Wednesday, January 31, 2018

Manuel Aires Mateus vs. Antoni Gaudí e um Quarteto de cordas pelo meio

I
O título do post não explica tudo.
Porquê e de onde me vem esta ideia de contrapôr Gaudí a Manuel Mateus? 
Quando em Barcelona visitei a catedral da Sagrada Família e outras casas de Gaudí fiquei impressionada, por um lado, com a intenção modernista, mas por outro, com a relação expressamente procurada com a natureza e a religião, ou melhor, uma experiência mística que de algum modo o seu neo-gótico excessivo, barroco de tão intencionalmente trabalhado, pudesse proporcionar.
Não sei como reagiram outros: eu distraí-me com o apelo da forma, com o apelo da côr, com uma obra (e o mesmo senti nas outras) que não libertava o espaço, (como o gótico despojado dos séculos passados, o nú do românico de pedra mais humilde) mas antes o capturava nas curvas envolventes.
A mim, fazia-me falta o que encontrei nas obras de Manuel Mateus: a linha que liberta, a luz branca que tudo contém e por isso de mais nada precisa, (como na albedo dos alquimistas gregos) e ocorreu-me que se podiam contrapôr as curvas de Gaudí às rectas de Mateus, sendo que estas sim, permitiam uma leitura infinita.
São infinitas as linhas rectas, deixam um espaço que livremente respira, são fechadas as curvas que afinal nas suas dobras esconsas ainda que coloridas, não permitem que se avance.
Como falar então de espiritualidade?
Num dos artistas o esbanjamento da imaginação (com o acumular das imagens), no outro o despojamento da ideia condutora e da imagem-força que lhe induz.
Num, o permanente excesso, no outro a subtil contenção que permite que a luz entre, na sua linha infinita. Apela, deste modo, a uma mesma mística, quem sabe mais e melhor vivida, porque não permite olhares mais distraídos?
Um arquitecto é um criador que refaz o mundo à sua volta.
Contempla, imagina, desenha, projecta. Num universo em expansão é natural que a obra  reflicta, ou mesmo busque, esse espaço infinito. 
E serve-o melhor que a linha curva, a linha recta. E que um espaço fechado, um espaço aberto.
Rasgado, mesmo que, por vezes, como Gaudí, o erga para o céu.
Agora surge a pergunta: porquê falar em alquimia?
Porque no caso de Gaudí, a estrutura do seu imaginário apontava para a fase da cauda pavonis, a colorida "cauda de pavão" significando, no trabalho dos adeptos, o momento em que a materia prima se desmultiplicava numa feérica abundância de cores, que mais tarde seriam sublimadas na albedo, a côr branca, indicadora da perfeição a alcançar. Aqui entraria um outro imaginário, o de Manuel Mateus, dos brancos espaços abertos, infinitos.
II
Associação de ideias, de que Breton tanto gostava, foi em parte o que me aconteceu: ouvir a intervenção de Manuel Aires Mateus na RTP 2, no programa de Anabela Mota Ribeiro ( o segundo já da nova série, que recomendo) levando, como ela pede, uma ou duas sugestões que se prendessem de algum modo com os seus interesses e sua inspiração, sendo ele um arquitecto de mérito nacional e internacional, mais do que reconhecido. E ele, com a maior simplicidade levou um romance, o romance de Tommaso di Lampedusa, o Príncipe da Sicília que nessa obra magistral que é O Leopardo, retrata um tempo, o da grande mudança "para que tudo ficasse na mesma", como lhe diz o sobrinho que será seu herdeiro. Esse tempo, que o autor retrata, de ascensão de uma nova classe, burguesa, boçal, como se vê no filme que o livro inspira, ao mesmo tempo o desgosta e lhe dá uma sabedoria que é só própria de quem sabe olhar e ver ao longe, na distância, o que nas civilizações foi sempre marca distintiva : a mudança, a dada altura a imperiosa mudança. Chama-se evolução.
Daqui partimos para a mudança de épocas, de gostos, de prioridades, de estilos. Assim se faz a evolução das sociedades, e assim se fez, na nossa sociedade ocidental, também na arquitectura, com os seus criadores. A palavra chave, na intervenção de Manuel Mateus, como nas longas reflexões de Lampedusa foi, por um lado o tempo, mas por outro e talvez mais sublinhada, como se poderia no espaço (Lampedusa falava de casas, não gostava de dizer palácios, enquanto com o caseiro contemplava a infinita paisagem dos seus campos...) capturar o tempo: o antigo, o actual, o do futuro.
