Tuesday, September 07, 2021

 

Albrecht Duerer

Dele dizia dizia Vasari, em 1568, que a sua mestria espantava o mundo inteiro. Tantos desenhos, tantas gravuras e pinturas,

sempre inovando até ao fim da vida. Em Nuremberg, sua cidade natal, ilustra o Apocalipse de São João, tornando-se

o primeiro artista ilustrador e editor de uma obra

em que o texto se submete à imagem, algo de nunca visto até ele.

A gravura de Adão e Eva, de 1505, dá origem em 1507

a uma pintura idêntica, em que ressalta a proporção

que estuda no corpo humano. Escreverá sobre isso,

anos mais tarde, num ensaio: Sobre a Proporção Humana

(1520-1522). Mas talvez não seja tanto a sua mestria mas antes

a sua dimensão simbólica e alegórica o que até hoje fascina quem contempla a sua obra, desde a Melancolia I até ao Adão e Eva de que me vou ocupar.

O que há nestas gravuras de indicação silenciosa que é preciso decifrar? Que segredos, que harmonias encontradas, que pontos

que nos descentram das imagens desenhadas permanecendo enigmáticas?

Dizem os críticos: é a mistura sábia de alegoria e realismo,

como num sonho vivido.

 A gravura da Madonna com o Macaco revela influência italiana, numa época em que os macacos eram animais de companhia,

como os cães ou os gatos. Atribui-se a esta gravura a data provável de 1498. E é interessante compará-la ao Adão e Eva já citado, como fazem os críticos. Pela associação que se faz do macaco à mulher, Eva, pecadora, ou neste caso uma Virgem de desenho puríssimo.

Era minha intenção reflectir sobre o que chamo de bestiário alquímico na obra de Duerer. Temos a imagem do Filho Pródigo entre os Porcos, (com data provável de 1496) gravura de um realismo quase brutal, o homem de joelhos, frente ao casario da sua aldeia, mas em que os porcos são a sua figuração imaginal, um deles visto a meio do corpo do homem e quase fundido com ele.

Da mesma presumível data, uma gravura de uma porca monstruosa, nascida como é relatado num texto de Sebastian Brant, autor célebre da Narrenschiff ( Nave dos Loucos ) com uma cabeça, quatro orelhas, dois corpos, oito pés, apoiando-se em seis deles, e duas línguas. Um animal idêntico, embalsamado, foi exibido em Nuremberg, em 1496, na Páscoa.

Este tipo de acontecimentos, anti-naturais, era visto como aviso de Deus para grandes catástrofes, e na verdade pressente-se na gravura de Duerer o horror do que pode vir a ser um fenómeno assim.

 Tempo de medos e bruxarias, Duerer também o apresenta, na gravura das Quatro Bruxas, essa sim com data confirmada, de 1497, mas que a mim, na reprodução que tenho me parece 1491.

Seja como fôr, anterior a 1500. O diabo espreita, do lado esquerdo, escondido no escuro, e a caveira e uns ossos no chão, aos pés das bruxas, sublinham o perigo e o horror. Trata-se de uma iniciação, revertendo a imagem das Três Graças, mais conhecida, em que as bruxas se apossam da jovem que tem uma grinalda na cabeça.

A esfera vista acima é uma romã, símbolo de fertilidade. Quanto às iniciais, não há opinião firmada, mas podem significar Ordo Graciarum Horarumque (Ordem das Graças e das Horas).

 Noutra gravura, O Monstro Marinho, a que Duerer se refere em 1520 no seu Diário, o monstro mais parece um leito em que se reclina uma mulher voluptuosa, dando a ideia que é mais a ela que o artista quer que se dê atenção, tratando o seu corpo com especial cuidado e erotismo. Por sua vez o monstro, cabeça de velho barbado, não mete medo a ninguém e não sentimos que se trate de um rapto, mas de uma expressão de desejo amoroso.

