Tuesday, November 19, 2019
Sérgio Ninguém, o pescoço na navalha, Eufeme Poesia
Transparece, na elegância de um cinzento negro, meio acastanhado, da capa, o traço fino de um rosto. Por aqui começa a sedução que nos levará a abrir o livro, a ver, a ler o que nos diz, e sobretudo o que esconde. É o que esconde que dá impulso ao desejo de ler. O leitor é exigente: como aquele que me disse, de um último livro de Lobo Antunes, "li a primeira página, fiquei de barriga cheia (sic) e depois era tudo igual, não consegui ler mais nada".
E mais exigente ainda é o leitor de poesia, o fiel, o que nunca abandona nem trai a mágica palavra que procura. Porque na poesia não pode haver repetição nem disfarce: está ali a palavra nua, entregue como corpo que no amor se entrega, quem diz amor diz a morte, e assim nos surge, em leitura mais funda este título de o pescoço na navalha. O poema é o risco assumido de colocar a cabeça nessa navalha que sem perdão pode rasgar o pescoço que foi desnudado e exposto. Poesia é exposição. E pode ser dolorosa e fatal. Mas também é certo que só um poeta pode expôr-se desse modo, só ele e mais ninguém.
Sérgio (1976) pertence a uma geração de poetas que só agora tenho vindo a descobrir, e me trazem a surpresa que há algum tempo me faltava, a de ler poesia que não fosse sempre a mesma coisa, sempre igual, repetindo-se julgando que se inovava.
Em parte sei que é da minha idade: li tanto, e sempre, de todas as grandes obras do mundo, que será difícil deixar-me encantada, seduzida, surpreendida com alguma inovação genuína que me prenda - e do princípio ao fim do que estou lendo.
A epígrafe de Herberto Helder fez-me pensar que bom, estou entre amigos. E que não se diga que na poesia não há afinidades, empatias, amizades do fundo do coração. Porque as há, e são elas que nos acompanham pela vida fora, sobretudo se a vida se alonga...Por que leio ainda hoje e releio um Rilke, e discuto com os seus Anjos, que descobri aos dezóito anos, em Coimbra? Porque foi amizade de uma vida...o mesmo com Sophia, agora centenária.
E por que me acontece o mesmo com Herberto e alguns outros, que descobri e li já em Lisboa, e os guardo como se tivesse, nesse momento, acabado de os descobrir pela primeira vez? Descubro e volto a descobrir. A grande poesia é uma descoberta permanente. Relembremos Pessoa, que foi pai fundador e inspirador de tanta coisa.
Mas volto a este Sérgio, que se esconde num ninguém que não tem outra carga que não seja essa: a voz de ninguém é a voz de todo o mundo, como nas Moralidades medievais. Por outras palavras, busquemos nele, simplesmente, a universalidade plural de todo o mundo e ninguém, e nunca o saudosismo de um Frei Luís de Sousa, ainda que do grande Almeida Garrett.
Não há saudosismo neste Sérgio Ninguém, há uma ocultação surrealista, provocatória, como quem diz, não procurem por aqui o que não vos vou dar, não se trata de uma navalha sobre um pescoço, mas sim de um pescoço numa navalha, arriscando sem medo.
O motivo que ocupa a primeira parte do ciclo de poemas, QUEDA, é o do sofrimento, repetido em vários tons, mas todos de uma nigredo alquímica, de que o corvo negro é a mais perfeita figuração, enquanto o seu vôo não se afunda no abismo: "o poema dentro do abismo".
Em DELÍRIOS, o sofrimento transforma. Sabemos que é disso que trata a alquimia da alma - pela depressão, integrada, a transformação que a Pedra Filosofal representa: " A transformação veio sempre mais tarde", diz o poeta. Nem poderia ser de outro modo, pois a travessia é perigosa, é sobre o fio da navalha...(um livro que todos lemos, quando jovens).
Irrompe então, a dada altura, um longo poema, dedicado a todos os poetas em gavetas, ou seja aos inomináveis, aos ninguéns que habitam a palavra, o seu horror, o seu temor. Rompido o silêncio, nasce um grito "bem ALTO", e a leitura dos versos seguintes evoca um Rimbaud perdido no seu Barco Ébrio, ou um Pessoa na sua Ode Marítima - tudo viagens que se perdem num "oceano longínquo", numa torrente que é corrente de pensamento e se solta, de mão livre, nos últimos versos que já entretanto fugiram da gaveta escura da alma:
O poema treme e estremece violentamente.
