Thursday, October 21, 2010

Pessoa e mais Pessoa...


A pergunta mais difícil é essa de quem foi, é, (visto que a sua actualidade não parece perder-se, Fernando Pessoa).
Os estudiosos que querem investigar a sua personalidade, carácter, comportamento face à realidade da vida e do seu quotidiano banal, tentando distinguir a vida da obra, têm dificuldades várias a ultrapassar. A mais importante é a de que Pessoa não queria separar vida e obra, fazendo da obra a sua verdadeira vida.
Foi biografado por João Gaspar Simões : Vida e Obra de Fernando Pessoa, História de uma Geração.
Trata-se de uma obra indispensável para qualquer estudioso, pois nela se retrata uma infância (mais tarde sonhada e perdida, que podemos ir acompanhando pelos diversos poemas dos diversos heterónimos), uma adolescência e uma vida madura, esta já plenamente integrada nas correntes (nos ismos) da época com os projectos que despontavam e regularmente se iam abandonando porque tudo era difícil num país que vivia ainda de um Messianismo mais do que ultrapassado, mas em que Pessoa, com alguns outros, teimava em acreditar.
Portugal não chegou a ter esse destino de eleição, mas Pessoa acabou por tê-lo, ainda que tardiamente, com a riqueza e complexidade da sua obra.
Omitindo agora a produção poética, é sobretudo nas suas leituras que descobrimos um espírito ávido de saber: dos clássicos aos modernos, há de tudo na sua biblioteca pessoal. E quando digo modernos digo Joyce, na literatura, Freud, na psicanálise ou Eisnstein na teoria da relatividade.
Não se pode esquecer a paixão pelo esoterismo que até na poesia veio a ter marca especial.
Começou pelas Histórias da Religião, depois passou aos Gnósticos, à Mísitica judaica, com a Kabala em pano de fundo, seguiu pelos caminhos que Goethe já seguira ( e Pessoa tinha o Fausto na sua biblioteca) dos Rosa-Cruz e da Maçonaria.
Fosse ou não iniciado, - ora dizia que não, ora deixava entender que sim, mas em quê? Na dormente Ordem do Templo, sobre a qual escreveu? Na Sociedade de Teosofia, que nega haver nos arquivos algum documento que se lhe refira?
Pouco importa.
Se querer conhecer é já ser iniciado, Pesoa foi, por tal desejo, que o acompanhou toda a vida, um iniciado na Espiritualidade.
É extensa a bibliografia disponibilizada ao longo dos anos pelos estudiosos da obra pessoana, encontra-se publicada por José Blanco: Fernando Pessoa, Esboço de Uma Bibliografia.
Junto com esta, mas sem a substituir, a edição de João Rui de Sousa, Fernando Pessoa, FOTOBIBLIOGRAFIA, 1902-1935.
Para além destas obras, de vasta informação, haverá outra obra indispensável, de Maria José de Lancastre:
Fernando Pessoa, Uma Fotobiografia.
Foi pioneira, com muito material inédito e pleno de informação sobre um quotidiano inscrito em cartas e fotografias e outros documentos que ajudam a ver o Pessoa-pessoa por trás do grande poeta.
Numa fotografia de 1907 vemos o Jovem Fernando ao lado da tia Anica, que será, até certo ponto sua confidente no tocante às materias mais herméticas, como as do espiritismo.
Mas o que escreve o jovem, nos seus apontamentos, só depois da sua morte conhecidos, mais concretamente quase cinquenta anos mais tarde, quando o espólio começou a ser estudado, àcerca de si mesmo?
“Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada.Não posso incomodar os meus amigos com estas cousas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome, no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a ter um verdadeiro amigo íntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu.(…)Acabemos com isto. Amantes ou namoradas é coisa que não tenho; e é outro dos meus ideais, embora só encontre, por mais que procure no íntimo desse ideal, vacuidade e nada mais.Impossível, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo!”
É bom saber que Alastor é o título de um poema épico de Shelley, e que representa o espírito da solidão: Alastor or the Spirit of Solitude, publicado em 1917, ajuda a datar a partir desse ano o pequeno fragmento de Pessoa,no seu desabafo.
Mas há mais.
O nome Alastor deriva da mitologia romana, significando “espírito do mal”, que podemos modernamente entender como um daimon, uma energia negativa da alma mas que, como em Platão, conduz o imaginário do poeta, é como que a fonte da sua inspiração.