Gaudí (não me esqueci dele) procurava o futuro na convulsão reiterada de um passado arquitectónico que seria irrepetível, como foi. Não dava espaço, não deixava respirar, concebido para que se admirasse e se continuasse adiante, em busca de outra coisa. Essa outra cosia não estava lá, surgiria mais tarde, num adiantado século XX em que a relação entre artes se tornava marcante, buscada e praticada, e também, como Manuel explicou, na arquitectura, depurada e liberta, já num espaço infinito.
Falei em coincidências e aqui está a outra, a que me quero referir, e fez para mim, o pleno da semana:
a apresentação, no Festival de Quartetos de Cordas da Gulbenkian, do Memorável Jack Quartet, que (eu ia dizer me deslumbrou) me deixou pregada à cadeira onde há já uns anos eu não me sentava, naquela sala de concertos. Tocaram, de Andreia Pinto Correia, uma peça intitulada Unvanquished Space (dedicada, nas suas quatro partes, a cada um dos membros do Quarteto, seus amigos de longa data).
Partiu, como contou na conversa prévia com o público, de um texto literário de autor americano conhecido, em que prevalecia um olhar sobre a sociedade e os seus modos, presenças e ausências, de que não falarei aqui, para não me perder. O interessante é de novo esta relação, neste caso da música, com a criação literária, seu tempo próprio e sobretudo seu espaço: algo invencível.
Traz um conceito que merece muita reflexão: na era em que o espaço cada vez mais se abre, e se procura, num limite infinito, ( com a ajuda também, sem dúvida, das novas descobertas trazidas por astrofísicos e outros sábios que se ocupam do espaço ) este conceito de um espaço invencível: mas que interpela os criadores, os desafia, e aguarda as novas soluções que nos venham propôr...Neste espaço invencível Andreia introduz "periferias da luz". 
O que me permite recuperar a reflexão de Manuel Mateus, sobre as linhas, puras, o branco, que atrai e devolve a luz, no espaço que se abre às casas.
O mesmo se verifica na peça deAndreia, onde os sons se abrem até, quando preciso, ao ruído, os ecos da ponte de Brooklyn, tão conhecida no mundo, por fim dando lugar ao suave mergulho no silêncio que foi rompido, e tal como nas casas brancas projectadas permite que se caminhe pelo misterioso infinito que nos aguarda lá fora.
Lá fora, onde a inspiração ( a respiração) é livre e consentida.
Já estarei um pouco perdida, nestas lucubrações, mas é-me importante agora parar, levada por estes criadores, a novos conceitos, como o de liberdade e infinito.
Somos livres? Ou somos determinados, logo à nascença, como Lampedusa tenta dizer a um sobrinho que já viajou, já limpou a cabeça de preconceitos e a quem o novo modelo social (ainda que injusto, não assusta? ).
E que limites, na sociedade e na arte ainda se nos impõem? Com que linhas, que sons, que casas, podemos ainda sonhar?
Os infinitos lugares da nossa infância, do nosso crescimento, do nosso amadurecimento.
Onde fica a alquimia, de que parece que me fui perdendo? Nos quatro andamentos da peça de Andreia, que se completam:
Um labirinto submerso - nigredo
Os cantos reluzentes de um espaço por conquistar - cauda pavonis
Periferias da luz - albedo
Para dentro do silêncio- rubedo
Confuso? 
A explicação noutra altura, noutro lugar... 





