Sunday, October 14, 2007
Pamuk e o corpo da Sulamita
Comecemos por ler o Quinto poema do Cântico dos Cânticos na bela tradução de José Tolentino de Mendonça para situar a simbólica do corpo da Sulamita tal como surge nesse texto e o tratamento que Pamuk dará ao corpo da amada, no seu romance, situado na Turquia antiga, do século XVI .
Cântico dos Cânticos,
Quinto poema, VII
"...quão formosos são teus pés nas sandálias
filha de príncipe
as curvas dos teus quadris parecem colares
obra das mãos de um artista
teu umbigo uma taça redonda
que o vinho nunca falte
teu ventre monte de trigo
cercado de lírios
teus seios dois filhotes
gémeos de gazela
teu pescoço torre de marfim
teus olhos as piscinas de Hesbon
junto às portas de Bat-Rabim
teu nariz como a torre do Líbano
voltada para Damasco
levanta-se tua cabeça como o Carmelo
e teus cabelos côr de púrpura
um rei trazem cativo dos seus laços
como és bela como és desejável
amor em delícias
semelhante à palmeira é o teu porte
cachos de uvas são teus seios
Pensei vou subir à palmeira
vou colher dos seus frutos
sejam teus seios cachos de uvas
o hálito da tua boca perfume de maçãs
tua boca guarda o melhor vinho
que na minha se derrama
molhando-me lábios e dentes".
Luciana Stegagno Pichio observa num dos seus ensaios como as descrições poéticas da mulher, nos Cancioneiros medievais da lírica de Amigo e de Amor, raramente se demoram deste modo na descrição do corpo da amada. E quando o fazem o corpo é visto de cima para baixo, com destaque para a cabeça e o peito em alusão discreta (olhos, boca, seios) e só muito raramente repetindo este modelo do Cântico dos Cânticos, de grande sensualidade : permite ver o Amado aos pés da sua rainha, acariciando, à medida que fala, o corpo que venera dos pés à cabeça, como adorando nele a manifestação da própria vida, da Árvore da Vida.
As metáforas, em que prevalecem o vegetal e o animal, sublinham bem o que há de instintual neste desejo, neste impulso que transforma o texto num dos mais lidos e comentados ao longo dos tempos, ora como emblema da paixão de Cristo pela sua Igreja, ora como delírio místico dos santos que nele encontram a perfeição da alma na união ao seu Criador, ora a perfeição da Pedra alquímica ( como é o caso da Aurora Consurgens, escrito atribuído a S.Tomás de Aquino e estudado por Jung e M.L.von Franz).
A palmeira a que o amado sobe, na suprema entrega ao corpo da Sulamita , surge algumas vezes nas ilustrações dos tratados medievais de alquimia. E neles representa a Árvore da Vida. Salomão e a Rainha do Sabá - Conhecimento e Vida-prefiguram assim, neste encontro ao mesmo tempo sublime e sensual, a união de opostos que de algum modo regenera e redime o crime da Queda no primitivo Éden.
O primerio par, de Adão e Eva, é sublimado neste segundo par, de Salomão e Sulamita. E se no Génesis o conhecimento do corpo era tabú e foi "pecado", no Cântico dos Cânticos é o conhecimento do corpo que dá a redenção, amor e desejo fundidos num só só acto de entrega.
Black, no romance de Pamuk ( de que já saiu a tradução portuguesa na editora Presença) encontra-se com Shekura, a amada, sob o signo de uma romãzeira, e mais tarde, já convencido de que haverá correspondência ao seu amor, pede um encontro que seria mais definitivo.
O encontro dá-se na casa do "judeu enforcado", entra-se nela por um jardim vazio, "cheirando a morte", descrição bem diferente do perfumado jardim da Sulamita.
