Monday, December 03, 2007

Rilke em Paris

As cidades primitivas eram, no imaginário religioso e poético, fundadas por deuses ou semi-deuses, encarregados de tal destino.
O espaço era cuidadosamente escolhido, medido, obedecendo a leis de harmonia universal, que seria perigoso vir a quebrar.
Na cidade, protegida por muralhas de adobe, de tijolo cozido ou de pedrarias miríficas, a vida era organizada em torno de dois polos: o palácio e o templo.
Um jardim fazia a transição do espaço secular para o sagrado e vice-versa, podendo ser um jardim mais natural (terreal) ou mais espiritual (celestial) sem que nada da primitiva harmonia se perdesse.
Ocorre-me citar a epopeia de Gilgamesh, a narrativa da fundação da cidade de ouro dos incas de Cuzco (por Garcilaso de la Vega) ou ainda a descrição da Jerusalém Celeste do Apocalipse de João, onde no fim dos tempos o Conhecimento (de Deus e do seu filho) e a Vida (nas árvores que para sempre darão fruto) se reconciliarão numa eternidade merecida.
Essas cidade glorificam a existência do homem com os seus deuses, o seu destino, sua função, sua vida, mesmo quando no decurso das muitas aventuras e portentosas mudanças o destino se pode revelar demasiado frustrante, para não dizer trágico.
É que mesmo a medida da tragédia acrescenta algo mais à humanidade que a sofre e por meio dela se transforma.
O imaginário da cidade primitiva acolhia a mudança, e pouco a pouco, através da ideia de mudança se instaurava um novo modelo: o do progresso, na óptica do colectivo.

O mesmo não se poderá dizer da cidade moderna.
Tomando Paris como exemplo, a Paris de Rilke, já depois de ter lido entretanto a poesia e a prosa poética de Baudelaire (especialmente o Spleen de Paris) iremos descobrir não o espaço onde se vive mas o espaço onde tristemente, anonimamente se morre, de uma morte que já nem sequer é própria, individual, mas colectiva e imprópria da dignidade humana no que deveria ser a dignidade ao mais alto grau.
Pois o direito à morte é tão sagrado quanto o direito à vida, ou mais ainda. A morte define o homem, a morte redime o homem, torna-o no que poderia ou deveria ter sido em vida. A morte faz dele um homem, mais do que o nascimento, que não escolheu. Mas a morte, ah, a morte, deveria ele ter o direito de a escolher.

Vamos então ler Rilke, na obra-prima que são OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE (trad. Paulo Quintela):
" É então aqui que as pessoas vêm viver; eu antes diria que é aqui que se morre. Hoje saí. E vi: hospitais. Vi um homem que cambaleava e caiu. Juntaram-se pessoas em volta e isso poupou-me o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se pesadamente ao longo de um muro alto e quente a que por vezes lançava a mão, apalpando, como para se certificar de que ainda lá estava. Sim, ainda lá estava."

Caminhando em frente, o narrador vê-se na rue Saint-Jaques, diante do hospital militar de Val-de Grâce, onde se adivinha que, por ironia, nenhuma piedade se poderá encontrar. Só fria indiferença.
Depois de ter indicado que "via", indica neste momento que também o olfacto o incomodará:
"A viela começou a cheirar por todos os lados. Cheirava, tanto quanto se podia distinguir, a iodofórmio, à gordura de batatas fritas, a medo. Todas as cidades cheiram no Verão."

Seguem-se outros desabafos. O narrador, Malte, confessa que só consegue dormir de janela aberta, e que pela janela entra tudo o que pode haver de mais ruidoso e incómodo na treva citadina:
Carros eléctricos, automóveis, portas que batem, vidros que se partem, alguém que sobe as escadas, gritos na rua, um cão que ladra e finalmente um galo, ao amanhecer.
Só depois o nosso herói adormece.

"Isto são os ruídos. Mas há aqui alguma coisa que é mais terrível: o silêncio (...) Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre.Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece".

Feita esta espécie de iniciação ao leitor, depois de feita a si mesmo ( a descoberta de um interior de alma onde tudo vai ter e de onde depois tudo virá a surgir ) os passeios pela cidade de Paris poderão ser mais leves. No jardim das Tulleries, por exemplo, faz sol, e nada mete medo.
A cidade, pouco a pouco, pela necessidade imposta de escrever, escrever todo o tempo, ficará reduzida ao espaço do quarto do hotelzinho onde reside. O espaço do quarto será exíguo, mas o espaço da memória que se rasga, se oferece, e se vai gradualmente recuperando, como por mão alheia mais do que por vontade própria, será um espaço desmesurado, como a vida e a morte do avô, o velho Camareiro Brigge, o último da geração a ter direito a uma morte digna, talhada à sua medida:

" Quando me ponho a pensar na nossa casa, onde já não há ninguém, parece-me que dantes deveria ter sido diferente. Antigamente sabia-se ( ou talvez se pressentisse ) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço. As crianças tinham dentro uma pequena e os adultos uma grande. As mulheres tinham-na no seio e os homens no peito. TINHA-SE, a morte, e isto dava às pessoas uma dignidade particular e um calmo orgulho.
Meu avô, o velho Camareiro Brigge, a esse ainda se lhe via que trazia dentro de si uma morte. E que morte!: durou dois meses, e eera de voz tão forte que se ouvia até lá fora na quinta".