Wednesday, January 10, 2018

Deus, Adão e as suas Evas

Les Mythes Hébreux, de Robert Graves e Raphael Patai (Fayard, 1987) são um cuidadoso levantamento de várias fontes, de mitos e símbolos que estão na origem das várias civilizações do médio-oriente e tomaram forma mais definida no Antigo Testamento como o conhecemos hoje em dia. No post anterior falei de Lilith, a grande-mãe, primeira mulher de Adão, que a repudiou. Deus fez então mais algumas tentativas. Mas comecemos pela criação de Adão, visto que Eva foi criada em especial para ele, para lhe agradar, ao contrário do que sucedera com Innanna. Passo a descrever:"Ao sexto dia, por ordem de Deus, a terra pariu Adão. O fogo, a água, o ar e as trevas, - todos estes elementos se combinaram nas entranhas da terra para produzir os seres vivos que foram surgindo ao longo do terceiro dia, do quinto e do sexto, em que junto com o homem foram criados os animais terrestres e os répteis. "Deus não usou uma terra qualquer, mas escolheu um pó de grande pureza, para que o homem pudesse ser a coroação da Criação. Agiu verdadeiramente como uma mulher que mistura a farinha com a água, e de uma parte da massa criou o homem, que se tornou a primeira das oferendas do mundo". Há outras versões, sobre o local e o tipo de terra que foi usado por Deus, na criação do homem. O nome Adão derivaria da argila vermelha de que foi feito, segundo alguns, segundo outros o nome significa Homem porque a matéria de que foi feito é do Monte sagrado no qual Abraão mais tarde se dispôs a sacrificar o seu filho Isaac, estabelecendo assim um elo sagrado com a humanidade inteira. Outra versão: Deus terá utilizado duas espécies de pó para a criação de Adão: uma do monte Moriah ( o monte sagrado, umbigo do mundo), e a outra uma mistura retirada dos quatro cantos do mundo e molhada com água de todos os rios e mares existentes. E para garantir a saúde de Adão usou um pó macho e uma terra fêmea. Ao usar o pó de todos os cantos do mundo Deus garantiu que fosse qual fosse o país em que morressem os descendentes de Adão seriam sempre recolhidos pela terra. Adiante na descrição do processo de criação deste primeiro homem, conta-se que era ele de tal modo grande que quando se deitava cobria a terra de uma ponta a outra; e quando se punha de pé a sua cabeça tocava no trono divino. Era de uma beleza estonteante, de tal modo que a seu lado Eva, ainda que bela, mais parecia um macaco. Contudo Adão, ao pé de Deus,  embora tivesse sido feito à sua imagem, parecia ele mesmo um macaco.Todos os seres vivos que rodeavam Adão julgaram que ele fora o seu criador e lhe prestaram homenagem. Este foi um dos mitos, e uma das primeiras versões do que ia acontecendo no Éden, quando Anjos e animais conviviam com o primeiro homem (Graves, pp.77-79). Não deixa de ser interessante, contudo, verificar que para além dos quatro elementos que o formam é referido um quinto, a treva: uma treva primordial que é também substância do seu corpo moldado. Há logo ali um indicação do negro da alma, uma imperfeição que se revelará depois como uma quase maldição imposta ao ser humano. Segue-se então a série de companheiras com  que este Adão foi sendo confrontado, a seu pedido. Para que Adão não fosse o único dos seres criados a não ter uma companheira Deus mergulhou-o num sono profundo, tirou-lhe uma costela a que deu forma de mulher e fechou a ferida. Adão acordou e disse: esta criatura será chamada "mulher" porque foi extraída do homem. Homem e mulher serão uma única carne. Eva significa "Mãe de todos os vivos". Em algumas versões diz-se que Adão pediu a Deus que lhe desse uma companheira depois de ver que todos os seres tinham um par, de ter tentado unir-se às fêmeas que passavam diante de si, mas sem prazer algum.Deus criou primeiro Lilith, de que já falei noutro post. Aqui criou-a com lama e lixo em vez de terra pura. Desta união, que seria depois desfeita, nasceram demónios como Asmodeu e outros, que atormentam a humanidade. Lilith acabou expulsa para o que se definiria como região das trevas. Deus fez então uma nova tentativa: "moldou perante Adão o corpo de uma mulher usando ossos, tecidos, músculos, sangue, e secreções glandulares, cobriu o todo de pele, e colocou tufos de pelos em algumas partes. Ao vê-la Adão sentiu um tal nojo que mesmo quando ela se ergueu na sua plena beleza diante dele a repugnância foi invencível. Então Deus percebeu que mais uma vez tinha falhado e levou esta primeira Eva embora. Para onde foi? Ninguém sabe ao certo" (pp.82-83). Deus fez uma terceira tentativa, mas agiu com mais cuidado. À costela que retirou de Adão, adormecido, deu a forma de uma mulher. Fez-lhe umas tranças e ornamentou-a, como se fosse uma noiva, com vinte e quatro jóias, antes de acordar Adão. Este ficou deslumbrado. Noutras versões diz-se que ao princípio Deus tinha pensado em criar dois seres humanos, macho e fêmea;  mas acabou por desenhar um único,  rosto masculino virado para a frente, e um rosto feminino virado para trás. Depois mudou de ideias tirou o rosto que olhava para trás e fez para este último um corpo de mulher. E há mais: há versões em que se julga que Adão foi criado como um andrógino, cujos corpos, masculino e feminino, estavam unidos pelas costas:"Visto que esta posição tornava difíceis as deslocações, e não tornava cómoda a conversa, Deus dividiu o andrógino e deu a cada uma das metades umas costas novas. Colocou estes dois seres, separados, no Éden, proibindo-os de copular" (Graves, 83). Deus encheu as suas criaturas adâmicas de proibições. Seriam para ser quebradas e justificar assim o mal da existência? A verdade é que foram quebradas, por incitação de uma serpente que por ali andava, junto delas, com um grande à vontade. Como se fosse um terceiro membro da família...
