Os livros são assim: amam quem os ama, ainda que por vezes distraidamente, como eu.
Tenho na minha biblioteca, há anos, um livro que comprei, a biografia romanceada (mas pouco) de John Dee (1527-1609) matemático, astrónomo, astrólogo e vidente da Rainha Isabel I da Inglaterra.
Nessa altura estava eu a ler a fotocópia do seu Diário, que tinha trazido de Inglaterra, procurando aí referências que me ajudassem a melhor entender o espírito e a cultura da época. O romance ficou na estante.
Havia outro romance, de Gustav Meyrinck (agora renasce o interesse pela sua vida e obra) que se ocupava deste mago, e que eu lera primeiro, O Anjo À Janela do Ocidente, na tradução francesa. Li depois todos os romances de Meyrinck, quando percebi que em cada um deles expunha uma doutrina hermética precisa, desde a Kabbala ao taoismo tântrico, ou à alquimia.
Mas agora é deste outro romance que pretendo falar, de Claude Postel (ed. 1995) mais recente, fluido na sua escrita, e tal como em Meyrinck com referências fiéis e fundamentadas, extraídas do seu Diário, dos seus Tratados (hoje em dia mais acessíveis do que no meu tempo de outrora).
A par da vida extraordinária deste cientista, de cultura universal, viajado por toda a Europa e conhecido de todos os grandes do seu tempo, adquirimos informação preciosa sobre o que se lia e escrevia e divulgava, desde o antigo Euclides aos modernos Cornelius Agrippa, Trithemius, Guillaume Postel (proscrito), Hermes Trismegisto, sem esquecer o nosso Pedro Nunes nem os árabes alquimistas. A lista seria grande, basta dizer que John Dee reuniu uma blibioteca com mais de 4000 livros, raros e caros (como ele diz) que a própria Rainha desejou visitar.
Outro dos grandes méritos deste autor, Claude Postel, é a completíssima Bibliografia com que completa o livro, e a não menos completa Biografia de todos os que são citados ao longo da narrativa, por se terem cruzado com o mago, na sua casa de Mortlake, na Côrte, ou nas suas viagens.
O mundo já era global naquele tempo que nos parece longínquo e por vezes bárbaro (mas em matéria de barbaridade o que dizer do nosso?)...
Para quem prefira a língua inglesa deixo a indicação de outra obra, de Benjamin Woolley (ed. 2001) não menos interessante e completa, grande fresco de uma Inglaterra e de um mundo todo em renovação humanística, científica, cultural e a que a Magia, mais uma vez, não era alheia.
Devo dizer que, mais uma vez porque os livros estão atentos aos nossos interesses, nós é que somos esquecidos, distraídos, ou ingratos, foi numa anotação do espólio de Fernando Pessoa, entre milhares de outras, que reparei no nome de John Dee.
Pensei que não era acaso, pois não se escreve o nome desse personagem sem que se tenha lido alguma referência, algures, ou mesmo alguma obra dele. Obra dele não encontrei na biblioteca particular de Pessoa: mas encontrei várias outras, que já tenho citado, de autores estudiosos das doutrinas herméticas e em que John Dee aparece como grande referência. Fernando Pessoa, e eu com ele, partimos então nessa busca de um mago visionário de que o Poeta se sentiria próximo, pois também ele era astrólogo, fazia horóscopos a pedido, se dizia visionário com poderes de Medium, etc.
O que se fez para Pessoa e eu tanto referia, ao longo dos anos, como essencial para conhecer o seu pensamento e a sua formação, a saber a publicação dos livros da sua bilioteca, fez-se para John Dee em 1990, pela London Bibliographical Society:
JOHN DEE'S LIBRARY CATALOGUE.
Neste catálogo está o enorme testemunho de uma cultura do tempo e de todos os tempos - para aqueles que de verdade desejem aprender algo mais sobre a vida, o mundo, o cosmos na sua plenitude.
A obra mais complexa que nos deixou, para meditação, leitura e releitura é a Monas Hieroglyphica, (de 1564, ed. Kessinger Rare Reprints).
Só com especial preparação filosófica e matemática se chegará, como ele diz, à sua secreta lição.
Contribuo com uma obra-prima de Schubert, inspirada noutra, de Goethe e com o seu quê de simbologia de transformação, como na alquimia que sublima o corpo ( a matéria) elevando-nos a todos a esferas mais altas.
