A este leitor amigo, curioso de simbologia, alquimia, esoterismo em geral, desejo lembrar que, ao ocupar-se da obra poética de Fernando Pessoa, deve ter em conta:
1.
que ele foi um leitor insaciável; observando os títulos dos livros que sempre o acompanharam se verifica como era vasto o seu conhecimento das diversas matérias relativas à história das religiões, aos mitos e símbolos das mais diversas culturas, do ocidente como do oriente e, na síntese proposta pelos teósofos, como julgou aí poder descobrir algum novo sistema, universal e adequado à nova sensibilidade da época.
2.
que apesar do estudo das antigas tradições não se afastava do tempo que era o seu, das correntes de pensamento que eram as do seu tempo, e de um desejo de permanente actualização, por meio de livros e da correspondência regular com os amigos mais próximos, entre eles Mário de Sá-Carneiro, o mais admirado de todos.
3.
com a revista Orpheu, que se esgotará no projecto do n. 3, sonhava Pessoa, com os seus amigos, renovar o panorama da criação literária e artística em Portugal e no mundo ( a Europa); a ideia - não se chegará nunca a uma doutrina sistematizada- era a da prática livre e mesmo libertária da escrita, uma escrita de fontes e de inspiração tão complexa quanto a de um William Blake, que Pessoa cita ou de um Walt Whitman, que cita igualmente e cuja obra Leaves of Grass será a marca maior da produção de Álvaro de Campos, o heterónimo semi-futurista; digo semi- porque nem tudo o que é atribuído a Álvaro de Campos se pode considerar futurista, tendo em conta os Manifestos conhecidos; há muito de panteísmo em Campos, um prazer dos sentidos e identificação com a natureza que se pode colocar sob outras bandeiras, a de Verlaine, por exemplo, em alguma da sua poesia de decadentismo simbolista.
4.
Agora que se vai dispondo gradualmente de uma edição crítica dos materiais do espólio pessoano não há razão para que não se tente encontrar nos fragmentos datados, mais antigos, a semente do que se vai seguir, maduramente, mais tarde.
Eis um exemplo, de um dos primeiros heterónimos, o francês Jean Seul ( já era Seul, sozinho; mas há razão para que seja francês, a influência do que Pessoa lia à data):
SEUL
Rien n'est; tout passe,
Tout est son cours,
Le jour se lasse
D'être le jour.
Les pleurs qui coulent
Déjà s'écroulent,
Les yeux qui (...)
Le temps -vautour.
Roule donc boule
Roule donc, roule
Toujours, toujours.
5.
No volume VIII da edição crítica, que contém os fragmentos de Jean Seul, há de tudo um pouco:
Projectos, de longo fôlego mas nunca realizados, referências a livros, a ideias, a autores como Nordau e suas teorias da degeneração e, interessante por corresponder a uma ideia feita sobre a sociedade francesa do tempo, várias referências à corrupção moral, aos costumes devassos, à contraposição da matéria e do espírito - buscando o Sublime ao citar, ainda que de forma irónica um Maeterlinck, entre outros.
Há que ler, para ter a noção de como a imaginação do poeta e a mão que ela conduzia por papéis infinitos, numa língua muito mal dominada, o francês, se perdiam enquanto procuravam; mas na procura residia o mérito e nessa incessante leitura de procura se viria a fundar a grande poesia que hoje conhecemos.
6.
Neste fragmento incipiente, pois não é mais do que isso, já encontramos no entanto um dos núcleos centrais da poesia de Pessoa: a reflexão sobre o tempo, o tempo que passa, que tudo devora (o tempo- abutre). Para situar este poema que ainda não é, está em devir, teríamos de entender o tempo como roda e rio ao modo de Marie-Louise von Franz, obra que já referi neste blog; e de Verlaine, para directa inspiração o poema il pleure dans mon coeur....bem como um outro, célebre e rodopiante, tournez, tournez, bons chevaux de bois...
Dir-se-á : não há provas explícitas; pois talvez não, mas há as leituras, a contaminação própria de símbolos e arquétipos, como neste caso o dos cavalos do circo da alma, e outros tantos que, nesta fase juvenil de criação se identificam com o que Verlaine chamou a "grande ville" e Pessoa sentia como a grande Babilónia, a grande prostituta do Apocalipse.
7.
Noutro texto, Pourriture psychique, do mesmo Jean Seul, o título já indica o ambiente do que descreve o fragmento:
Quand la matière a fait son rôle,
Eternisé /dans un moment
Dans le / passage/ court et drôle
Un être qui n'est que néant,
Et dans l'éternel mouvement
Qui est sans...
(Et la matière vide et nue)
Par où la beauté a / passé/
Dans la matière est / dissolue/
...
Et l'esprit - oh, je n'en sais rien
Était-il appui ou soutien?
Était-il forme ou apparence?
N'a-t-il(...)
Et la pensée dissolue Mais (oh! miracle pas d'un Dieu)
Dans chaque lieu entière et (...)
Et cette pourriture de l'âme
Est moins laide que la Beauté.
Sim, teremos de buscar em Baudelaire a fonte primeira de inspiração no horror da Beleza, na podridão dos cadáveres sobre os quais essa Beleza dança.
Deixo a indicação, não citarei aqui esses poemas.
Finalmente, uma chamada de atenção para o notável trabalho de transcrição dos investigadores do Espólio. Escolho uma das páginas para que o meu leitor tenha a noção das dificuldades com que se deparam; e aproveito, na esperança de que haja futuras reedições, para corrigir um erro de leitura na transcrição desta página: o ms diz:
les coeurs puent (os corações cheiram mal) e não, como leram, les coeurs prient (os corações rezam); é um detalhe, mas altera o sentido do que se deve compreender.
8.
A maior parte dos fragmentos reunidos pretende ser uma sátira moral aos costumes da época, numa França que já os decadentistas tinham glosado.
Pessoa, através de Jean Seul, insiste num vocabulário com que pretende escandalizar o leitor, abundam (sempre em francês) excrément, merde, ordure,etc.,etc.
De vez e quando uma aparente conclusão:
L'excrement, c'est la littérature qui aujourd'hui abonde.
Perdoem-se os erros de francês, e evoque-se outro autor, certamente banido nos meios burgueses daquele tempo: o Marquês de Sade!
Cedo a palavra ao ao nosso poeta:
Le lecteur aura remarqué un peu scandalisé et (...) que j'emploie incessament des termes sales, tels qu'ordure, merde, etc.(...) C'est une chose étrange que quand j'écris sur ces auteurs je ne pense qu'à ces saletés. Je ne peux penser à ces M.M. sans penser à merde et à de l'ordure. Du moment que ma pensée se dirige sur ces M.M. elle (...) trouve immédiatement de la merde, de l'ordure, de la saleté. C'es un phenomène d'association d'idées sur lequel j'appelle l'attention des personnes compétentes.
9.
O que diriam os nosso leitores se eu sugerisse que afinal este ou estes M.M. não é outro senão Maurice Maeterlinck, o da sublime influência, o que está seguramente na origem da discussão do simbolismo, do símbolo e cia. e do notável texto, o drama estático O Marinheiro?
O drama que será objecto da ironia de Álvaro de Campos, o insubmisso, que dirá tranquilamente:
"A Fernando Pessoa
depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orfeu 1
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa Magia:
'de eterno e belo há apenas o sonho.
Por que estamos nós falando ainda?'
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
(1915)
10
Agora sim, para concluir: veja-se como é complexa e tem de ser múltipla e aberta qualquer abordagem que se queira fazer da obra poética de Fernando Pessoa.
Mas esse é o desafio.