Um medo furioso de incerteza e de infinito,
se os fundos falassem:viam-se línguas vermelhas
entrançadas umas nas outras -
e nem a poesia resistia a este delírios loucos
e fugazes.
Podia agora recuperar um último aviso ao leitor:
caro leitor,
odeio a normalidade como filosofia e princípio,
procuro intensamente o desbloqueio
de qualquer coisa,
porque tudo tem que ser desmantelado
....
a vida é criatividade dentro da criatividade
com a fantasia e o sonho ao largo.
Em EPITÁFIO retomam-se, do bestiário alquímico, de novo os corvos do negro, e o florescer das orquídeas, "trancadas nos segredos do mundo". O negro e o branco, os opostos de "uma pedra sofrida".
Do sofrimento à experiência vivida da Pedra Filosofal, assim vai o caminho, e deixa-se em suspenso o pescoço que se desejou colocar na navalha. O perigo está sempre lá.
José Manuel Castanheira, Fausto de Pessoa, livro de Artista
-->
José Manuel Castanheira: Fausto revisitado em Mefisto...
O mito de Fausto, que no
século XVI pela mão de Marlowe adquiriu dimensão universal foi ampliado com
Goethe muito para lá da tentação do poder da Magia e da perseguição do Belo,
oferecendo à nossa reflexão um poder maior: o da Livre Escolha entre o Bem e o
Mal, e o da transformação do mundo pela crença no valor do Trabalho, no Serviço
dos outros, já na segunda parte da tragédia, onde está cego e Mefisto espera
vir a roubar-lhe a alma.
Se nas primeiras formas, nos
primeiros momentos, tudo se centra no egoísmo do desejo (Fausto irá, ainda que
sem se dar logo conta, sacrificar Margarida ao seu desejo) já na segunda parte
da tragédia Goethe, bebendo nos ideais do século XVIII de Liberdade, Igualdade
e Fraternidade que adoptou como maçon, orienta o seu pensamento para uma esfera
em que Mefisto, o demónio tentador, não poderá penetrar. E assim se salva o
herói, e é Deus, que no seu alto trono ganha afinal a aposta, feita no homem e
nessa qualidade só dele de querer sempre mais, numa luta incessante pelo Conhecimento.
É por aqui que seguirá
Fernando Pessoa, o poeta da interrogação e busca permanentes. Evoco os versos
que já em 1913 traduziam um pendor filosófico marcante, em Além-Deus:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
( I, Abismo)
A interrogação sobre o Eu, esse eu que se perde num devaneio
que súbito permite uma iluminação (o encontro com Deus) é muito semelhante às
interrogações de Fausto, em quem Pessoa concentra perplexidades e
interpelações, negação e busca permanente, nos fragmentos que nos deixa. Se
tivemos em Marlowe, ao gosto renascentista, a perda da alma em troca de uma
beleza antiga, a da Helena clássica por quem tantos deram a vida, e em Goethe a
aquisição de um saber alquímico, hermético e profundo, figurado no Eterno
Feminino, e no valor do Símbolo como portão do Uno e do Todo, Pessoa, que leu
Goethe (está na sua biblioteca pessoal) não consegue elaborar um verdadeiro
sistema que contenha uma lição paralela
à dos outros, ainda que de pendor modernista, logo mais céptico e de leitura
mais aberta. O que nos deixa, e só podia mesmo ser desafio incompleto, fragmentário, é um
conjunto de interpelações, de interrogação sobre a essência do ser e do eu, a que os seus versos não darão nunca resposta.
Podemos aqui louvar a arte do
fragmento, como fez Novalis, o grande romântico, contemporâneo de Goethe, ou a
utópica busca da flôr azul, também
ela, como Deus, mistério inalcansável. Mas na inquietação de Pessoa há mais do
que isso. Um Fausto que é seu alter-ego, e cuja busca assumirá outras formas,
outros nomes (os múltiplos heterónimos) dos quais terá sempre consciência,
enquanto a de si próprio se esvai. O que é ser
ele, e estar ali diante do rio, a vê-lo? Ou seja, o que é ver o rio (ter
consciência de outro, de outra coisa) enquanto em simultâneo desperta a
consciência de si?
Consciência
é a palavra-chave, a porta que se abre para
o conhecimento.
Entre os papéis que se
encontravam na famosa arca, e que tanto trabalho deram a alguns estudiosos que
organizaram e decifraram uma letra por vezes muito difícil, há um conjunto que
nos interessa especialmente, para este caso do Fausto :
” O conjunto do drama representa a luta entre a
Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida. A Inteligência é
representada por Fausto e a Vida diversamente...” ( Teresa Sobral Cunha, Fausto, ed. Relógio d’Água, p. 11).