Shekure tapa discretamente o rosto com o seu véu, e Black ao chegar, na quietude da casa pede-lhe que retire o véu, para a pode ver melhor. Esperar muitos anos por um tal momento. Black demora-se no rosto e nos olhos da amada, que é agora uma mulher amadurecida pelo casamento e pela maternidade. Abraçam-se, "sem sentir culpa", nas palavras de Shekura. Beijaram-se e o mundo pareceu banhado de uma luz suave, irradiação do próprio sentimento de amor: "como se o mundo inteiro mergulhasse numa luz divina".
Chegamos então à diferença do que acontece com a Sulamita e o que vai acontecer aqui, neste capítulo 26:
Black acaricia os seios de Shekura, mas não os beija, como ela desejava, demasiado atrapalhado para isso, e tomado de desejos mais rápidos e fortes: puxa-a contra si e fá-la sentir a " sua masculinidade endurecida", o que de início não a inquietou. Mas o que se segue corre mal, Shekura não se dispõe a satisfazer todos os desejos do amado, e eu poupo o leitor aos pormenores.
Foi como se o fantasma do judeu enforcado tivesse amaldiçoado aquele lugar, não permitindo mais do que uma directa e algo grosseira exposição do desejo de Black pela sua Shekura.
Haverá aqui algum oculto jogo de palavras com a Shekina, o rosto feminino de Deus, na tradição da Kabala? A Shekina que, afastada do Éden, perdida no mundo da materialidade, se lamenta em busca da unidade perdida?
Da perfeição dos pés da Sulamita, ao seu pescoço torneado, à cabeça de altivo porte construiu o rei-poeta um edifício, uma torre de grande nobreza, a do corpo que suporta, com a dádiva da vida, o monumento da Criação.
Quanto a Shekura:
O encontro com Black não projecta idêntica energia (uma romãzeira invernosa e melancólica, uma casa amaldiçoada) mas somos levados contudo a uma certa indulgência perante o comportamento que chocou de início a amada e Black tenta ele próprio compreender melhor; subtil artista, capaz de esperar longos anos por Shekura e levado num impulso a tratá-la como uma prostituta, a saber, nas suas palavras " como tendo perdido todo o sentido do decoro e autocontrole por ter dormido com todo o género de mulherio barato, da Pérsia a Bagdad".
Ao longo do capítulo 27 alguma coisa se corrije.
E É então Shekura que, invertendo o processo da descrição de um corpo de amada, pergunta a Black, já recomposto:
Ainda sou bonita? responde depressa.
Ele vai então dizendo o que ela pede (repare-se, é no dizer, não no fazer, que reside o maior encantamento; a sugestão da palavra, tão forte quanto a da imagem, no caso da pintura).
E a minha roupa?
ele diz-lhe.
Cheiro bem ?
etc.
Foi tão bom o noso abraço de há bocado, conclui então ela. E foge à nova tentativa de Black de recomeçar os seus jogos de amor.
Fora delineado, neste final de capítulo, o denominado "jogo de xadrez do amor", no dizer de Pamuk.
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8 comments:
Querida Yvette continuo seguidora atenta dos seus blogues. Estou a ler "Os Jardins da Memória" lenta e gulosamente; estou à espera de romãs mais maduras para trazer algumas para olhar e quem sabe, saborear.
Será que Cântico dos Cânticos" influenciou o Oscar Wilde na sua "Salomé", principalmente quando ela é mais "atrevida" com o S. João Baptista?
Beijos da Conceição
Querida Conceição,
Esta figura feminina transformou-se em arquétipo da beleza do feminino, e Wilde conheceu certamente o Cântico dos Cânticos.
Sra Doutora! É tão bom poder continuar a assistir às suas maravilhosas aulas! Há muito tempo, li um fabuloso livro (as deusas e a mulher) de uma autora cujo nome não recordo e embora a preguiça momentânea da noite me impeça de o ir folhear, pergunto se, à semelhança do homem, não terá a mulher vários arquétipos? Ou será que ao mesmo arquétipo correspondem vários "modelos divinos" de mulher? Obrigado pela atenção.
