Monday, March 17, 2014

A Chave, da imagem ao arquétipo.
(relendo Joana Emídio Marques, Ritornelos)

Vem esta ideia a propósito de um livro de poemas, Ritornelos, de Joana Emídio Marques, publicado pela editora Abysmo neste ano de 2014. Perguntam-me às vezes: um livro é bom porquê? Depende de cada um, a opinião?É bom porque se vende muito, porque se fala dele na crítica?
Para mim um bom livro é aquele que abrimos, ainda que ao acaso, e nos prende por determinada frase lapidar, ideia, imagem, e nos desperta o desejo de ler mais. Ler mais e ler melhor, ou seja, ler o livro do princípio ao fim.
No caso de um livro de poemas algo mais me atrai, a dimensão do seu imaginário, seja ele mais contido (como na poesia oriental) deixando um espaço de emoção que será só nosso, ou também nosso, seja ele um imaginário mais discursivo e intencionalmente aberto, para que o leitor seja mais conduzido do que condutor, ao longo da leitura.
Ainda melhor será para mim o livro que depois de lido me faz voltar a ler o que já li, parando neste ou naquele verso que por qualquer razão me intriga mais.
Dou como exemplo (era o que faria, num dos meus seminários de outrora, de escrita criativa) o poema seguinte, em que uma determinada imagem, a das "chaves" se amplia à dimensão de arquétipo ( a saber, de imagem universal, transversal ao tempo e aos tempos):
38.
Mostra as mãos-chave
da porta do abismo
aí, onde o corpo
encontra a suspensão da noite imortal
e a carne desfaz-se aro
e o sangue desfaz-se aço
....
Dá-me essas mãos-chave
essas mãos-porta 
essas mãos-abismo!
Dá-me essas mãos
para que eu possa entrar-te.
(p.83)

Este poema está colocado entre dois outros, um de que a luz é elemento essencial de revelação e um outro em que o elemento é o fogo, sendo que nenhum deles permite que o poema se abra a um sentido "que acolha". Há o desejo, expresso, mas falta a chave, a mão condutora de que se fala no poema 38.
São muitas as significações simbólicas da Chave, ou das Chaves: São Pedro tem nas mãos as Chaves do Reino dos Céus, na tradição cristã, outros santos ou profetas têm igualmente a Chave (o Segredo) da beatitude eterna, em certos rituais de iniciação a Chave é a do Templo, nos contos infantis a Chave é do tesouro que se busca, uma Chave é também dada a Alice para abrir a porta que a levará ao País das Maravilhas, enfim, o poder da Chave é duplo, de abrir ou de fechar e daí a força de que se reveste este símbolo: liga ou desliga, actuando sobre as energias humanas e /ou divinas, ou, usando uma linguagem mais próxima da busca de realização de um Eu sempre em transformação, actualiza, na nossa psique consciente, as pulsões de um inconsciente que carece de ser reconhecido , entendido e aceite como existindo em si mesmo, por si mesmo, para si mesmo. No escudo papal podemos ver duas chaves, uma de ouro, outra de prata, o que do ponto de vista alquímico significa o acesso às fases últimas da Obra de Perfeição, sendo que prata e ouro são os metais que, a partir do chumbo da matéria negra, só os Iluminados conseguem obter. Basílio Valentino, célebre alquimista medieval, monge de Erfurt, tem um tratado que se intitula precisamente As Doze Chaves da Filosofia.
O seu "Paradigma da Grande Obra" tem como legenda, inscrita num círculo, "Visita o Interior da Terra e Rectificando Descobres". 
Rectificar é aqui Sublimar, como no solve et coagula alquímico dos sábios: dissolve e fixa; isto é, dissolvendo na água das emoções as energias físicas mais negras, fixa-as, coagulando, para que ao tornarem-se visíveis, apreensíveis também pela Razão, fortaleçam o Eu ( o Em-Si) e a Consciência mudada, sublimada, tornada universal.
As mãos-chave de que se fala no poema, pedindo que se mostrem, que se deixem ver, são mãos excessivamente carnais: do corpo, da carne, do sangue; as imagens fortes são da noite, do abismo, e do apelo a um "tempo suspenso" em que os opostos "horror" e "harmonia" se reconciliem.
É este apelo à intemporalidade que afinal nos dá a Chave da leitura simbólica do poema.
Suspendido o tempo, segue-se a "suspensão da matéria" que é a existência limitada. Abrem-se, com ambas as mãos, os portões desejados. A partir daí, o infinito.