Thursday, January 28, 2010

S.Tomás de Aquino


I
Poucos saberão que o Doctor Angelicus, do Fausto de Goethe, supremo guia na ascensão do herói às mais altas esferas celestiais é uma referência a S. Tomás de Aquino que, na SummaTheologica, se afirmou como supremo sistematizador do pensamento teológico e filosófico do seu tempo, o século XIII.
Discípulo de Santo Alberto Magno, em Colónia e em Paris, não seguiu por completo, segundo os exegetas, a tendência do pensamento neo-platónico do Mestre, procurando na racionalidade de Aristóteles uma primeira compreensão do homem, do universo e de Deus.
Outros saberão ainda menos que posteriormente lhe serão atribuídos Tratados alquímicos: a Aurora Consurgens, de que se ocupou um erudito como Bernard Gorceix, traduzindo a obra para francês (L'AURORE À SON LEVER) e Marie-Louise von Franz, discípula de Jung e colaborando com ele (no terceiro volume de MYSTERIUM CONIUNCTIONIS).
Há ainda um outro pequeno conjunto de tratados, DA PEDRA FILOSOFAL e SOBRE A ARTE DA ALQUIMIA que na tradução para castelhano inclui um prefácio de Gustav Meyrink, teósofo austríaco do século XX (com obra de ficção em que expõe as doutrinas ocultas das várias vias místicas, ocidentais e orientais, que conheceu e praticou).
Este mês de Janeiro é o mês de S.Tomás, por isso me ocorreu recordar o seu nome e parte da sua obra, genuína e/ou atribuída.
Uma das palavras-chave da sua doutrina - que o será em toda a doutrina dos Dominicanos, como dos Franciscanos- é a palavra caridade (bebida em Santo Agostinho). O propósito, na elaboração da doutrina de Alberto Magno é conseguir uma relação sólida entre a experiência filosófica e teológica de raiz aristotélica e a visão mística de raiz platónica.
A teologia, para Alberto Magno como para Tomás de Aquino tem de estar em relação directa com a mística, preparando a contemplação da divindade, na manifestação da sua glória.
Contudo, mesmo ao místico a essência do divino não será revelada, pois, citando as palavras de Deus a Moisés: "o meu rosto não poderá ser visto". Ao místico é concedida a imagem no espelho, o reflexo, o efeito da manifestação de Deus, mas não Deus -ele-mesmo.
Tomás de Aquino, confiante, com Aristóteles, na capacidade ilimitada do entendimento humano, dirá que o homem"é capaz de Deus": capax Dei.
O que não o impede de mergulhar no estudo das Escrituras para, junto com os outros estudiosos e ascetas, encontrar uma via de sistematização dos conteúdos do que se chamava "a palavra divina", que na realidade era, como ainda é, múltipla e complexa, aberta a muitas e variadas divergências.
Tomás de Aquino procura "a luz da sabedoria divina". Segundo os estudiosos da sua obra há no seu vocabulário três palavras essenciais: beatitude, contemplação, amor.
Podemos entender este amor como sinónimo da caridade em Santo Agostinho, pois o verdadeiro amor é sem dúvida uma forma de caridade, ou de piedade absoluta em relação ao outro, sob a forma de total entrega e aceitação.
É discutindo o sentido da que Tomás de Aquino pretende universalizar a ideia do conhecimento possível de Deus por parte do homem: o homem é .
Esta capacidade funda-se no desejo profundo, no apelo, na aceitação do que a Vontade Suprema lhe imponha ( mesmo que seja a noite escura de São João da Cruz... ou do grande lamento de Job no Antigo Testamento).
À impossibilidade reconhecida pelos seus pares de que o homem, na sua vida, na sua materialidade carnal, pudesse aspirar ao conhecimento e revelação da essência divina, contrapõe Tomás de Aquino esta ideia de que tal seria possível: pela Fé.
Contraria deste modo uma verdade do tempo que santos, místicos, gnósticos, não punham em dúvida. Declara que pela fé a todos os homens é dado chegar ao pleno conhecimento de Deus, pois tal é o seu destino último, a beatitude eterna, ainda que não participe dela nesta vida. A via da contemplação prepara-se neste mundo e terminará depois no outro, "nas vivas chamas do amor".