Gilbert Durand explicava que um mito era "uma narrativa fundadora". Através do mito adivinhava-se um corte, uma mudança civilizacional, antecipando modelos que deixavam de parte os antigos existentes até aí: transições do paganismo politeísta para um monoteísmo de rituais próprios, dedicados a um só Deus, por exemplo; ou abandono do sacrifício humano em prol da imolação de animais como oferendas; ou reflexão sobre a mortalidade do homem, com a Queda de Adão e Eva expulsos de um Éden perfeito, de luz e pedrarias, em que não seria permitido procriar - com a expulsão surge o castigo infligido a Eva de parir em dôr e sofrimento. Deus criador, neste fragmentos antigos, está muito próximo do homem que criou: engana--se, repete as tentativas de acertar com o gosto de Adão ao moldar a mulher, um corpo que o complete e que lhe agrade...e finalmente, ao descansar no sétimo dia, também se engana, pois o seu Éden tinha ab initio, junto com Adão (no sexto dia) criado uma serpente que se tornou íntima companheira, conversando, interferindo com as ordens do criador, e levando por fim a que caíssem na tentação de comer  do fruto da árvore proibida, o que causou a sua expulsão do paraíso. Eva foi a culpada: mulher curiosa, desafiadora, querendo saber mais, quase forçando um Adão mais ingénuo a cometer o pecado. Nestas versões antigas o jardim do Éden é algo de maravilhoso, jardim de luz, árvores cujos frutos são pedrarias, e colocada entre elas a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O primeiro homem depois de Adão a ter entrado vivo no paraíso, segundo outras versões que Graves vai citando, foi Hénoch (p.87). Viu a Árvore da Vida, à sombra da qual Deus muitas vezes descansa. Feita de "ouro e carmim, ultrapassa em beleza todas as outras coisas criadas; frondosa, cobre o jardim inteiro, e há quatro rios- de leite, de mel, de vinho e de azeite- que saem das suas raízes. Um coro de trezentos anjos ocupa-se deste paraíso, do qual há quem diga que não se situa na terra, mas no terceiro céu. Isaac, que foi o visitante seguinte, estudou lá durante três anos; e mais tarde o seu filho, Jacob, teve licença para lá entrar. Mas nem um nem outro contaram o que lá tinham visto" (p.87).Estas descrições mais se parecem com visões, ou revelações dadas aos eleitos, do que descrições de uma espaço divino em que os fiéis pudessem de facto acreditar. Moisés também é referido, mas levado a este Éden pelo seu Anjo da Guarda, Shamshiel, que lhe mostrou, entre outras maravilhas, setenta tronos cravados de jóias, destinados aos Justos e pousados em pés de ouro fino, flamejantes safiras e diamantes. No maior e mais rico estava sentado o Pai Abraão.A seguir a Moisés mais nenhum mortal foi julgado digno do Paraíso, excepto o Rabbi Jehousha ben Lévi, Mestre de excepcional piedade, que entrou graças a uma artimanha, que é a seguinte: quando o Rabbi já estava muito velho, Deus ordenou ao Anjo da Morte que lhe inspirasse o desejo de morrer ; então Jehoshua pediu que lhe mostrassem o lugar que lhe estava reservado, mas antes de se porem a caminho pediu ao Anjo que lhe desse a espada- pois podia, de caminho, haver algum acidente que o fizesse morrer de medo. O Anjo deu-lhe a espada, e quando chegaram ao paraíso sentou o Rabbi no alto do muro e mostrou-lhe o lugar que lhe estaria reservado. Jehoshua saltou abaixo do muro e declarou que ia ficar ali. Os Anjos queixaram-se a Deus: este homem tomou de assalto o paraíso! Mas Deus permitiu que ele ali ficasse, por nunca ter faltado a um juramento, durante a sua vida (Graves, p.88). Esta narrativa continua, mas  o que nos interessa aqui é verificar como havia comunicação entre Deus, os