Embora as personagens nobres sejam o príncipe e a princesa, como é natural nos contos de fadas, é por Papageno que sinto especial carinho: o seu estado ainda meio selvagem, de primitiva inocência e espontaneidade, faz dele um ser (volúvel, vai mudando de opinião ainda que um pouco forçado...) volátil, no sentido mesmo que os alquimistas lhe dariam: um ser que, ligado ao vôo dos pássaros que é sua missão"apanhar" e "prender em gaiolas" , será ele mesmo "fixado", preso ao dever que lhe impõem de seguir e servir o príncipe, cumprindo ao fim e ao cabo todos os rituais necessários.
Na cena 8 o coro das damas com Papageno e o príncipe estabelece o que vai ser a norma do comportamento:
Statt Hass, Verleumdung, schwarzer Galle/ Bestuende Lieb und Bruderbund.
Em vez de ódio,difamação, negra bílis/que vivam o amor e a fraternidade.
Ainda estamos no Acto I e já alguns, para não dizer muitos, sinais nos foram dados: da simbólica alquímica, sem dúvida, mas dos ideais maçónicos e dos seus códigos, cada vez menos secretos, também. Uma das causas apontadas para o corte de relações entre Mozart e um dos libretistas, Giesecke, parece ter sido o facto de serem revelados na ópera demasiados segredos. Também consta da lenda tecida em torno da morte de Mozart que, por inveja ou outro sentimento menos nobre,os amigos alquimistas o terão lentamente envenenado com mercúrio - uma das matérias da química secreta. Mas voltando a Papageno e à felicidade risonha que o acompanha sempre:
Há algo de mozartiano na sua alegria, como no seu terror, na sua expansividade comunicativa, como no desgosto de quem descobre que errou e, acima de tudo, no modo como a ideia e a realidade do amor o seduzem e encantam e finalmente o levam a aceitar o seu destino. Destino que, vendo bem, não é pior do que o do príncipe, ainda que o possamos considerar mais terreal...mas Papageno é aquela materia prima, a Pedra que tem de ser fixada, tem de ser terreal para depois se sublimar, algures, noutro tempo, noutra fase. É mais humano, por isso mais verdadeiro. Não disse ele logo ao príncipe que era "um homem" como ele ? Considerando a pergunta do príncipe algo tola?
É no dueto de Papageno e Pamina que, curiosamente, poderemos encontrar a mais sentida expressão do motivo do amor.
Na cena XIV, ainda do Acto I, temos um dueto famoso pela origem que se lhe atribui (rosacruz, do Casamento Químico de Christian Rosencreutz..., da autoria de Johann Valentin Andreae, e ainda pela utilização dos mesmos versos por Goethe, em carta a Madame von Stein) :
Pamina
Bei maennern, welche Liebe fuehlen,
Aos homens que sentem amor
fehlt auch ein gutes Herz nicht.
não falta um bom coração.
Papageno
Die suessen Triebe mitzufuehlen,
Corresponder à doce atracção
Ist dann der Weibe erste Pflicht.
é pois da mulher o primeiro dever.
Beide/Ambos
Wir wollen uns der Liebe freu'n,
Queremos do amor sentir a alegria
Wir leben durch die Lieb allein.
só pelo amor conseguimos viver.
Pamina
Die Lieb' versuesset jede Plage,
O amor adoça todo o sofrimento
Ihr opfert jede Kreatur.
a ele se sacrificam todas as criaturas.
Papageno
Sie wuerzet unsre Lebenstage,
É ele que tempera os nossos dias
Sie wirkt im Kreise der Natur.
influencia a esfera natural.
Beide
Ihr hoher Zweck zeigt deutlich an,
O seu fim último indica claramente
Nichts edlers sei, als Weib und Mann.
nada há de mais nobre do que mulher e homem.
Mann und Weib, und Weib und Mann,
Homem e mulher, e mulher e homem,
Reichen an die Goetter an.
alcançam a divindade.
É na cena seguinte que o cenário se transforma num bosque aprazível onde se ergue um Templo com a seguinte inscrição: Templo da Sabedoria.
Este divide-se, ao longo de um corredor de colunas, em dois outros templos: à direita o Templo da Razão; à esquerda o Templo da Natureza. É Tamino quem surge, guiado pelos três jovens, que seguram na mão um ramo prateado de palmeira e lhe dizem ser este o caminho procurado e as leis que o devem reger: ser firme, paciente e guardar silêncio!
( Sei standhaft, duldsam und verschwiegen!)
Tamino quer entrar no templo, e desenrola-se um diálogo, também codificado, de perguntas e respostas rituais com o sacerdote que o guarda, antes que a entrada lhe seja permitida.
Monostatos fará ainda uma tentativa de prender Pamina e Papageno, na cena 17, mas este, com as campainhas mágicas que as damas da rainha da noite lhe tinham dado para sua protecção, conseguirá encantá-lo, a ele e aos escravos e a cena será interrompida pelo anúncio da chegada de Sarastro.
É impossível não relacionar esta cena, de composição divertida, humilhando as forças do mal, com a cena, no Fausto II, em que os Anjos distraem e seduzem Mefisto, metendo-o a ridículo do mesmo modo, não com campainhas, mas com abundância de pétalas de rosa.No caso de Fausto a simbólica seria a da rosa alquímica, que dá o mel (da sabedoria) às abelhas...
Neste final de acto anunciara-se a albedo, a passagem ao branco, com os ramos prateados dos jovens guias.Mas eles pairam no ar, o que significa que ainda falta um tempo, uma fase, para que o branco da prata desça à terra e nela se fixe, com raiz.
No acto II a descrição do cenário já indica, na primeira cena, que o espaço se transmutou e o mesmo vai acontecer aos intervenientes deste processo alquímico:
" A cena é um bosque de palmeiras; todas as árvores são de prata com folhas de ouro;há 18 assentos de folhas;em cada um uma pirâmide, e um chifre negro preso com ouro; no meio ergue-se a pirâmide maior e também as árvores mais altas; Sarastro, com outros sacerdotes, entram em passo festivo, cada qual com um ramo de palmeira na mão.Um conjunto de instrumentos de sopro acompanha cortejo " (Acto II, cena 1).
Aqui entramos verdadeiramente na descrição do que seria um processo iniciático numa Loja maçónica, que bem poderia ter sido a de Mozart.
Mas prefiro demorar um pouco mais no motivo do amor, tal como foi entendido pelos rosacruz, fazendo depois o seu caminho em doutrinas posteriores.