Devíamos começar por ler o CÂNTICO DOS CÂNTICOS, obra de beleza inegualável e que reza a lenda terá sido a que Tomás de Aquino comentava dirigindo-se aos seus alunos, já no leito de morte.
Os seus comentários são eles próprios uma forma de revelação do Belo e do Amor que se apossam da sua alma, tornando mesquinhas as outras considerações que tantas vezes fizera ao discutir a natureza de Deus. O Belo, o desejo do Belo, variante do Amor que já fora citado - era esse o supremo segredo, a suprema revelação, o rosto oculto de Deus.
Era luz e era treva, essa forma divina, energia em busca da materialidade a sublimar, uma vez (re)conhecida.
Conhecer era na verdade reconhecer - por via da Iluminação recebida e quem sabe se apenas possível no seu leito de morte.
II
A Aurora Consurgens, que traduzo por A Aurora Nascente, é uma atribuição, mas são muitos os dados citados por Marie Louise von Franz e retomados por Bernard Gorceix que nos permitem pelo menos situar o tratado na época em que S.Tomás viveu, o século XIII. M.L.von Franz propõe como data de redacção c.1230. E justifica-se pelo facto de nele não serem referidos autores célebres dos séculos posteriores, apesar da muita divulgação na Europa culta. A Aurora cita exclusivamente obras do século XII ou quando muito do início do século XIII.Não chega a abordar Geber, Arnaldo de Vilanova, Raimundo Lúlio, outros. Reporta-se a um conjunto de autores que representam o primeiro florescimento de uma alquimia ocidental cristã, logo a seguir aos textos dos primeiros alquimistas gregos conhecidos ( no caldo cultural de Alexandria).
Do meu ponto de vista (o que talvez explique o secretismo com que os manuscritos circularam) é mais interessante a referência aos filósofos árabes que o ocidente naquele tempo estuda e imita, como Razi (ou Rhasès), Avicena (Ibn Sina), o príncipe Calid, Senior (cujo verdadeiro nome é Ibn Umail) do que propriamente a célebre Turba dos Filósofos ou mesmo a Tábua de Esmeralda.
O tratado conhece a sua primeira impressão em 1625, mas isso não significa que não seja anterior; von Franz dedicou anos de investigação em busca dos manuscritos que acreditava existirem, por força do conteúdo das matérias, que não eram recentes pois nada da época do Humanismo e Renascimento continham. Sabemos hoje que na Biblioteca Nacional de Paris se encontra um ms. que é uma cópia do século XV, oriunda da abadia de Saint-Germain-des-Prés; que existem igualmente, fragmentos ou ms. completos em Viena, Veneza, Zurique, Leyden, Bolonha, Londres.A esta insigne investigadora se ficou assim a dever a edição crítica moderna, de 1957, com que se "fecha" a obra magistral de Jung já referida, Mysterium Coniunctionis (O Mistério da Conjunção).
Para os psicanalistas o texto representa uma espécie de "drama psíquico", produto do inconsciente, dando conta da complexidade e contradições profundas de uma personalidade como a de S.Tomás de Aquino, ao mesmo tempo místico, visionário, e homem de formação aristotélica difícil de conciliar com tais características. Um teólogo ordenador do pensamento que enfrenta a experiência de que nem tudo no pensamento, e ainda menos na emoção, pode ser regulado.
Há momentos especialmente significativos deste ponto de vista, bebidos na Bíblia (O Antigo e o Novo Testamento eram fonte suprema, como se pode calcular) de Joel sobre a urgência da conversão, de Jonas sobre o naufrágio da alma, dos Salmos sobre a corrupção da terra, o pântano dos abismos, ou do Evangelho de Lucas sobre as trevas que cobrem o universo. Entrecortando estas descrições, de puro apelo e terror, numa montagem que Gorceix compara às de um puzzle, surgem então as visões de um alquimista que transformam, citando ainda Gorceix, "a cosmologia cristã numa cosmogonia alquímica". Com os alquimistas o "temor de Deus" transforma-se em "ciência de Deus", e por aí diante, em numerosos exemplos de subtis transformações e citações.
Não é por acaso que a obra se estrutura numericamente no 12, 5, e 7.