O que nos conta o poema? A vida de um poeta que busca intensamente a esfera mais oculta da natureza, a mais obscura, as “ estranhas verdades das terras desconhecidas”, situadas no oriente.Vê em sonhos uma jovem coberta por um véu e isso representará para ele a visão da transcendencia para além do mundo natural. Algo como que o espírito e a matéria tal como deviam existir em união no amor humano.
Mas a visão perde-se, esfumada no sonho, e a busca do poeta, interminável, irá levá-lo por muitas aventuras, das quais a mais interessante é, ao quase morrer afogado, descobrir a mutável natureza do homem, na sua humanidade, que a transcendencia envolve, como que no berço da sua infância.
É então que o poeta aceita que só a morte o pode libertar das contigências do mundo natural.
Pessoa, na sua solidão, que vive e que descreve como o poeta de
Alastor, é já por estes anos uma figura pública das letras da época, com os amigos de Orpheu.
Sendo um poeta sensacionista não deixava de cultivar os mais extremos autores do romantismo ingles, como neste caso, identificando-se com os seus heróis, com as suas ânsias mais secretas.
É visível em muitos outros casos como este, a complexidade da natureza psíquica e artística de Pessoa. Tudo viver, para tudo dizer, com a consciência de que tudo viver é impossível.
Ficam então, para o mundo, as experiências e publicações dos heterónimos. E um namoro meio- sério, meio-brincalhão, meio- sofrido, com uma Ophélia “pequenina”.
Ocultas ficarão outras preocupações, as insólitas buscas de outra coisa, noutras esferas que se sabe de antemão serem inacessíveis.
Fernando Pessoa situa o início da sua produção juvenil “por volta de 1904”. De facto são dessa data os primeiros poemas ingleses de Alexander Search e já neles se definem, até 1910, os grandes temas em que parte das suas características se manifestam: reserva e mesmo repugnância física em relação ao corpo, à aproximação de outrém que pudesse existir; o gosto decadentista do macabro, como na novela A Very Original Dinner (1907) ou o gosto pela obra de Poe, de quem traduziu O Corvo e à sua maneira imitou o conto policial, e uma permanente e quase dolorosa interrogação sobre o sentido da vida, o mistério do universo – mistério àcerca do qual o heterónimo mais tarde assinando pelo nome de Alberto Caeiro dirá que pouco ou nada lhe interessa, fingindo, em fingimento puramente poético, que só interessa o que o olhar abarca, o que os sentidos sentem ou pressentem.
Este Alberto Caeiro, apontado por vezes como Mestre, é um mistificador do verdadeiro Pessoa: o poeta esconde-se por trás dessa máscara, cuja beleza e inspiração panteísta (algumas vezes descrita como de inspiração Zen) é impossível de negar, mas que não deixa por isso de ser máscara.
O que esconde? Esconde o que revela: uma constante preocupação com o sentido da vida, do espaço que na vida é concedido ao homem (ao homem, não ao poeta, esse inventa através dos heterónimos todos os espaços de que precisa), ao homem centro do mundo e do universo, tal como o entendem os filósofos herméticos.
O homem-Pessoa é, desde que começa a pensar e a escrever, meditando na sua solidão, um paradigma do filósofo hermético.
Na sua biblioteca encontraremos as leituras marcantes, dos clássicos gregos a Shakespeare e Milton, continuando pelos românticos, pelos Simbolistas franceses, sobretudo Baudelaire,
não esquecendo Mallarmé, a sua musicalidade, Maeterlinck e o exercício do silêncio, continuando com os Futuristas (que lhe inspiraram a ele e a Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro os vários ismos com que entre nós se apresentaram).
Mas recordo que Pessoa citará em especial Cesário Verde (esse de verdade o Mestre, diz Pessoa, sem que ele próprio o soubesse). E Antero de Quental, cuja obra teria agora de ser novamente lida, com outros olhos, os do nosso poeta, que o admira.
A curiosidade pelo Oculto e as práticas do Ocultismo, datam de longe.
Numa carta à sua tia Anica, de 1916, escreve como sente que está a desenvolver qualidades “não só de medium escrevente mas também de medium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam ‘a visão astral’ e também a chamada ‘visão etérica’.Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas”.