 O chamado Sol Da Justiça (data suposta, 1499), tem como figuração simbólica um Cristo-Leão, sabendo nós que o Leão é o supremo rei da criação, e que nesta gravura se aponta para o fim dos tempos,  quando o “Sol da Justiça” abaterá a sua espada sobre a raça humana, pecadora.

 Outra gravura, com simbolismo animal, tradicional, é a da Bruxa Cavalgando de Costas numa Cabra (data suposta, 1500).

Voa, sobre crianças que brincam pelo chão, lembrando um pouco as da Melancolia I.

 Embora não se tratasse de um brasão de alguma casa nobre, Duerer concebeu numa gravura provavelmente de1500, um brasão que os críticos de arte definem como grandioso e de rara beleza: Um galo enorme, de asas abertas, sobre um leão mais pequeno, de garras estendidas, e parecendo emitir um rugido pouco intimidatório. À época, dizia-se que só um galo poderia derrotar um leão.

Interessante sem dúvida, para o nosso estudo do Bestiário de Duerer, não encontro aqui referências alquímicas, pois nas gravuras mais célebres, como as de Michael Maier, na Atalanta Fugiens, o que se vê, na chamada “obra da mulher” são galinhas  espalhadas pelo chão, fazendo todo o sentido, pois são as galinhas que põem os ovos da fertilidade que se atribui também à Obra hermética. Seria a Fénix, na gravura de Duerer, que deveria estar, em vez do galo...e assim se entenderia o simbolismo maior que se sobreporia à nobreza do leão.

Mas adiante.

Veremos cavalos, sempre de porte magnífico, veados, galgos, em muitas outras gravuras que já não irei detalhar, pois se distinguem mais pela dimensão e técnica que os críticos apontam, do que por alguma dimensão simbólica. E os detalhes da Mestria deixo a quem sabe mais do que eu para poder comentar. Temos um São Jorge a pé, de 1502, com o dragão que matou, estendido atrás no chão.

 Embora não referido nos Diários de 1520-21, da viagem feita aos Países-Baixos, o Brasão com uma Caveira evoca o tema do Amor e da Morte, em tempos de guerra, que deram à cidade de Nuremberg a sua independência territorial, em 1503. A figuração da caveira tem também, na linguagem alquímica, o sentido de nigredo, aludindo ao negro da Obra ( ou da alma) em hora de depressão.

 Em 1520, Duerer aponta no seu Diário: “também dei ao representante de Portugal um Santo António, uma Natividade e A Cruz. Gravuras de evocação religiosa, que na opinião dos críticos devem ter sido prenda de Ano Novo. Na época de Duerer o primeiro dia do ano era celebrado no Natal.

 Assim chego à gravura que mais me chamou a atenção, tinha sido colocada num post pelo pintor Pedro Chorão, e de imediato me fascinou, tal e qual como a da Melancolia I.

É a de Adão e Eva, datada de 1504 numa tabuleta que tem também a assinatura do artista, e pende dum ramo de árvore que Adão segura enquanto agarra num bocado do fruto proibido. O fascínio é imediato, pois o ramo tem num galho um papagaio, ave que fala, colocada na imagem dum Adão que sempre obedeceu, sem abrir a boca, a não ser quando Jeová os descobre e interroga sobre a árvore de que tinham comido. Ironia ? Aviso sobre o pecado? Do lado de Eva a serpente, e o fruto que lhe coloca na mão. Apesar de tapados, adivinham-se os sexos, nestes corpos belamente desenhados, expondo a nudez de que Duerer era visível apreciador, já noutras gravuras anteriores. Quanto à iconografia animal, vemos um veado, cuja cabeça espreita atrás da árvore, uma vaca deitada no chão, de que sobressaem apenas a cabeça e patas dianteiras, um coelho, e um gato, frente a um ratito pequeno, cuja cauda o pé de Adão está a pisar.

O rato e o gato? Uma brincadeira de Deus com a criação? De Duerer com o Criador?

