Teresa Balté na Perve Galeria,
Leonor Beltrán na Casa da América Latina
Falemos primeiro de Teresa: expõe as suas aguarelas e
técnicas mistas, obras que o curador Carlos Cabral Nunes foi redescobrir,
datadas dos anos sessenta, na sua maioria, com as marcas de época de um
surrealismo colorido, expressionista quase, e lírico, sempre, que o pintor Cruzeiro
Seixas tinha em seu poder e gentilmente disponibilizou para esta grande
antológica numa galeria que é mágica, são espaços de uma Alfama arcaica
iluminada pela luz e pelo brilho da Arte, respirando por ali em liberdade.
Diz a pintora, num breve texto de 1992, a respeito destas
pinturas agora de novo exibidas, com o título de PINTAR AS COISAS:
“ Restaurar as ilusões, soltando a perspectiva ou conjugando
água e fogo, tinta e nervo. Exercitar a imaginação elástica. Desaguar na
enseada dos símbolos. Depois cortar a corda apodrecida e naufragar o papel nos
mares da China. Recriar então o caos (...) colar noutros espaços os lugares.
Olhar pelo golpe entre as pálpebras ou pelas cicatrizes que corrompem o tronco
do homem e da árvore, a folha-pluma-alma...até à náusea.
Gritar de novo. Já não cantar de manso. Porque a boca secou
e o discurso é artificial e artificioso. Descolar então. Voar sem rumo. Pelos
labirintos da vertigem. Pelo absurdo de não haver absurdo. Pela refluxa
nostalgia do abscôndito. Descolar ligeiramente as retinas”.
Sendo esta pintora também uma poeta de obra já longa, e
meditada, é às suas palavras que entendi entregar a reflexão sobre o que ali,
entre formas e rostos, e um certo e expressivo bestiário animal, expondo curvas de serpentes, asas de borboletas, agudas cabeças de pássaro,
que surgem do nada prontos, quem sabe, a devorar um rosto já de olhos fechados,
baleias humanizadas e expectantes, prontas a receber a chama já sem luz de um
Ícaro cadente, nas palavras que cito e que alguns belos poemas inéditos
pontuam, encontro afinal um dos caminhos: o que se encontra lá fora, que é
feito de tudo um pouco, do mais banal episódio ao mais profundo segredo. Nascem
monstros da treva, do negro da sua alma (nigredo dos alquimistas, marca da mutação) mas nas mãos de Teresa irão sofrer muitas transformações, cobre-os
de luz e côr, retira-lhes a máscara que os cobre, e tudo nestes quadros de
repente explode e dá-se à nossa frente um novo nascimento, o de um cosmos ao
mesmo tempo caos mas que alguma divindade por dentro iluminou.
Bem diferente é o caminho percorrido por Leonor Beltrán, pintora também ela já de longo percurso, não é o PINTAR DAS COISAS que ela expõe, mas sim o pintar da alma: não das coisas, podia ser, as coisas têm alma, cada uma a seu modo, como as plantas ou os animais.
Bem diferente é o caminho percorrido por Leonor Beltrán, pintora também ela já de longo percurso, não é o PINTAR DAS COISAS que ela expõe, mas sim o pintar da alma: não das coisas, podia ser, as coisas têm alma, cada uma a seu modo, como as plantas ou os animais.
Não. O que ali, finamente
desenhado a tinta da China, com lápis ou pincel, é um conjunto de meditações
todas elas viradas para dentro, um mundo esférico, por vezes inacabado, como se
de uma renda abandonada a meio se tratasse, um mundo circular que se procura
perfeito, seja a partir de um ponto que foi ponto inicial, no dizer de um
Nicolau de Cusa, ou resultante de um movimento que se desejou completo, Todo e
Uno, mandálico no sentido mais junguiano do termo.
Leonor chamou MOVIMENTO 2 ao
seu conjunto, que também ele, como o de Teresa Balté reúne em antologia vários
anos, desde os anos sessenta (o que há de tão surpreendente ainda hoje, nesta
década de tanta escrita livre, onírica, libertária, e ao mesmo tempo de tanta
análise profunda dos cantos mais recônditos da alma? Breton e os surrealistas
já se tinham apropriado do imaginário da noite, mas Jung ainda discutia com
Freud a existência de arquétipos e de um inconsciente colectivo).
Já por aqui se nota a
primeira diferença do olhar destas pintoras e dos seus dois caminhos, ambos tão
sedutores:
Teresa pinta as coisas, está certamente mais perto de
Freud, naqueles anos em que pinta. Leonor mais perto de Jung,
ainda que talvez não saiba. O seu movimento é o da busca do sentido das finas
teias da alma. É assim que da
pincelada cheia, evocando Michaux, numa primeira série de quadros que podiam
ter saído de LA NUIT REMUE, a noite em que tudo se mexe, de onde tudo se escapa
em busca de luz melhor, caminhamos com ela para outras séries em que o finíssimo
ponto é de bordado, de aranha ou de tecedeira, das que desenham a alma com o sopro da vida ou com tesoura infame a interrompem de súbito e sem
perdão.