Fulgurações de Mignon
O
romance de Wilhelm Meister, tal como o drama de Fausto, foram obras que
acompanharam Goethe ao longo da sua vida, dos anos mais turbulentos do Sturm
und Drang aos amadurecidos da plenitude do conhecimento adquirido: pela
experiência de vida, pela inquirição científica, filosófica, artística dos
múltiplos pontos de vista, mesmo que contrários e contraditórios.
Aliás
a sua maior lição é mesmo essa: da contradição que leva à plenitude do
reconhecimento do Todo e do Uno, na esfera do grande como do pequeno mundo.-
para usar uma expressão corrente no seu tempo ( e que conhecemos de Shakespeare
e dos filósofos herméticos).
A
leitura dos seus escritos autobiográficos permite entender melhor as
características da sua formação; cresce num meio burguês de cultura cuidada,
onde desde cedo estuda música, aprende línguas, segue direito filosofia,
teologia, embora se oriente mais tarde para outras escolhas.
Mas
a formação ficou lá e moldou o seu pensamento e a sua imaginação criadora. Não
é por acaso que à data em que escreve as primeiras versões de Wilhelm Meister é
a criação teatral que o apaixona, fazendo com que contraponha a escola francesa
de Gottshed e a proposta de um teatro clássico aristotélico ao modelo muito
mais livre e sedutor de Shakespeare, que Wieland dera a conhecer na Alemanha.
Um encenação de Hamlet é discutida longamente com a troupe de quem Wilhelm
se torna amigo, viajando com eles. Entre eles viverá o seu primeiro amor e o
seu primeiro desengano. Através deles conhecerá Migon, e o Harpista – duas
figuras emblemáticas da obra, de que falarei adiante.
A
Par das discussões sobre o teatro como arte e expressão da vida no seu todo, no
que tem de melhor e pior, e como arte suprema, pois inclui a palavra, a música,
a dança - é uma arte total – desenha-se ao longo da narrativa um pensamento
filosófico, inspirado na Ética de
Spinoza, queque está a ler, como
diz na autobiografia e ainda em Rousseau, sobretudo nas Confissões.
Temos
assim a apresentação e discussão de modelos filosóficos, estéticos e éticos
(bem como pedagógicos, inspirados no suiço Pestalozzi) que ora Wilhelm ora
outros intervenientes introduzem numa narrativa por vezes confusa e que só com
a evolução do contar, sobretudo nos Anos de Viagem se aclara finalmente.
Contempla-se
em Wilhelm Meisterum grande fresco da sociedade da época:
1
do pequeno mundo do povo, do teatro ambulante que se deseja maior do que é e
mais interessante, como projecto de vida;
2
à burguesia culta, dividida entre o Iluminismo da Razão Pura e o Pietismo,
doutrina de misticismo laico mas muito actuante na Alemanha do norte ;
3
sem esquecer a discreta mas real proliferação da maçonaria e suas Lojas, em que
se proclamava a liberdade, a igualdade, a fraternidade, e sobretudo uma utopia
moral e social que em Wilhelm Meister é representada pela misteriosa Sociedade
da Torre.
Tudo
isto vem a propósito de se sentir que as personagens de Mignon e do harpista
que a acompanha, sendo como são inspiradoras, carecem de um enquadramento que
as justifique no seu mistério e sobretudo no desenrolar do romance.
Pois
na narrativa servem de fio que une os anos de Aprendizagem e de Viagem do
herói, apesar de, numa leitura apressada, poderem parecer mais dispiciendas.
Como
surge Mignon e como é descrito?
De
início como criatura meio andrógina, Wilhelm não sabe dizer se é rapaz ou
rapariga, roupas trapalhonas, ar algo selvagem; mas vendo melhor opta por
menina; de facto é uma menina, criança que anda com a troupe fazendo
habilidades, e que Wilhelm, compadecido do seu destino, e logo atraído por ela
a compra por 30 tálers (30 dinheiros de Cristo…), libertando-a do jugo cruel do
seu dono, que era o dono do circo.
(Mas
permanence o nome de Mignon: de origem francesa, Mignon era na corte o favorito
do rei; detecto aqui no romance alguma ambiguidade de relação, implícita, mas
que não se pode confirmar).
Ela
será a favorita de Meister, e a ele se devota de todo o coração.
