O título da Obra que vou citar, e de que vou partir de início, é de Stanford L. Drob, READING THE RED BOOK, an interpretative Guide to C. G. Jung's Liber Novus.
A sua edição, de 2012 teve o elogio de toda uma imprensa, da mais erudita à que mais aprecia a divulgação feita com seriedade e qualidade. Basta ler na contracapa os extractos.
Este Liber Novus, de que se aguardava a publicação em 2009, é uma obra enigmática e profunda, que precisa de facto de um guia que conheça a Psicologia das Profundidades e aborde os grandes temas aqui expostos com conhecimento, sem leviandade, superficial ou pior, grosseira de apressada. Muitas vezes é pela pressa de editar - ser o primeiro - que se estraga a aproximação de futuros leitores, estudiosos ou leigos.
O Livro Vermelho importa tanto à Psicologia como à História das Ideias ( e acrescento também das Religiões). Percorre o labirinto das associações, imagens, temas que se prendem com a filosofia clássica, moderna, post-moderna, alcançando também conceitos como os da mística, ocidental e oriental, a que deu especial atenção. Devolve, como diz alguém, a perspectiva da Alma a um tempo, que vivemos de grande contaminação e degradação pela política, economia, e práticas educacionais ( Professor, Robert D. Romanyshin).
Do c.v. deste Guia de Leitura de Jung, publicado por DROB, pareceu-me igualmente de destacar a obra Kabbalah and Postmodernism: a dialog and Kabbalisitc Visons: C.G. Jung and Jewish Mysticism.
Mas voltando ao Liber Novus:
Para Jung os sonhos eram desafios à complacência do ego, corrigindo uma visão parcial da consciência e consequentes atitudes, ou eram mensagens do inconsciente pondo em causa os nosso habituais modos de pensar, de sentir e de viver.
É sobretudo este lado, - do questionamento, da interpelação, do desafio - que sempre me interessou, e me transformou em estudiosa de matérias como as da alquimia e simbolismo das várias doutrinas, desde Zosimo, passando pela Idade Média, até aos tempos modernos, com expressão forte na criação artística, ainda hoje. Pois o que é um poema (ou um quadro, sobretudo com os surrealistas, confessados ou não) senão um sonho ampliado na dimensão do inconsciente, e que a consciência absorve? É James Hillman (neo-junguiano actual) quem confirma esta ideia, de que o sonho, no Livro Vermelho é a exposição de uma doutrina, mais do que um mero sonho individual. Ao mesmo tempo estranho (quase grotesco, de tanta exuberância) diz o autor na Introdução (p.xviii) é preciso que nos afundemos na sua narrativa e nas suas imagens pintadas. E que nos coloquemos também no contexto em que a obra foi escrita, tanto no seu tempo como no conjunto dos escritos de Jung em que eram expostos novos paradigmas de abordagem de uma Psicologia para novos tempos.
Jung avisa para o facto de que não poderá haver uma interpretação definitiva de um sonho, nem uma teoria definitiva sobre a psicologia. As várias teorias existentes no seu tempo exprimiam os "tipos psicológicos" dos seus autores, (a discussão e a zanga com Freud, bem testemunham o exemplo), e portanto apenas transmitiam uma verdade relativizada, parcial. Daí que a principal abordagem que o autor deste guia fez ao Livro, se concentre sobretudo nos grandes temas de Deus, da humanidade, da loucura, do caos, da morte, da ciência, da Razão, do conhecimento, da linguagem, da lógica e do mal.
Escrevi, noutro post sobre Dizer o Mal, ainda sem ter lido este Livro Vermelho, que só agora tenho em mão, e que começo por uma iniciação mais esclarecedora, antes de me debruçar sobre o seu mistério, que envolve texto e imagem (os Mandalas).
Concordo que estarei perante uma obra mais ligada à História das Ideias, do Pensamento Humano, do que à ciência da psicologia. E não me admira que por isso mesmo haja uma estrutura arquetípica nela, fundadora, criadora, inspiradora, como tem sido, para muitos de nós.
Lendo os sonhos, minuciosamente descritos, caminhamos com Jung no seu processo de individuação, uma viagem íntima, feita de espiritualidade, que inclui, das múltiplas culturas, religiões e civilizações do mundo, tradições como as do Cristianismo, do Gnosticismo, da Kabbalah, do Taoísmo e da Alquimia antiga. Tanto fio de pensamento para ir seguindo...
Importante, mais do que meditar os textos, será a meditação das imagens. O que nelas se exprime é uma narrativa do imaginário indizível, o que fica muito aquém ou muito para além do dizer das palavras. Entramos no secreto mundo de mitos e arquétipos, que assim recuperados se apropriam da substância mais funda da nossa psique, das emoções e sentimentos que deste modo se materializam, se revelam. Faltará entender. Para Jung, esta sua obra, concebida ao modo dos manuscritos medievais religiosos, é um todo, religioso na forma e no conteúdo. A edição facsimile, enorme, impede que desde logo nos prendamos à leitura. Contudo é imperioso ler, voltar a ler, estudar e meditar.
Daí a importância deste guia de leitura deste Reader que o Prof. Drob generosamente preparou para o presente e para o futuro de todos os estudiosos.
Retoma a célebre legenda do MUTUS LIBER: Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et
Invenies.
Reza, Lê, Lê, Lê, Relê, Trabalha e Descobres.
E finalmente, como aconteceu, julgamos, com Jung e as sua míticas imagens: Oculatus Abis, Partes Munido de Olhos.
Ou, simplificando: adquiriste a clarividência que buscavas.
Quem sabe se por uma sincronicidade, mais do que por um acaso feliz, destes que existem, o Facebook, nem sempre recomendável, tem trazido aos seus leitores frases soltas de Clarice Lispector, e entre elas uma que se refere ao silêncio e solidão de uma tarde feliz em que ela sente que houve um "encontro do eu com o eu". Momento raro, sem dúvida. E ocorre-me, a este propósito, citar Jung, na sua exposição sempre tão clara do que é a busca de um encontro assim, que só no silêncio e na solidão da alma se poderia dar. Diz ele que para encontrar o caminho da alma é preciso afastar-se dos homens e das coisas, e identificar-se completamente com os seus pensamentos, para depois lhe ser possível (em movimento inverso ) desligar-se deles. Deste modo se faz da alma virtualmente um deserto, e focado nesse vazio, se permite que nasça na alma um "fruto maravilhoso". O fruto é o do imaginário criativo, o dos símbolos vividos na plenitude de uma psique liberta dos constrangimentos que lhe eram alheios. (Livro Vermelho, cap. IV, O Deserto). O encontro do eu com o eu de que falou Clarice Lispector.