Podemos afirmar, pela quantidade de livros relativos ao Ocultismo em geral, guardados na sua biblioteca, que o interesse nunca se perdeu, fosse qual fosse o bom ou mau ou nulo resultado de tais investigaçõess ou práticas.
Há um pequeno documento encontrado no espólio em que afirma que a mediumnidade diminui as capacidades intelectuais e por essa razão não deve ser praticada.
Mas noutros textos explicará como a bebida funciona como dispositivo de “abertura”, mágico ou mesmo místico, pelo menos surreal, para a criação literária, no seu caso.
Não desconhecia a chamada escrita automática, que também praticou, e é talvez mais explícita nos arroubos de Álvaro de Campos. Como não desconhecia a meditação dos exercícios de Yoga – há os livros que comprovam ao menos a leitura, já que da prática não nos chega a falar.
Ao seu espírito de curiosidade insaciável tudo interessava, da cultura oriental como da ocidental.
Tentando compreender o homem, pela evolução do poeta e da sua poesia, a imagem que fica é a de um adolescente tímido, mas curioso, impetuoso na sua ânsia de criar em liberdade – sair era o seu desejo máximo - sair do seio de uma família burguesa que não o compreendia, sair do seio de um meio cultural, politico, artístico, igualmente limitado, sair para marcar a sua diferença nunca aceite.
Que eu tenha usado aqui, sem pensar nisso, a palavra seio – não será um acaso, mas quem sabe uma indicação já do poeta: renascer era o que ele profundmanete desejava; ser outro, um outro reconhecido e aceite como se reconhece e aceita o filho que se tem.
Não foi o caso, pois as incógnitas permanecem, e os poemas da maturidade o proclamam: o Pai Rosa-Cruz conhece e cala…
Ficamos então com um adulto prematuramente envelhecido – mas ele já era velho em criança, quando jovem e torturado adolescente… (de Jean Seul a Alexander Search a escolha dos nomes são indicação) - poeta para quem as imagens da infância se vão tornando recorrentes, repetidas em todos os heterónimos.
Podemos acrescentar, pelas cartas a Armando Côrtes –Rodrigues, que sempre foi, tal como o amigo, um espírito fundamentalmente religioso, consciente “da terrível importância da Vida” o que o impossibilitava de “fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós próprios e para com a humanidade” (carta a A.C.R., de 19 de Janeiro, 1915).
Essa consciência de um dever outro, para além da arte, embora a arte fosse a aventura que lhe consumiu a vida, é o que o torna mais uma vez diferente e o afasta dos seus contemporâneos.
Os excessos dos futuristas tiveram o seu tempo, e esgotaram-se nele. As fantasias de um novo movimento, o Sensacionismo, de que Sá-Carneiro seria expoente máximo, - esgotaram-se também, com o seu suicídio em Paris.
O que fica a Pessoa? A própria obra, a própria interrogação, a ânsia das respostas que não chegam.
Em Acrónios, livro de poemas do seu amigo Luís Pedro Moitinho, em cujo escritório Pessoa trabalhou, e para o qual escreveu um prefácio discreto, de parcos ou nenhuns elogios (pois lhe faltava a modernidade de linguagem desejada pelos de Orpheu), podemos ler um poema dedicado a Mário de Sá Carneiro (já falecido a esta data de publicação do livro, 1932) e a Fernando Pessoa:
A Tristeza de Nunca Sermos Dois
Eu sou o reflexo do alem
sôbre mim.
Distante e perto de ninguem
assim,
eu sou sombra e realidade,
penumbra e espectro.Sou tudo
fóra da homogeneidade.
Porque canto, mudo,
o que há-de
mostrar àquilo que só eu sou,
sinto-me afastar
para um logar
que ninguem
alcançou
aquem.
Outro de mim permaneço
no logar inicial.
Com sono, não adormeço
porque, outro, faço ruídos.
Embebedo-me de ideias
para conseguir um fim.
Com os sentidos
adormecidos,
assim,
fico mais perto de Mim.
(pp.37-38)
Eis como foi visto por este amigo, na sua relação com Mário – quem sabe se a única que de verdade teve e prezou como nenhuma outra.
Vingou-se, deixando para a posteridade uma arca com mais de vinte e sete mil documentos de que se ocupam agora os estudiosos, os curiosos, toda a sorte de gente.
O importante é que o leiam sempre.