a boca, a não ser quando Jeová os descobre
e interroga sobre a árvore de que tinham comido. Ironia ? Aviso sobre o pecado?
Do lado de Eva a serpente, e o fruto que lhe coloca na mão. Apesar de tapados,
adivinham-se os sexos, nestes corpos belamente desenhados, expondo a nudez de
que Duerer era visível apreciador, já noutras gravuras anteriores. Quanto à
iconografia animal, vemos um veado, cuja cabeça espreita atrás da árvore, uma
vaca deitada no chão, de que sobressaem apenas a cabeça e patas dianteiras, um
coelho, e um gato, frente a um ratito pequeno, cuja cauda o pé de Adão está a
pisar.
O rato e o gato? Uma
brincadeira de Deus com a criação? De Duerer com o Criador?
Na gravura de São
Jerónimo no seu estúdio (de 1514) dobrado sobre a livro que está a escrever, é
o leão que sobressai como figura majestática, com um cão de olhos fechados ao
pé, respeitando deste modo um emblema que é conhecido e usado nos tratados em
que impera o simbolismo real, imponente, solar do rei dos animais. Não falta,
na gravura, a caveira da meditação, junto à janela. Sabedoria e Moral seriam
talvez aqui os comentários mais adequados, mas a gravura é bela em si mesma,
como são as que surgem, mais tarde, no Mutus
Liber alquímico, em que a Obra se completa com leitura, trabalho e oração.
Do mesmo ano de 1514
temos então a célebre Melancolia I,
que se supunha na época representar o desgosto, ou o cansaço, da
impossibilidade de se alcançar alguma vez a sabedoria divina, ou os segredos da
natureza, devido às limitações do conhecimento humano (Strauss, p. 166).
Acrescenta um dos seus
estudiosos (Woelfflin, 1905, p.247): “ trata-se de uma mulher alada, sentada
num degrau, encostada à parede, perto do chão; com ar de quem não fazia tenção
de se voltar a erguer; mórbida, com ar de desagrado, quase gelada; só o seu
olhar parece vago; Mas à sua volta, tudo está vivo; um caos de objectos, todos
desarrumados. A inspiração veio dos escritos de Marsilio Ficino, que dissera ‘
todos os homens que são excelsos nas artes são melancólicos’ “.
O padrinho de Duerer
tinha publicado as Cartas de Ficino em 1497, e aí tinha o autor descrito em
pormenor os detalhes do carácter “saturnino” (melancólico), bem como salientara
a relação da melancolia dos homens de génio com a doutrina mística do Neo-Platonismo.
Strauss contudo
acrescenta que na gravura sobressaem outros aspectos: “ ...estes coincidem mais
com o primeiro dos três tipos de melancolia descritos em De Occulta Philosophia de Agrippa von Nettersheim, obra já conhecida em 1510, embora só com edição
completa em 1531. Seria então um exemplo, esta Melancolia I, da “Melancolia imaginativa”.
De Duerer, nas suas
notas, há apenas uma indicação quanto aos objectos que rodeia a figra da
mulher: “as chaves significam poder, a bolsa significa riqueza” (Strauss,
p.168).
Poderíamos reflectir
sobre outros significados dos objectos presentes: o cubo e a esfera, por
exemplo: a perfeição sólida da Pedra
versus a instabilidade da Esfera, salienta Strauss. Mas a esfera,
enquanto forma perfeita, circular, é também emblemática, na alquimia, da
perfeição alcançada. E o imaginário alquímico era igualmente celebrado na época
de Duerer, junto com o Bestiário de que ele também se serve, na ilustração do
que faz.
Repare-se que junto ao
cubo está uma escada que leva ao alto da casa, como no Mutus Liber do século XVII teremos uma mesma escada a fechar o
segredo revelado do Livro: a escada da sabedoria divina alcançada pelos
adeptos.
A gravura do Rapto de Proserpina num Unicórnio,
datada de 1516, fecha para estas minha notas, a busca de representações
simbólicas, nas gravuras de Duerer. Animal considerado mágico e feroz, que as
bruxas cavalgavam, está aqui apresentado de facto com ferocidade, o que é
natural, pois se trata de um rapto violento, inesperado, segundo a lenda.
Plutão é o deus maléfico e o animal segue com ele, por sua ordem.
Bem diferente do
unicórnio das tapeçarias da Dama e a
Licorne em que sobressai uma doçura de encantamento místico, alusivo à
pureza que doma e conquista toda a violência que o animal emblemático poderia
ter.
Duas visões, dois
sentidos.
Mas o que há de
fascinante numa obra de arte é precisamente o conjunto de leituras que nos é
oferecido e guardaremos na memória de evocação da arte e dos artistas.
Y. Centeno, 2021