Saturday, October 11, 2014

Miguel de Carvalho
Deste poeta que faz livros à mão ( quem me dera  ter essas mãos, e esses olhos ) recebo uma prenda única:
do vento coagulado no pano
edição artesanal Debout sur l'Oeuf, exemplares numerados e autografados, como se deve em livro de arte...o meu tem o número 75, e eu gosto especialmente do 7, meu número, e do 5, número da vida (para Fernando Pessoa, num dos dos seus escritos do espólio).Uma pequena-grande obra-de-arte, cabe na palma da mão.
O título do poema lança-me um desafio, e por isso o trago para este blog, que se ocupa de mistérios um pouco maiores, quando a leitura permite.
Gaston Bachelard diria temos no vento o Ar e no pano em que se coagulou, a Terra. Dois elementos do nosso imaginário arquetípico, a que o verbo coagular acrescenta uma dimensão alquímica: solve et coagula...et quod quaeris invenies.
Dissolve e fixa e descobrirás o que procuras. 
Ao estudioso não será necessário lembrar que é na fusão de opostos que se encontra a lei máxima da filosofia hermética e suas doutrinas que podem variar muito nos nomes atribuídos à Perfeição que se busca (como se pode ler em Dom Pernety, no seu dicionário): Pedra filosofal, Elixir de Longa Vida, Graal, Matéria Negra, etc. mas que nos processos e considerações apontam sempre para um mesmo caminho de estudo, leitura, releitura, meditação (das imagens ou dos textos) até que pela chamada Via, pela chamada Obra, se atinja a sublimação da consciência num Eu Superior Espiritual.
Mas primeiro entender os opostos....Vento - que é pensamento, e "pano" que é matéria-prima terreal, e receberá a dimensão espiritual que o Vento traz consigo. 
Eis o poema:
Os pássaros sabem de cor
esculpir um rosto no núcleo da calçada marmórea
sulcar um corpo caminhante entre sombras que rasgam
tendo o vento e o moinho como testemunhas
e sobre eles o silêncio das cantarinhas desnudadas.

engravidar ao crepúsculo as estrelas nos campos de batalha
à semelhança das consciências rendilhadas pelo sol
dos espojinhos
enquanto diz uma criança 
o poema dos nossos receios
....
Se dúvidas houvesse, de que estamos perante uma "iluminação" (Rimbaud gostaria desta ideia) um súbito caminho que se rasga nas trevas, na noite, no corpo das estrelas, que têm, também elas, como o poeta que as diz "fome e luz" .
Não é fome de luz, é uma "conjunção" (leia-se Jung, na definição do Mysterium Coniunctionis ) de espírito e matéria, um corpo transfigurado, como na visão da Aurora Consurgens atribuída a São Tomás de Aquino. A carne feita Verbo.
Deixo ao leitor o esforço e o prazer de procurar o livro, junto ao Rio Mondego, de Coimbra e não o transcrevo todo.
Uma palavra mais para a editora que foi criada: DEBOUT SUR L'OEUF !
Aqui está uma denominação que faria as alegrias de um Jean Cocteau e seu grupo de amigos poetas da vanguarda surrealista. E de Magritte, o genial pintor que não gostava que se falasse de surrealismo ou de simbolismo (hermético) na sua obra...como sou atrevida, falei, nalgum destes posts mais antigos. Mas agora teria de procurar e não é o momento.
Mas esta imagem do OVO, mais uma vez me faria caminhar para os significados do Ovo alquímico: o Todo e o Uno que o ovo em si contém!
Como diz o poeta, na última estrofe:
" Este poema vivido
não foge da memória"...

E não fugirá, pois a memória é o depósito imenso, oculto, em que se vive o Tempo e se recorta o Espaço.