Segue-se a descrição da velha casa senhorial, demasiado pequena para tamanha morte. E continua o desfiar das memórias, antídoto contra o medo, que a cidade de Paris instilara nele, de modo agudo e perverso. Escrever é uma salvação. E ler, como faz na Bibliothèque Nationale, no meio de tantas outras pessoas, também é grande ajuda. As pessoas "estão nos livros", não se dá por elas, não incomodam.
Assim se reconhece uma outra espécie que vive oculta na cidade, a espécie a que pertencem os poetas. Pobres, de pobreza envergonhada mas de coração altivo, ainda que receoso do que na grande cidade lhes possa vir a acontecer.

Caminhámos da cidade para o quarto, do quarto para a memória antiga de um passado que deixou de existir.
E de novo se regressa à cidade: aos pedintes na rua, às velhas ramelosas que não inspiram piedade, só repugnância, aos antiquários da rue de Seine cujas lojas atraem, são tranquilas, não deixando adivinhar grandes negócios. Ir ao museu do Louvre também parece uma ideia, mas há pessoas que só lá vão para se aquecerem e descansarem um pouco nos bancos de veludo...
Cai um nome de poeta: Verlaine.
Mas Malte comenta que não gostaria de ser esse, mas outro, "um que não vive em Paris..que tem uma casa tranquila na montanha...um poeta feliz...". Não dirá qual.

Na década em que Rilke vive e escreve esta experiência de verdadeira iniciação ( o livro será publicado em 1910 ) a Europa culta está a ser atravessada pelos furacões do Futurismo italiano e do Expressionismo alemão. Verdadeiramente expressionista é a descrição que Rilke faz, a dada altura da narrativa, do Carnaval parisiense. Nada que se assemelhe ao carnaval de Veneza descrito por Goethe, na viagem a Itália, nenhuma sombra de requinte, de elegância, de mistério nas ruas.
Ali, em Paris, a rua carnavalesca é feia, é violenta, assustadora, para um jovem Malte fugindo por necessidade ( e não por curiosidade, como Goethe ) do pobre quarto em que estava alojado porque o fogão entupira e o fumo o estava a asfixiar. Malte foge para a ruae em vez de respirar fundo, livremente, sente-se esmagado pelo excesso de vozes, de gritos, de esgares, de confetti- tudo lembrando uma dança macabra, ou os quadros mais célebres de Munch, com A Dança da Vida ou o Grito.

" Porque era Entrudo e ao cair da noite, e as pessoas tinham tempo e vagueavam e roçavam-se umas pelas outras. E os seus rostos estavam cheios da luz que vinha das barracas, e o riso escorria-lhes das bocas como pus de chagas abertas. Riam cada vez mais e comprimiam-se cada vez mais quanto mais impacientemente eu tentava avançar. (...) Alguém atirou-me aos olhos uma mão-cheia de confetti que me feriram como uma chicotada. Às esquinas as pessoas paravam apinhadas, uma metidas pelas outras, e não havia movimento de avanço na massa, só um vaivém silencioso e mole, como se se estivessem acasalando em pé. (...) Não tinha tempo de reflectir nisto, estava pesado de suor, e rodopiava dentro de mim uma dôr estonteante, como se alguma coisa muito grande me circulasse no sangue, alguma coisa que me fizesse inchar as veias ao passar. E sentia ao mesmo tempo que o ar tinha acabado há muito e que eu apenas respirava exalações que os pulmões já não queriam".

Eis as marcas da cidade moderna: sufoco da velocidade e da multidão anónima, presença do colectivo que anula o indivíduo, com o seu tempo e o seu espaço próprios que deixaram de existir. Algo que Rilke/ Malte não conseguiam suportar a não ser criando múltiplas e secretas defesas, feitas de leituras, memórias, íntimas recuperações e escapadelas. A maior seria da cidade para o castelo, em anos futuros, mais felizes, de longas conversações com Anjos, (ainda que eles mesmo terríveis, a seu modo).