 Na gravura de São Jerónimo no seu estúdio (de 1514) dobrado sobre a livro que está a escrever, é o leão que sobressai como figura majestática, com um cão de olhos fechados ao pé, respeitando deste modo um emblema que é conhecido e usado nos tratados em que impera o simbolismo real, imponente, solar do rei dos animais. Não falta, na gravura, a caveira da meditação, junto à janela. Sabedoria e Moral seriam talvez aqui os comentários mais adequados, mas a gravura é bela em si mesma, como são as que surgem, mais tarde, no Mutus Liber alquímico, em que a Obra se completa com leitura, trabalho e oração.

 Do mesmo ano de 1514 temos então a célebre Melancolia I, que se supunha na época representar o desgosto, ou o cansaço, da impossibilidade de se alcançar alguma vez a sabedoria divina, ou os segredos da natureza, devido às limitações do conhecimento humano (Strauss, p. 166).

Acrescenta um dos seus estudiosos (Woelfflin, 1905, p.247): “ trata-se de uma mulher alada, sentada num degrau, encostada à parede, perto do chão; com ar de quem não fazia tenção de se voltar a erguer; mórbida, com ar de desagrado, quase gelada; só o seu olhar parece vago; Mas à sua volta, tudo está vivo; um caos de objectos, todos desarrumados. A inspiração veio dos escritos de Marsilio Ficino, que dissera ‘ todos os homens que são excelsos nas artes são melancólicos’ “.

O padrinho de Duerer tinha publicado as Cartas de Ficino em 1497, e aí tinha o autor descrito em pormenor os detalhes do carácter “saturnino” (melancólico), bem como salientara a relação da melancolia dos homens de génio com a doutrina mística do Neo-Platonismo.

Strauss contudo acrescenta que na gravura sobressaem outros aspectos: “ ...estes coincidem mais com o primeiro dos três tipos de melancolia descritos em De Occulta Philosophia de Agrippa von Nettersheim, obra  já conhecida em 1510, embora só com edição completa em 1531. Seria então um exemplo, esta Melancolia I, da “Melancolia imaginativa”.

De Duerer, nas suas notas, há apenas uma indicação quanto aos objectos que rodeia a figra da mulher: “as chaves significam poder, a bolsa significa riqueza” (Strauss, p.168).

Poderíamos reflectir sobre outros significados dos objectos presentes: o cubo e a esfera, por exemplo: a perfeição sólida da Pedra  versus a instabilidade da Esfera, salienta Strauss. Mas a esfera, enquanto forma perfeita, circular, é também emblemática, na alquimia, da perfeição alcançada. E o imaginário alquímico era igualmente celebrado na época de Duerer, junto com o Bestiário de que ele também se serve, na ilustração do que faz.

Repare-se que junto ao cubo está uma escada que leva ao alto da casa, como no Mutus Liber do século XVII teremos uma mesma escada a fechar o segredo revelado do Livro: a escada da sabedoria divina alcançada pelos adeptos.

 A gravura do Rapto de Proserpina num Unicórnio, datada de 1516, fecha para estas minha notas, a busca de representações simbólicas, nas gravuras de Duerer. Animal considerado mágico e feroz, que as bruxas cavalgavam, está aqui apresentado de facto com ferocidade, o que é natural, pois se trata de um rapto violento, inesperado, segundo a lenda. Plutão é o deus maléfico e o animal segue com ele, por sua ordem.

Bem diferente do unicórnio das tapeçarias da Dama e a Licorne em que sobressai uma doçura de encantamento místico, alusivo à pureza que doma e conquista toda a violência que o animal emblemático poderia ter.

Duas visões, dois sentidos.

Mas o que há de fascinante numa obra de arte é precisamente o conjunto de leituras que nos é oferecido e guardaremos na memória de evocação da arte e dos artistas.

 Y. Centeno, 2021

 

 

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