Pela
mão dele sera educada, vestida como deve ser, ainda que sempre de branco,
alusivo a uma outra origem, mística, mais sublime. Um embrião de alma descido a
um mundo de imperfeição.
Mignon
não fala, ou muito pouco, e sempre de modo hermético, carregado de alusões:
canta, como se fosse o seu modo natural de expressão, mais intuitivo e
expressivo do que seria um dizer articulado.
O
seu mundo é o da pura emoção. Daí que ao longo dos tempos tenha inspirado
tantos e tantos compositors, sendo Shubert um deles.
Do
ciclo que vamos ouvir, a canção mais célebre é a da nostalgia de um país
maravilhoso, solar, em que florescem limoeiros e laranjeiras, se erguem belos
palácios e antigas lendas e mitos encantam a imaginação. É para aí que Mignon
deseja ir, levando Wilhelm, Amado, Protector, e Pai.
Conheces
o país onde os limões florescem,
E
brilha na folhagem escura o ouro das laranjas, Do céu azul sopra um vento suave, A murta silenciosa e o altivo loureiro, Conheces?
Partir!
Partir,
O
meu desejo é ir para lá contigo, meu Amado.
Conheces
a casa? Sobre colunas está pousado o tecto,
A
sala brilha, refulge o aposento,
As
estátuas de mármore fitam-me com o seu olhar:
Pobre
criança, que fizeram contigo? Conheces isso? Partir, partir, É o que desejo, contigo partir, meu Protector Conheces
o monte, o carreiro entre as nuvens?
A mula procura o caminho na névoa;
Nas
grutas vive a antiga raça dos dragões; Despenham-se os rochedos e em torrente as águas, Conheces?
Partir!
Partir,
Seguir
nosso caminho! Ó
Pai, vamos embora!
Nos
últimos capítulos do romance saberemos do que se trata e quais foram as
peripécias trágicas da vida de Mignon.
Mas
a resolução final do mistério, ou dos mistérios, da sua vida terrena, que tanto
aproximou Wilhelm da sua própria iniciação nas mais altas esferas da vida
Superior (a que a protecção da Sociedade Torre não é alheia) não impede a dúvida
que permanece:
Afinal
o que representa, na iniciação do herói esta jovem Mignon? Raptada (do seu
mundo perfeito, que ela evoca numa canção), sofrendo em silêncio os males (a
degradação) do mundo (evocados noutra canção), protegida pelo herói , que a
entrega aos bons cuidados de uma alma generosa, Natalie (com quem Wilhelm virá
a casar) morrendo nos seus braços do amor excessivo que a consumia em silêncio
– afinal o que representa ela?
No
segundo capítulo do livro VIIIMignon surge diante das outras crianças da casa vestida de Anjo, numa
figuração alegórica (como era costume, ao tempo, para surpresa e divertimento
nos salões, perante amigos e convidados).
É
travado um diálogo que remete para o Maerchen, conto maravilhoso datado de 1795, próximo da escrita
dos Anos de Aprendizagem,carregado de simbólica alquímica e maçónica em que diálogos cifrados
também cumprem um papel.
Natalie
explica a Wilhelm que Mignon, na companhia das meninas da casa de que ela se
ocupava, se habituara a gostar das roupas femininas, antes tão difíceis de lhe
impôr. E para festejar o aniversário de umas gémeas a vestira de Anjo, de
longas vestes brancas, a que não faltava um cinto dourado, tendo-lhe colocado
também na cabeça um diadema igual. Tinha ainda duas asas a compor a imagem. Nas
mãos levava um lírio e um cestinho com prendas.
À
sua chegada Natalie exclama: Aqui está o Anjo!
E
seguem-sa as perguntas das crianças, que reconhecem Mignon.
-Tu
és um Anjo?
-Quem
me dera, responde Mignon.
-Por
que trazes um lírio?
-Se
o meu coração fosse tão puro e sincero eu seria feliz.
-E
as asas? Mostra lá!
-As
mais belas são as que ainda não se abriram.
Cumprido
este momento mágico ( e de verdadeira iniciação, como acontece no Maerchen), quiseram despir Mignon das suas vestes, ao que ela
se opôs, pegou na sua cítara, sentou-se numa escrivaninha e cantou uma canção
de grande suavidade: “ So lasst mich scheinen, bis ich werde / Zieht mir das
weisse Kleid nicht aus! “
Nesta
canção se exprime o alto conhecimento adquirido por toda uma experiência de
vida que trouxe Wilhelm Meister até aqui, ao reencontro com Mignon, e com o
destino que junto de Natalie o tornará maduro e sábio, pois entenderá as
emoções que desde a juventude (na agitada vocação teatral o tinham perturbado).