Escrevi primeiro o comentário à mensagem anterior e só depois vim ler o comentário mais recente. É curioso que refira aqui o Cântico dos Cânticos; fiquei baralhada pois estava quase certa de que o que Salomão bebeu foi mesmo «o sumo da romã de Sulamita».
Vou tentar averiguar se se trata de uma questão se tradução/traição que não deixaria de ser curiosa.
E ouso - ai de mim- colocar uma questão: ao referir-se ao «primeiro par, de Adão e Eva» nega, premeditadamente a existência de Lilith?
É que, se acrescentarmos esse elemento, a sublimação torna-se (de)gradação. Prometo que vou hoje comprar o livro de Pamuk mas, do que nos revela nesta sua mensagem, ousaria dizer que começamos por ter uma Lilith que recusa submeter-se a Adão e ssume a sua sexualidade plenamente; uma Eva que, tendo, embora, a iniciativa, a vai gradualmente perdendo à medida em que se submete a Adão; Uma Sulamita que tem a iniciativa e envolve Salomão na sua sensualidade; a personagem do romance de Pamuk que desejando, embora, um amor mais sublime, não consegue a resposta desejada.
E reparo, agora, que nomeei 4 mulheres assim como são quatro, se bem me lembro, os símbolos do arquétipo de feminino, segundo Jung.(Julgo que a personagem de Pamuk corresponde ao arquétipo que Jung faz coincidir com Gioconda... ou talvez não... vou ler o livro, pronto !...)
Curioso, também, o tema do jardim; perfumado ou fétido, ele é ponto de passagem, de transição; símbolo do sexo feminino, é ponto de passagem entre a vida e a morte, o consciente e o inconsciente - uns e outros apenas as duas faces da mesma existência.
Caro Sérgio, obrigada pela sua amizade.
Sendo a natureza humana complexa e contraditória (à imagem e semelhança do que Jacob Boehme dizia da natureza primordial, luz e sombra, ordem e caos)são igualmente contraditórios os arquétipos da mulher.
Se a figura da mulher se foi espiritualizando ao longo dos tempos, culminando na perfeição da Virgem Maria, nunca deixou de haver o oposto: a mulher negra, perversa, destruidora; Lilith, Dalila, Salomé, a Carmen (que se contrapõe ao D.Juan)etc.
O interessante é que um símbolo carrega também uma carga de ambiguidade que o torna universal.
Assim a Virgem Negra, de que há várias representações em vários paises, faz-nos pensar numa Virgem-Mãe terreal, próxima do que são as criaturas que a veneravam e veneram ainda.
A Sulamita é negra, mas bela.
A Pedra alquímica,símbolo de uma perfeição desejada, é descrita como pedra negra, coisa suja, coisa vil.
A marca da imperfeição.
Se for ler a obra de Orhan Pamuk, que me levou um pouco a estes posts, descobrirá que a mulher no centro da acção se revela imperfeita, fruto das circunstancias e da sua natureza.
Um exemplo de texto de amor que bem pode ser lido a par do Cântico dos Cânticos é a novela do Abencerraje de Toledo, de 1561(há edição recente).
Perfeita novela de amor cavalheiresco alude ainda ao trágico destino da linhagem dos Abencerragens.
Nesta multidão, globinerente, e em grande velocidade as composição convivem em ininterruptos apuros, prescrevendo de cada um o aperfeiçoamento das capacidades mais complexa do ser sensível.
A metamorfose.
Alambique,
No n. 8 da quinto poema, já e a Sulamita que se dirige ao Amado e lhe diz "dar-te-ei um vinho perfumado/ o meu licor de romãs".Pode ser figurado, pode ser sexualizado, a imaginação de quem lê dará a orientação.
Aí temos um exemplo de como uma ideia puxa outra e o nosso pensamento (curiosidade) nos leva um pouco mais longe.
O positivo deste exercício de pensamento e comunicação é lermos mais e melhor, se fôr possível.
Agradeço imenso a sua lição. Assim que tenha tempo, hei-de ler os livros que indicou:)
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