Um haiku do poeta David Rodrigues, a que fiz referencia no outro blog, de Literatura e Arte, fez-me pensar em como a marca do negro é importante.
Mais importante do que qualquer outra, talvez, não digo num puro processo poético, mas simplesmente no campo da filosofia hermética.
O haiku, já de si uma forma condensada de imagem e sentimento, ou pensamento, como as que encontramos nas gravuras que ilustram os tratados antigos, é propício a que o seu leitor empreenda através dele o seu próprio caminho, ou caminhos vários e outros que lhe surjam, sem que necessariamente se tenha de fixar em nenhum deles.
Deixei, no blog de Literatura e Arte, um conjunto de Meditações a esse respeito que poderão ser lidas.
Mas aqui é mesmo sobre a marca do negro, da nigredo, que desejo falar.
Pelo negro se começa, muito antes de sabermos se tal experiência nos conduzirá a algum lado. Na maior parte das vezes não conduzirá a nada, pois nem todos, antes pelo contrário,têm a força íntima necessária para o caminho dos místicos e santos, ou mesmo só iluminados pela graça da uma determinada energia criadora especial.
Carl Gustav Jung, o maior estudioso conhecido da alquimia, que fez dessa arte, desde a década de cinquenta, pelo menos, o modelo de análise do mundo arquetipal que nos envolve e suporta, ainda que pouco ou nada possamos saber dele, dizia, na sua autobiografia, que é no meio da vida, propenso em todos nós a crises de depressão, que a nigredo, o negro da alma (a melancolia saturniana já descrita desde tempos antigo) mais se fazia sentir, podendo até pôr em risco a vida do doente depressivo: pois a depressão pode facilmente conduzir ao suicídio.
Jung irá comparar o processo de cura, lento, lentíssimo, exigindo paciência e dedicação, ao processo alquímico, cuja regra mais explícita é a do Mutus Liber (1677) de que o estudioso brasileiro José Jorge de Carvalho fez uma bela edição, comentada: "Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et Invenies", isto é, reza, lê, lê, lê, relê, trabalha e descobrirás.Na fase final de tanto e moroso trabalho receberá o adepto (o paciente) a iluminação (a cura ): diz a legenda: Oculatus abis, partes munido de olhos. E vemos na gravura o espírito do adepto erguido aos céus, coroado por dois anjos, enquanto o seu corpo em terra é ilustrado, significativamentem pelo sol e pels lua, o par em conjunção.
Ficamos pois a saber que se trata, na obra como na vida, de conciliar as tensões dos opostos que tanto podem ser as da rotina quotidiana, família, amores, profissão, perda de inspiração, no caso de artistas criadores, ou outras; como no caso dos verdadeiros alquimistas da alma a dificuldade de sair deste primeiro estágio, da nigredo. Nem todos sairão, e os tratadistas muito avisam contra essa dificuldade, aconselhando a que se hesite, antes de embarcar em tais aventura.
A alma é um precipício,ou uma água profunda, há que estar preparado antes do vôo sem asas, ou do mergulho sem garrafa de oxigénio.
Voltando ao negro.
José Jorge de Carvalho, cuja obra, por estar em português, tornará estas matérias de acesso mais fácil aos meus leitores de Portugal ou do Brasil, escreve o seguinte:
"Nigredo- o mesmo que opus nigrum; obra em negro,primeiro estágio da opus alquímica: o composto da matéria prima é submetido às operações e aodrece, assumido o negrume característico. Também designada por putrafactio (putrefacção)
caput corvi ( cabeça de corvo), ou cabeça de morto,ou ainda negro mais negro que o negro. Quando alquimista se depara com a nigredo, sabe que a obra não tarda a realizar-se".
( in O Livro Mudo da Alquimia, Ensaio Introdutório,Comentários e Notas
por José Jorge de Carvalho, ed Attar, São Paulo, 1995).
No dicionário de Dom Pernety, alquimista do século XVIII, o Negro mais negro do que o Negro é definido, como ele gosta de fazer, pelo recurso à memória das fábulas antigas. E por aí se vê como estas matérias pertencem de facto, como Jung sublinha, ao nosso imaginário arquetípico, oriundo do inconsciente colectivo e não de qualquer memória individual própria. A matéria colectiva é comum à espécie, e é desse ponto de vista que melhor pode ser abordada.
Citando Dom Pernety:
"Nas fábulas o negro indica sempre essa putrefacção, tal como o luto, a tristeza, muitas vezes a morte.Thétis, indo apresentar-se a Júpiter para pedir que protegesse Aquiles, foi vestida com um trajo mais negro do que o negro, como diz Homero. Quando Iris se foi encontrar com ela a mando de Jupiter,...encontrou-a vestida de negro no fundo da sua gruta marinha. Esta putrefacção é sempre indicada por algo de negro nas obras dos Filósofos. Tanto é a cabeça do corvo como o vestido tenebroso, o melro de João, ou as trevas; tanto é a noite como o eclipse do sol e da lua, o horror do túmulo, o inferno ou a morte. Chamam ainda à matéria negra da obra 'o seu chumbo, o seu Saturno, a sua cabeça de Mouro...Chama-lhe ainda a chave da obra, e o primeiro sinal, como diz Flamel, pois se não vier o negro não virá o branco, e será necessário recomeçar".
Pela variedade das designações e das imagens que sugerem se pode ver como serão variadas, no caso das interpretações dos sonhos, ou antes disso na criação poética em que as imagens surgem (sem que se saiba muito bem porquê) que tudo, no nosso imaginário, e desde sempre, tem raiz e razão, ainda que possa estar oculta.
O psicólogo alquimista saberá onde encontrar fundamento.
Não é por acaso (nada é por acaso, mas aqui entraríamos num outro conceito, de que não me vou ocupar, de sincronicidade) que a célebre gravura de Durer, Melancolia, tem desafiado o tempo e os olhares interpretativos. Está lá o negro, como está lá a Pedra da alma, que tem de ser polida (sublimada). E o Anjo (andrógino?) parece estar cansado pela demora.
Jung cita, no tratado de Psicologia e Alquimia, o exemplo de um clérigo que nas suas orações pede a Deus: Horridas nostrae mentis purga tenebras,accende lumen sensibus! o mesmo que faria um filósofo hermético, na nigredo da sua Obra. O caminho que ambos procuram é o da iluminação que permite o conhecimento de si mesmo (processo de individuação, na terminologia Junguiana) do mundo e de Deus, na ambição alquímica, no fundo mística mais do que filosófica.
Antes de continuar, remeto o leitor para outros posts antigos, deste blog, em que dou como alguns exemplos de nigredo textos de Fernando Pessoa, talvez, além de Antero de Quental, o poeta que mais viveu e sofreu de melancolia permanente, sem encontrar a luz da transformação que desejava.
Em breve falarei do seu Fausto, exemplo maior de que ainda não me ocupei.