Mignon for a a sua Anima : incipiente, indefinida, como um Daimon ( a que
Goethe se refere, noutros escritos) exprimindo-se por impulsos intensos a que
cedia. Mignon morrerá para ele sobreviver: pois a pulsão tem de ser integrada (
sofrer morte simbólica, como na alquimia) para se progredir no domínio da Razão
superior, da Sabedoria que só a vida concede. No Maerchen, de que se respira
aqui muito da sua influência, as palavras de redenção iniciática são maçónicas:
a Sabedoria, a Aparência, a Força ( na maior parte dos tradutores de “die
Weisheit, der Schein, die Gewalt” , a que no Conto se irá acrescentar outra
palavra, o Amor, como força criadora). Rudolf Steiner, Oswald Wirth, teósofos e
maçons é assim que traduzemestas
palavras de iniciação.
João
Barrento, na sua tradução escolhe a palavra que me parece mais adequada: “ a
Sabedoria, a Luz e a Força” (p. 318, vol I, ed. Relógio d’Água).
Porque
o verbo scheinen, eespecialmente
aqui, nesta canção de Mignon,tem tudo a ver com o brilho, o brilho da luz da
alma, da pura essência em que ela, ao morrer se tronará para sempre, ascendendo
à esfera em que não se distinguem mais as formas masculinas/femininas,
partilhando todas a mesma fusão do Uno e do Todo na perfeita completude
primordial.
Assim
também eu traduzo de um modo que me parece mais fiel ao ideário iniciático de
Goethe, esta canção que fecha o ciclo, aberto no capítulo IV do Livro Segundo,
quando Wilhelm, ao ver Mignon surgir de surpresa e logo fugir dali, não sabe
dizer ao certo se a criança é rapaz ou rapariga. Opta pelo sexo feminino, a que
ela se irá moldando com o tempo (sobretudo com Natalie). O que faz todo o
sentido, pois Mignon será um daimon prefigurando uma Anima que Natalie
incarnará por completo, já no fim.
Curiosamente,
ao traduzir esta canção, João Barrento que no Maerchen optou pelo brilho da luz, aqui cede ao jogo da rima
entre parecer e ser (scheinen /werden)
recuperando o termo dos tradutores que acima referi.
Prefiro
manter a sedução da luz e do brilho das altas esferas, até porque o termo werden implica, como no Fausto, transformar-se, não é um verbo estático, como sein, em que o ser (a essência) já se dá por adquirida.
Deixai
então que brilhe até me transformar,
Não
me tireis ainda as brancas vestes!
Da
bela terra apresso-me a sair
Para
descer àquela escura casa.
Deste
termo, “feste Haus” casa segura,
há uma variante, que prefiro recuperar: “ dunkle”, escura. Pois é na descida à escuridão da alma ( a
casa) que toda a sublimação se dá.
Aí
descansarei por um momento,
Até
que que em mim se rasgue um novo olhar
E
deixarei então as vestes puras
O
cintoe a coroa de enfeitar.
E
aquelas formas celestiais
Que
não distinguem homem ou mulher
Ou
roupagens ou pregas envolventes
Receberão
o corpo sublimado.
É
certo que vivi sem esforço nem cuidado,
Mas
sofri dores bastantes nesta vida
E
de desgosto envelheci antes de tempo;
Fazei-me
jovem de novo eternamente!
Aqui
está finalmente a chave do romance e a sua conclusão: que o mistério da vida é
insondável, que o destino é força que tem de ser entendida e assumida na sua
complexidade, que inclui a treva ( o sofrimento) como inclui a luz, a Vida
Eterna por todos desejada.
Jeanne
Ancelet-Hustache, grande germanista, tradutora de Wilhelm Meister,(ed. Aubier
Montaigne) relembra no Prefácio os poemas órficos de Goethe, nos últimos anos
de vida (1815-1831). Um deles é especialmente interesssante para esta
figuração, fulguração de Mignon como daimon-pulsão sublimadora: o título é Daimon, etem o
seguinte verso: “ a ti não fugirás, assim terás de ser” (trad. Paulo Quintela).