Falemos da Vida, como faz
Mefisto, numa conversa com o estudante que procura a sabedoria junto de Fausto:
“ Pálida, amigo, é toda a teoria / mas a árvore da vida é verdejante” (Paulo Quintela, ed. Universidade de Coimbra, p.89).
Já Fausto se declarara, de
ínício, cansado e farto de tudo o que tinha estudado ao longo dos anos, e o
tornara sábio em matérias várias, como a filosofia, a teologia, a medicina, o
direito, para concluir que não passava de um tolo: “ Eis-me aqui agora, pobre
tolo, / tão sábio como dantes! “ (p.29).
Reconhece afinal, como
Pessoa, que nada conhece, e que é chegada a hora de outra coisa:
“ Teu mundo é isto? Chama-se
a isto um mundo? “ (p.30).
Espera, da contemplação do
signo do Macrocosmos, uma revelação que o ilumine. Mas não há ali ajuda.
Segue-se o sinal do Espírito da Terra:
“ Tu, ó Génio da Terra
estás-me próximo!” (p.32). E por fim, a invocação do signo do Espírito, que lhe
surge numa chama avermelhada, mas a que Fausto, aterrado, não resiste:
“Sinto / que o teu aspecto suportar não
posso!” (p.34).
E Goethe deixa-nos então com
o enorme desalento do seu herói, tão ambicioso de início, tão desapontado agora:
Fausto- Tu, que o mundo vastíssimo circundas,
Quão perto sou de ti, potente Espírito !
Espírito- És igual ao espírito que entendes,
A mim não!
Com este imenso anseio de
alcançar algo mais, muito mais, do que um saber cinzento, se expôs Goethe a
Pessoa, que o leu , entrou em diálogo com ele, por assim dizer, e tentou ir
seguindo o seu caminho. O da Inteligência, como diz, que a Vida iria derrotar.
Iria, mas não foi. Em Goethe ganhou a vida, no final da tragédia, luminosa e
simbólica na sua integração. Em Pessoa não se chegou a conclusão final, os
fragmentos deixam indícios do possível, mas permance sempre a interrupção de
uma inteligência que interfere, reflecte e obriga a reflectir, mas não ilumina
nem resolve. No poeta a consciência é disruptiva,
não é unificadora. A sua dedicação ao esoterismo, a sua curiosidade imensa, que
nem a magia de um Crowley satisfaz, leva-o a ler, a ler tudo o que encontra nestes
domínios, mas ao contrário do herói de Goethe o Fausto de Pessoa não se
entrega, e quem não se entrega não recebe nada de volta, a não ser inquietação,
dúvida, e por vezes revolta. Mas até para a revolta é preciso convicção...
Retomo, porque me agrada uma
versão um pouco mais fiel, a minha tradução da afirmação de Mefisto ao
estudante que pretende ser orientado pela sabedoria de Fausto, e que o diabo
ali finge ser, ocupando o seu lugar:
“ Cinzenta, caro amigo, é
toda a teoria, / ...e verde a árvore de ouro da Vida. É importante a afirmação
de que é de ouro a árvore da Vida, e
que se contrapõe ao cinzento de toda
a teoria. Em Goethe o ouro é o ouro alquímico dos filósofos herméticos, o
verdadeiro símbolo da alma sublimada, que também Pessoa tinha lido, nos volumes
de A. E.Waite ( The Hermetic Museum, Londres,1893, reed. 1994).
Falemos agora de José Manuel
Castanheira e das sua pinturas sobre os fragmentos do Fausto de Pessoa que melhor apontavam os segredos e os anseios da
obra do nosso poeta maior.
1
Logo na primeira, a escolha da côr intensa, castanho avermelhado
para um diabo que sob asas imensas abraça um mundo que é seu, como que define
José Manuel o tema central de toda a obra: a aposta de Deus no céu e do seu apesar
de tudo fiel companheiro, pois conversam à vontade sobre a espécie humana, e o
mundo que habita. Será este globo azul o da purificação? Ou o da morte negra,
da ilusão esvaída, do Nada em que tudo cai e se desfaz?
Esta é uma primeira
imagem–resumo de um sentido simbólico, profundo, que será necessário ir
descodificando, com a ajuda dos outros. Deus permitiu que o Diabo tomasse conta
do mundo e da espécie que o habita e Fausto-Pessoa-Mefisto vai interpelar?
