Antigamente era frequente ouvir uma criança perguntar porquê repetidas vezes, ainda que se desse uma resposta; à resposta dada era exigido outro porquê, outra resposta e assim sucessivamente, para cansaço do adulto que ia respondendo, até que por fim já farto dizia porque sim e acabava a litania de perguntas e respostas.
Hoje a criança não se dirige ao adulto para perguntar, dirige-se aos botões para logo, sem perguntar, obter alguma resposta, mais rápida e mais interessante; faz isso com um ano de idade ou pouco mais, vejo-o por um dos meus netos: todos os botões, dos comandos de televisão aos dos jogos da psp, do iphone ou do computador. As respostas são dadas pelas imagens, e o maravilhamento é total. Na cozinha, onde estão proibidos de entrar, é o fogão ou o micro-ondas que desperta a curiosidade.
Mas a interrogação, o porquê, lá permanece à mesma.
Falei de crianças, mas poderia (deveria) falar de adultos. Da nossa capacidade de interrogação, de manter activos os comandos interiores dos porquês: da nossa vida, da vida que nos rodeia. No nosso caso talvez o excesso de respostas (ainda que falsas) aliado à velocidade com que são dadas, não permitindo uma elaboração mais integrada, prejudica a necessidade interior de outrora, de perguntar, de perguntar sempre. Ainda não se fez a pergunta e a resposta, uma qualquer resposta, aí está disponível, pronta a ser consumida e se necessário logo depois a ser deitada fora e substituída por outra, igualmente veloz e disponível.
Vivemos pois entre respostas que se foram substituindo ao perguntar mais insistente.
Um sonho que apontei mostrava-me o postal enviado por um amigo alemão. Reconheci a sua letra, aberta e generosa, de bom amigo.
Começava com esta pergunta, escrita em português, que ele fala bem (também é um bom amigo de Portugal) : Porquê ?
Este porquê prendeu-me a atenção, durante dias, até que decidi apontar o sonho.
E continuo a pensar no sentido profundo desta palavra que é interrogação.
A interrogação tem a ver com a consciência, a consciência de si, o conhecimento ou reconhecimento. No caso de um sonho, sendo a linguagem dos sonhos simbólica, este porquê aponta para algo mais do que a consciência, talvez antes o reconhecimento da necessidade do interrogar, a interrogação mais do que qualquer resposta.
Encontro nas Alices de Lewis Carroll – a do “País das Maravilhas” e a do “Através do Espelho” vários porquês, todos interessantes pelo momento em que surgem, pelo fascínio das personagens que lhes dão voz, pela perplexidade que causam, levando a novos porquês (novas interrogações).Usarei, para os exemplos que vou citar, a bela tradução portuguesa de Margarida Vale de Gato (ed.Relógio d'Água,Universos Mágicos, 2007).
Apercebo-me de que não interessa a resposta e ninguém em verdade espera por ela. O importante era a interrogação, e a consequente perplexidade causada.
É essa a função da pergunta: fazer pensar, e não obter uma resposta imediata, como se julga. Tinha razão a criança de outrora, ao não aceitar as respostas, umas atrás das outras, na pergunta residia o interesse, daí a repetição, a insistência…
Para este sonho que contei, também é preciso uma “pequena chave de ouro”, como a de Alice, que se esqueceu dela em cima da mesa ao diminuir de tamanho, não podendo assim entrar logo no jardim que tinha avistado pela porta mais pequena. Entrámos noutro mundo, noutra esfera, em que é preciso diminuir, para depois aumentar e continuar na aventura – uma aventura cheia de contradições, como nos sonhos, e que pelas contradições se resolvem. Um mundo de outra lógica e que de outra maneira tem de ser abordado.
“Quem diabo sou eu? Ah, esse é o grande enigma! “(p.22). Este é o capítulo II, em que surgem variadíssimos animais, revelando a Alice um outro mundo, que não responde logo à sua interrogação: na verdade, e Carroll sabia isso, só cada um por si pode responder às próprias interrogações!
Alice está no lago de lágrimas a conversar com o Rato, que lhe diz que primeiro têm de sair dali, depois ele contará a sua história:
“ Já não era sem tempo de fugiram dali, porque o lago estava a ficar apinhado de pássaros e animais que nele tinham caído: havia um Pato e um Dodó, uma Arara e uma pequena Águia, e várias outras estranhas criaturas. Alice pôs-se à frente deles e nadaram todos para terra firme”(p.29).
Simplifico: depois de uma figuração do que poderia ser uma descida ao inconsciente, ao mundo dos sonhos (Alice adormecera junto à árvore onde a irmã lhe lia um conto) assistimos a um conjunto de situações todas elas indicadoras de processos de transformação (os alquimista diriam de sublimação) desde as pulsões do negro da alma, os instintos, simbolizados pelos inúmeros animais de que a águia, ainda que pequena, é a mais espritual representante, até ao não menos provocante jogo com os 4 elementos: terra e água, para começar, enquanto não se alude ao fogo e ao ar, que virão adiante.
Mas não esqueço o meu fio conditor, da interrogação.
E é pela personagem da Lagarta que a interrogação melhor se manifesta:
“- Quem és tu?- perguntou” , a lagarta a Alice (p.49).
Neste diálogo assistimos à litania de perguntas que a cada resposta se sucedem, não aceitando o que é dado como explicação.
A Lagarta insiste: “Quem és tu? “ (p.50). E depois dá-lhe então o conselho que a fará aumentar novamente de tamanho; desta vez não come um bolo, mas um cogumelo e cresce ao ponto de ficar mais alta do que uma árvore, com a cabeça lá no alto a tocar o céu (entrou o elemento ar).
O interrogatório continua, pela voz de uma Pomba, que ela assustou tirando-a do ninho. A pomba, que a julgara serpente, pergunta “Bem !O que é que tu és? “ (p.56). E a resposta, de que Alice era uma menina, não a deixa satisfeita, como seria de esperar. Pois não se trata aqui de respostas, mas de perguntas, como já disse…
A pergunta agora não é quem, mas o que.
E ambas difíceis, no contexto do conto, como no de nós próprios e das nossas vidas e do mundo que nos rodeia, em permanente mutação.
Na verdade, se soubessemos o quem e o que – teríamos a resposta ao porquê com que comecei esta reflexão.
O porquê, enviado por carta oriunda da Alemanha - país da Alma, como alguém lhe chamou, contrapondo-o a França, país da Razão – terá que ver com as razões da alma, do seu esquecimento, talvez, numa altura em que preocupações do quotidiano familiar, social, politico, me afastam da escrita – meu caminhar interior.
Nesse meu caminhar, onde o tempo se torna espaço (como diz Gurnemanz a Parsifal, na obra de Wagner, falando do reino do Graal) – espaço de transformação da palavra ausente mas sempre desejada, descobrirei talvez o quem, o que e por fim o porquê!