12 capítulos, contendo 5 alusivos às afinidades entre a Sabedoria do crente e a ciência do filósofo (entenda-se filósofo hermético, ou alquimista); e 7 outros capítulos que são parábolas, visões alusivas a um imaginário em que a devoção ortodoxa e a revelação alquímica se defrontam e fundem ( ou confundem). Os temas alquímicos sobrepõem-se à descrição de um universo criado por Deus de uma determinada forma, numa determinada ordem, da luz saindo das trevas e de uma matéria de que o homem viria a ser criado, à imagem de Deus. Ora é esta mesma imagem de Deus, do universo e do homem que na alquimia é alterada, disso dando testemunho este tratado.
12 são os signos astrológicos, 7 os planetas que interagem com eles, 3 os principios que na arta alquímica tudo definem.
Podemos dizer, com Gorceix, que esta obra pertence à tradição dos Livros Sapienciais:
" O culto da Sapiência divina, depois de ter florescido no Egipto e na Mesopotamia, desenvolve-se no Antigo Testamento. Dos Provérbios ao Eclesiástico todos os livros ditos sapienciais se referem à transcendência da amiga 'como uma esposa de Deus'; ela participa da natureza divina, preside à criação e ao governo do mundo, ela é a condutora do crente".
Ora quando a alquimia, pela mão dos árabes, passou do oriente ao ocidente, depressa absorveu estes elementos fecundos da tradição cristã. E todos os eruditos concordam em que tal se verifica já neste primeiro testemunho, tão belo e inspirado, do tratado da Aurora, no século XIII da nossa era.
O sopro da sua prosa poética é de grande elevação e hermetismo.
Ainda que nem tudo seja de fácil acesso ao leitor menos entendido, muitas das imagens e descrições mais fortes viverão comnosco, no nosso imaginário, alimentando o nosso inconsciente, tal como aconteceu ao anónimo autor que dizem ser S.Tomás.
III
Fiquemos com um excerto do capítulo 12, a parábola 7 e a riqueza do seu significado.
Estamos aqui perante o segredo da União, da Conjunção, da fusão dos opostos, que o rebis alquímico, na imagem acima colocada, representa.
O universo é um todo, a sua energia é feminina e masculina, feita de treva e luz, razão e emoção, discurso e iluminação. M.L.von Franz falaria da revelação da Anima no autor do tratado, como Goethe no Fausto falará do Eterno Feminino, soma de Beleza, Caridade e Amor ( sua mais secreta e íntima descoberta).
Tal como no Cântico dos Cânticos é a Amada que fala:
"Que direi então ao meu bem-amado? Eu sou a mediadora dos elementos, eu reconcilio os contrários. Arrefeço o que é quente e vice-versa. Humedeço o que é seco e vice-versa. Amoleço o que é duro e vice-versa. Eu sou o termo. O meu bem-amado é o princípio. Em mim se escondem a obra inteira e a ciência toda, a lei no sacerdote, a palavra no profeta, o conselho no sábio.
Farei viver e farei morrer, da minhamão ninguém se liberta. Ao meu bem-amado estendo os lábios, ele apertou os seus contra mim, ele e eu formamos um só: quem nos separará do amor? Ninguém, nenhuma força. Porque o nosso amor é forte como a morte!"
Adiante, num tom igualmente exaltado de paixão, chegaremos à frase que exprime o segredo mais bem guardado de toda a alquimia:
"Eis como é doce, como é agradável viver dois em um! Ergamos então três tendas para nosso uso, a primeira para ti, a segunda para mim, a terceira para os nossos filhos! Uma corda tripla resiste melhor! ".
O mistério do dois em um, de que se formará o três em um (pois que em apertada união, a tripla corda) aponta para o outro mistério da Tábua de Esmeralda, "o que está em cima é como o que está em baixo...." redefinindo o olhar que se tenha sobre Deus e o universo criado: dois em um igual a Tudo em Um, o Um e o Todo da serpente ouroboros primitiva.
Ainda que podendo ser excessivamente hermética, evocarei o Axioma de Maria Profetiza: do um nasce o dois e do dois nasce o três como quatro (quarto...)...sendo este, na doutrina de Jung, o número da completude - seja humana, seja divina...
Deus também tem a sua Anima, a sua Shekinah, disso poderemos falar noutra altura.