É uma figura ambígua, hermafrodita, ainda presa ao céu por
umas cordas, que a consciência de si que o poeta–adepto adquire poderá romper.
Ou com ela afundar-se, aniquilado pela sua impotência, proclamada (como naquele
fragmento em que contrasta Inteligência e Vida).
Esta primeira imagem com que
o pintor nos inicia à sua leitura da obra do poeta, merece um comentário mais
aprofundado, do ponto de vista simbólico. Este demónio vindo do céu, ou preso
ainda a ele, remete para arquétipos primordiais, da criação do mundo, da
criação de um Adão ainda hermafrodita, de cujo corpo feito de lama, e a seu
pedido, Deus irá moldar, esculpir, várias mulheres, imperfeitas e que o
primitivo homem recusa.
Terrível é aquela que é
remetida para um longe que assemelhamos às treva do inferno, um espaço de
castigo, de afastamento que a levará a congeminar as piores vinganças contra
quem a afastou. Com esta imagem quase brutal, na força que as asas segurando o
mundo nos revelam, teremos de contar. É o aviso, é o que diz Castanheira, que
tratará a narrativa pessoana de forma aberta e livre (nem de outro modo poderia
ser) mas deixando sempre em fundo a pulsão de uma consciência que se procura e
se esgota em perpétua interrogação. A relação de Goethe com o Feminino, é a de
um desejo que se vai sublimando. A relação de Pessoa com o Feminino é complexa,
de difícil aceitação, como a do homem primitivo na discussão com Deus. Teria de
trazer para este nosso diálogo uma nota escrita há algum tempo, no meu blog de
simbologia e alquimia, citando um belo estudo de Robert Graves, Les Mythes Hébreux (1987) sobre como os arquétipos
do Feminino se constituíram há milhares de anos, no imaginário da espécie. E se
para alguns o Feminino conduz e ilumina, até hoje pode ser para outros objecto
de pavor e recusa. Não é integrável, é
antes disruptivo de uma consciência, como a de Pessoa, que se interroga em
dúvida permanente.
2
O reflexo no espelho traz,
como em Oscar Wilde, no Retrato de Dorian
Gray, o negro escondido da alma, o horror recusado.
Mas não por muito tempo.
3
Fausto aspira ser mais do que
é, na contemplação do Cosmos, na evocação do Espírito com o qual se sente
identificado, algo que a voz do Espírito brutalmente lhe nega: ele é só o que
é, e não mais. Falta-lhe centelha divina. Essa luz poderá vir mais tarde, pelo
sacrifício de Margarida, pela revelação do Eterno Feminino desejado e
alcançado, definido como o canto estelar do Símbolo.
4
Dormir abraçando o mundo...
Entregue a uma vida maior,
feita de busca e quem sabe talvez um
pouco de amor, que não seja o cavalgar de uma noite de Walpurgis, de uma
Mefisto enganador...
Leiamos o texto DORME, pois
no sono, mais do que no sonho, se escondem os mistérios, os arquétipos da Vida,
que derrete o gelo da Inteligência...
5
E sigamos com a divisão que o
sonho introduz no sono...ou não fosse o poeta a súmula de tudo e dos seus contrários,
tentando na divisão o Uno e o Todo que Hermes já definira na Tábua de
Esmeralda: “o que está em cima é como o que está em baixo” fazendo deste mundo,
que o Diabo não abandona, o reverso espelhado do mundo celestial, de onde
afinal desceu, e do mundo infernal, a que a Barca da Vida o pode conduzir.
6
Há nos textos que também
vamos seguindo, uma alusão às Tecedeiras, que em Goethe são as Mães, e que
todas tecem a Vida. No escuro dobam, enrolam, cortam os fios que serão do
Destino: Inteligência (Conhecimento) ou Vida? Negro chumbo ou ouro puro?
7
A consciência de ser ( “o que
é eu estar a ver o Tejo a correr?” ) não impede o naufrágio da Vida, são
demasiados os escolhos, poucas ou nenhumas as escolhas, que afinal se oferecem.
A Água, elemento salvífico, dilui, mas não sublima.
A sublimação virá da última
magia das pétalas das rosas com que os Anjos, dispostos a salvar a alma de
Fausto, vão seduzir o Diabo. Mas em Goethe, não em Pessoa, o do desassossego
sem fim. Retomando a linguagem da simbologia alquímica, Goethe era solar,
Pessoa era lunar, e nesses opostos se uniam...
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