Flutuamos nessas teias, num
movimento que suspende, não embala, interpela, não responde. Há por vezes uma
construção geométrica, elaborada, que se afunda no coração mandálico da teia e
penso : Escher passou por aqui. Mas Escher seria ainda um outro caso à parte:
jogos de espelhos, de ocultação e desafio de elaboração complexa, geométrica,
matemática. Ainda que escondendo, como na alquimia, aquela fusão andrógina,
platónica, dos rostos dos amantes. Com Escher, que alguma pintura de Leonor me
faz aqui recordar, regresso à harmonia pitagórica de uma matemática secreta,
primordial. Mas Leonor vai mais longe: despoja-se dos jogos que seriam para
ela, quem sabe, uma fácil tentação. E entrega-se ao seu labor de formiga, de
trabalho e entrega humilde, pondo de parte toda e qualquer ostentação de
cigarra. Depura-se, em cada forma, quando vai chegando ao fim do que ela
própria não saberia ainda revelar.
Porque na alma tudo se
esconde, nada se revela, enquanto não se atinge o que é seu ponto vital. Um
ponto de muitos pontos, caminhos e movimentos de muitos desvios feitos e
refeitos e novamente desfeitos...Ali ficamos presos, no Uno da forma, que se
ampliou num centro que é vital ou na
sua interrupção.
Que significa o 2, na escolha
do título? (Para mim todo o título é já
indicação).
Que ali se retomou o célebre Axioma de Maria, de que Jung (ele mais
uma vez) tanto gostou, e tanto o estudou nos alquimistas e nos grandes
criadores, como Goethe, no Fausto.
É em Psycholgie und Alchemie (1944), que Jung apresenta o que chama de
“um dos axiomas centrais da alquimia” a afirmação de Maria Profetisa:
“O Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e
do Terceiro se forma o Uno como Quarto” (p. 41). Afastando-se dos estudos
puramente da doutrina química, científica, dos autores do seu tempo, procura
Jung, como diz, trazer à luz a problemática histórico-religiosa e psicológica
dos temas ligados à alquimia. Considera a alquimia como uma espécie de
sub-corrente, ou corrente oculta da superfície dominante da cristandade. É
vista por ele como um sonho em face da consciência, compensando, como os sonhos
fazem, as lacunas, os conflitos, que na consciência se debatem.
O número dois significa
precisamente a Mulher, a Terra, o subterrâneo (oculto) A Lua, o Mal,
inclusivamente. Basta recordar que Eva é o número 2 de Adão...e é culpada de
ceder à tentação da serpente, que provocará a Queda e expulsão do Jardim do Éden.
Por outras palavras, encerra
perigo este número, que por outro lado é o que permite a criação do par
primordial, e gerado por ele, da espécie humana. Maria Profetisa, também
denominada a Judia, ou a Copta, irmã de Moisés, -na tradição alquímica- é por
vezes aproximada da Maria que conhecemos dos textos gnósticos do início dos
séculos II-III.Pareço estar a desviar-mse do ponto da minha reflexão, e da obra
de Leonor, mas não estou. Chego então ao mais importante: Maria Profetisa
sublinha muitas vezes o seguinte:
“ Todo o segredo (entenda-se,
da Obra alquímica) reside no
conhecimento do que é o vaso hermético. O Uno é o vaso (Unum est vas). Por isso tem de ser redondo, para que imite o cosmos esférico. É uma espécie de matrix,
de útero, do qual o filius philosophorum,
a Pedra maravilhosa, poderá nascer. Daí que por vezes também se refira a forma
de ovo deste vaso. Mas Jung acrescenta que é preciso ter em atenção que estamos
perante símbolos, que este vaso uno exprime
uma ideia mítica, mística,como todos
os símbolos alquímicos (p.327).
Se perante alguns dos quadros
de Leonor Beltrán de imediato nos sentimos próximos de um Mandala, ou de uma
experiência próxima desse exercício de meditação de que Jung, inspirado na
mística oriental, se serviu para recuperar a sua alma de uma depressão que lhe
devorava a vida, é porque há neles essa energia contaminante e manifesta. Leonor expõe movimento e
caminho (Jung só depois da sua morte autorizou a divulgação do célebre Livro
Vermelho), com uma generosidade que a engrandece, e à sua obra.
Saudemos pois, em percursos
tão diversos, um imaginário que se completa, na sua diferença: Seja para a
contemplação do que nos é (aparentemente apenas) exterior, ou do que nos é
interior (mas em necessária e vital revelação).
Em resumo, saudemos os
criadores, na sua criação.
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