É uma escritora amiga, de voz carregada de emoção e turbulência, fazendo por vezes evocar Comte Lautréamont, ou o nosso Herberto Helder.
Brasileira, ainda assim, de longe, perto de Portugal.
Em breve a poderemos ler na MEALIBRA, aquela revista de pura resistência e amor à literatura e à arte.
Escreve Luciane o que significa simbolicamente "um olho surgindo de um redemoinho de um lago?".
Aí começa, ou termina, glorificada, a aventura que foi da alma.
Luciane tem uma sensibilidade carregada de uma intuição próxima dos surrealistas e aqui deveria eu citar naturalmente o filme de Buñuel, Le Chien Andalou, com a célebre cena do olho imenso a ser atravessado por fina lâmina. O filme foi, ao tempo, uma espécie de cadavre-exquis feito por ele e seu amigo, depois inimigo de estimação, Salvador Dali. Concebido mais para chocar a burguesia em dormência, repudiar a narrativa lógica e complacente a que se estava habituado.
Podemos também ir ainda buscar o estarrecido olho de Magrittte (Le Faux Miroir), o pintor que brinca com o seu e nosso imaginário, e gostava de dizer que não, não era surrealista.Mas tudo na sua obra permite, para além do exercício do jogo e do prazer do belo na sua aparente crueza (Jeu et Joie) uma leitura simbólica. O mesmo com esse seu olho: ele não nos vê, nós é que através dele vemos um céu azul de surpresa. Não é um olho que espreita,é um olho que convida a espreitar.
Mas na realidade, aquela imagem forte de Luciane, tirada das águas de um lago, num remoinho, como quem nasce de sopetão, e logo vê ( pois se trata de um olho) apela a outras e quem sabe mais sofisticadas interpretações. As águas de um lago são em geral dormentes - por aí se apela ao sonho.
E quanto ao remoinho, muito havia a dizer: como energia espiral que é ou afunda ou, como neste caso (pois emerge das águas do lago), sublima.
Pausa para mais uma sugestão: ler The Mystic Spiral, journey of the soul, da autoria de Jill Purce.
Neste sonho houve revolução: um remoinho que traz consigo um olho.
Esse olho, antes direi olhar, representa a experiência que se viveu, das águas profundas de um inconsciente quem sabe se adormecido, ou negligenciado nos seus sinais, e que de repente se materializa, se torna visível (se torna olho, olhar) para que se opere, na consciência, uma transformação. A que os alquimistas definem como de clarividência: ooculatus abis, partes munido de olhos, é assim que se conclui o Mutus Liber, oLivro Mudo assinado por Altus.
Remeto os leitores para o excelente estudo de um erudito brasileiro, José Jorge de Carvalho, que faz deste livro uma bela edição comentada , na ATTAR Editorial, São Paulo, 1995. Excelente para quem só possa ler em português, e se interesse por estas matérias herméticas.
Na décima Quinta Prancha, a última do caminho que o adepto percorre, na sua busca e meditação, encontramos, no interior de um círculo mandálico um sábio coroado, envolto numa dupla legenda que o adepto e a sua companheira erguem e na qual se lê: oculatus abis, partes munido de olhos, isto é clarividente, sábio.
Sabedoria adquirida (pela experiência de vida e seu entendimento, integração) é pois o que a imagem forte de Luciane - terá sido de um sonho? de um poema? de uma pintura sua? - pretende transmitir.
Na gravura, que aqui reproduzo, vê-se que o sonhador ( na alquimia tudo se reporta à visão arquetípica, ao sonho, ao mundo do inconsciente) está deitado no chão sob um sol e uma lua que indicam a complementaridade dos opostos; o seu corpo está nú porque ele atingiu o despojamento de uma materialidade despicienda, e pode agora, em sublimação perfeita, ascender a novas esferas de vivência espiritual e transcendente.
Abandonada atrás, no chão, uma escada: a de Jacob, a que é preciso subir lutando com o Anjo : a verdadeira luta pela vida, pela sobrevivência espiritual.
Esta última imagem fecha o círculo da primeira com que o Livro abre, onde se vê o adepto adormecido sob o um céu escuro, de noite ( a nigredo com que tudo começa)e erguido à sua frente um Anjo a tocar trombeta, a meio duma escada vertical (na última imagem a escada já repousa na horizontal, já não faz falta).
O toque do Anjo é um toque a despertar, a pôr-se a caminho.
Começou deste modo a Obra alquímica.
Terminará com a visão superior que o olhar simbolizado indica.
Mais do que o "Olho de Deus" que tantas vezes vemos reproduzido ou sugerido, em textos religiosos ou em poetas místicos, como um Celan, por exemplo (de um misticismo feito de sofrimento e negação) este olho-olhar de Luciane me parece mais a forte expressão de um caminho, de turbulência vivida e renascimento que também só a água, como elemento primordial que é, junto com o fogo, nos permite.
5 comments:
Nossa Yvette, obrigada por me responder e por partilhar tua sabedoria. Obrigada também pelo incentivo. Nem sei como agradecer. beijo grande. Luciane.
teu olhar melhora o meu...
Comentário que acredito que será recebido com muita satisfação por todos aqueles que desejam saber mais da ciência que é a alquimia. O meu primeiro comentário é que o alquimista Mateus se encontra no Brasil desde o dia 27/08/2004, e possivelmente lançara seu livro de nome “A luz da alquimia” aqui no Brasil. A quem tiver interesse e saiba de algu ou até mesmo queira comentar, procure nossa comunidade no Orkut... comentário por: B.L.S
Etienne Perrot termina um dos capítulos do belíssimo "O caminho da transformação" com esta prancha. "Dotado de visão, tu te vais".
Gosto da tradução literal:
"partes munido de olhos"
mas claro que se trata de ter adquirido uma nova capacidade, que só a revelação concede da visão mística, sublimada
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