Do sufoco da rua da cidade gangrenada à solidão do quarto. Aqui viverá a sua escrita, relembrando entre outros Baudelaire, o gigante de quem não se poderia escapar.
O poema que Rilke escolhe como exemplo magistral é, de Spleen et Idéal,UNE CHAROGNE: aquele em que toda a podridão do futuro cadáver da bela amante, e da própria Beleza, é posta a nú, com os cheiros nauseabundos, os ossos deformados, as larvas e as moscas que ainda procuram alimento na infindável cadeia da vida, para concluir, com crueldade:

"Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
...
Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours decomposés ! "

Em carta escrita em 1925 a um amigo, faz Rilke várias considerações a propósito dos Cadernos e da "vivência de Malte".
Escreve, entre outras coisas, que M.L.Brigge "sente a necessidade de tornar apreensível para si mesmo, por meio de fenómenos e imagens, a vida que continuamente se vai recolhendo ao invisível; encontra estes fenómenos e imagens ora nas prórias recordações da infância, ora no seu ambiente parisiense, ora nas suas reminiscências de leituras."

E finalmente, numa conclusão que deixa muito em aberto, para não dizer tudo, à imaginação do leitor:
" Este livro é para ser ACEITE, não para ser compreendido ao pormenor.Só ASSIM chega tudo a alcançar o tom autêntico e o autêntico encontro".

Paris, nos anos de 1904 a 1910, foi para Rilke a cidade da iniciação: pela nigredo, sem dúvida; mas só desse modo lhe seria possível, nessa aparente irremediável solidão a que parecia votado, descobrir no labirinto escuro da alma as recordações da infância, a memória de um passado arquetípico europeu, histórico e literário e, não menos importante o caminho do invisível, ao fim e ao cabo sempre presente, sempre à espreita, ameaçando quem não o entenda e respeite.
A chave é o invisível, a chave é a contemplação, e Paris (talvez até com a ajuda inicial de Rodin) o que fez foi ensinar o poeta a VER.
Quando partiu, a lição (a "vivência") estava assimilada (Jung diria a Anima, a Sombra estava integrada). Partiu "munido de olhos", como no MUTUS LIBER, depois de muito ler, muito trabalhar, muito convocar a protecção divina.
O imaginário de purgação da experiência citadina, pesada, dolorosa, fez da "matéria caótica, confusa" a Pedra mais sublime dos Cânticos posteriores.

(Tradução dos excertos dos Cadernos de M-L. Brigge por Paulo Quintela, in OBRAS COMPLETAS, ed. Fundação Calouste Gulbenkian )

Saturday, December 01, 2007

O Jardim de Lampedusa


Em contraste com os jardins fechados, de pedras preciosas, que são oferecidos nos textos mais antigos, podemos ter o prazer de descobrir em obras como a de G. Tomasi di Lampedusa, pelos olhos do seu alter-ego, o Príncipe Fabrizio, jardins mais humanos e mais reais, ainda que não menos carregados de simbolismo: o do amor pela terra, eterna mãe, eterna criadora, que tanto recolhe a morte como alimenta a vida.
Logo no início do seu magistral romance ( O LEOPARDO, na tradução portuguesa de J. Colaço Barreiros ) Lampedusa descreve o Príncipe a descer a escada que dava do palácio para o jardim:

" Ali, na terra avermelhada, as plantas cresciam em exuberante desordem, as flores despontavam onde Deus queria e as sebes de murta pareciam dispostas mais para impedir do que para guiar os passos...Mas o jardim, comprimido e esmagado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos, como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos sobrepunham o seu aroma apimentado ao protocolar das rosas e ao oleoso das magnólias que se apinhavam nos cantos; lá por baixo, sentia-se também o perfume da hortelã misturado com o infantil da acácia e o adocicado da murta, e do outro lado do muro o laranjal fazia transbordar o cheiro a alcova das suas primeiras flores.
Era um jardim para cegos: a vista era constantemente ofendida, mas o olfacto podia extrair dele um prazer forte, embora não delicado".

Eis um jardim oloroso, plantado para os sentidos, na perturbadora terra siciliana. Aquela em que tudo mudaria para que tudo ficasse na mesma, como a certa altura é observado.
Mas nada escapa à ironia do autor, o próprio jardim figura um tempo em decadência, e é assim que a sensualidade dos perfumes também sofrerá um revés:
"As rosas Paul Neyron que ele próprio adquirira em Paris tinham degenerado: primeiro estimuladas e depois esgotadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves côr de carne, obscenas, mas que destilavam um denso aroma quase repugnante que nenhum cultivador francês teria a ousadia de esperar".

Não, estas não são as rosas de Sharon, antes fazem dessas imagens perdidas no tempo e no imaginário dos poetas uma caricatura cruel: "O Príncipe passou uma delas pelo nariz e pareceu-lhe que cheirava a coxa de uma bailarina da Ópera".

Este é o romance de um tempo, uma terra ( ainda semi-feudal e já em grande mudança) um corpo com a sua casa e o seu jardim.
Mas até no odor da decadencia se encontra ali uma infinita saudade, um arreigado amor.