homens, os Anjos, e que ora um, ora outros, podiam ser perturbados nas suas decisões, revelando ou alguma inocência ou alguma ignorância que viriam a determinar a continuação do que era suposto acontecer.O que se discute? Qual o poder de Deus, e dos seus Anjos, sobre as suas criaturas? Abençoadas ou malditas?Um poder afinal limitado, porque contornável pela astúcia, neste caso, de um Rabbi Santo, ou por uma serpente malvada, no Génesis. Um conquista um lugar no paraíso, os outros são miseravelmente expulsos e castigados, embora Deus tenha, ao sétimo dia, louvado a sua obra e descansado, confiante.Como Robert Graves aponta nas suas notas (é uma obra que recomendo não apenas pela leitura directa, mas sobretudo pela riqueza de informação que acrescenta nas notas finais),há muitos elementos da Queda do homem que remontam a épocas muito mais antigas do que os relatos do Antigo Testamento como o conhecemos. Só que a sua sistematização é mais tardia, e até contém, por vezes, elementos de influência grega. A epopeia de Gilgamesh - de que eu já me ocupei em posts anteriores deste blog - datada de 2000 A.C. numa primeira versão, descreve como a deusa suméria do amor, Aruru, fez com argila um selvagem de nobre porte, Enkidu, que cresceu entre gazelas e animais selvagens, até ao momento em que uma sacerdotiza enviada por Gilgamesh o levou para a cidade de Uruk e o iniciou nos mistérios do amor (Graves, p. 94). Irmãos de sangue, os dois heróis não voltam a separar-se e a narrativa segue com a busca de uma planta da imortalidade que lhe será depois roubada por uma serpente, no fundo mar, fazendo com que Gilgamesh acabe por aceitar a sua mortalidade.Estas e outras narrativas, que Graves refere , todas se ocupam da questão da mortalidade do homem e do erro, ou abuso e arrogância, que levou à expulsão do paraíso oferecido. Curioso é ver que em outros mitos, um cretense, outro lídio, contado por Plínio, é dito que as serpentes possuíam uma "erva da imortalidade" (Graves, p. 95).Neste conjunto que estivemos a ler, pela mão de Graves, uma transição se verifica, nas lendas e mitos hebreus: a passagem de um matriarcado politeísta, do culto das deusas em grutas escondidas ou templos misteriosos a um patriarcado monoteísta, de julgamento severo sobre o papel da mulher na sociedade, um papel que a reduzia a uma função menor e de quase anulação.
Os mitos são o que são: memórias de um imaginário antigo, em que permaneceram até aos nossos dias figuras e temas fundamentais. Porque sumarizam mistérios ainda não desvendados: o do mal, o da morte, o da esperança de alguma ressurreição. Que uma serpente seja veículo, um par primordial remeta sempre para o feminino o negativo do mito, e Adão seja a vítima perpétua - quem diz Adão diz, como se sabe, o Homem, a Humanidade criada - o ser que nos primórdios tinha um corpo que cobria a terra inteira, quando se deitava no chão...tudo isto nos interpela, ainda hoje, sobre o nosso destino e o destino do mundo, causa ou efeito do que nós outrora, com ou sem Deus teremos praticado...A caixa de Pandora, (que é um Vaso) que tem inspirado múltiplos artistas, permanece aberta, ou mal fechada e deixando sair todas as vilezas possíveis e imaginárias. Só muito lá no fundo uma esperança, que mal se vê, ou adivinha.Que mão poderá, algum dia, selar de vez a tenebrosa caixa?Nos mitos o castigo surge como a quebra de uma ordem, um juramento, uma promessa feita. Uma desobediência, em suma.O que deseja o mito, na sua lição, ensinar? Que a ordem não pode ser quebrada? Que se tal acontecer o regresso ao caos será irremediável?E de que ordem e de que caos se fala então nos mitos?Ainda não temos resposta.