Monday, January 18, 2010

Anubis




Do sonho aos poemas, e destes a uma raiz ancestral.

A Sombra com os seus Cães

Chega de manhã cedo
não bate à porta
é uma Sombra discreta
na mão o cesto das compras
e na trela os seus dois cães

não gosta de discutir
anda muito devagar
sem ajuda sobe a escada
até ao último andar

- Diz-me o que são esses cães
que te acompanham
te guardam
esses cães que tu não deixas
e que também não te largam
não estão presos
mas não fogem

- São cães do sono profundo
nascem na treva sagrada
naquela prega do tempo
onde se esconde o futuro


Segundo Jung não haverá coincidências, mas fenómenos de sincronia que se tornam especialmente carregados de sentido para quem se detenha neles. Pode tratar-se de um sonho, da interrogação contida num poema e neste caso da resposta que se procure encontrar. Por vezes nada sucede. Fica a pergunta, outro tempo virá em que a resposta surja.
Aconteceu que uma vez escrito o poema, e dada a sua ligação a um sonho determinado, que os primeiros versos descrevem como acto banal de um dia aparentemente como os outros - me vem à mão o Livro Egípcio dos Mortos na edição francesa de Albert Champdor que contém os papiros de Ani, de Hunefer, de Anhai, actualmente guardados no Museu Britânico.
Uma verdadeira colecção de rituais iniciáticos, alusivos ao percurso que a alma teria de fazer depois da morte, conduzida pelo deus-cão Anubis até ao lugar do Juizo Final.Nesse lugar a sua alma seria pesada numa balança que num dos pratos teria a pena da deusa Mâat e só se os pratos se equilibrassem obteria a alma a salvação desejada, podendo encaminhar-se para o jardim do Éden, onde a vida continuaria saciada e feliz.
Anubis, o Guia dos Caminhos, é simbolizado por um cão (pode ainda ser cão-chacal ou cão-lobo) e é ele que permite a revelação da Luz, depois da cerimónia mágica da "abertura dos olhos" .
Esta bela edição, que reproduz e transcreve, como se de uma banda desenhada se tratasse, os papiros encontrados em finais do século XIX, oferece ao estudioso, tanto como ao simples curioso, muita matéria de alimento para a sua imaginação.
No antigo Egipto o Livro dos Mortos, que em papiros ou em frescos nos túmulos acompanhavam a alma do defunto, era parte integrante de um ritual iniciático sem o qual a alma ficaria abandonada, perdida num submundo assustador.
A sua leitura hoje em dia, numa sociedade laicizada, pode ajudar a entender alguns dos fantasmas que ainda nos habitam, com os seus sonhos, as suas premonições.
As almas, de outrora como de agora, pedem um guia.

Completando, com um último poema:

Caiu a noite:
Isis vem aí.
Bateu à porta
é preciso abrir