Wednesday, November 07, 2012

Schubert, continuação de literatura e Arte


De Novalis ( 1772-1801) a Schubert (1797- 1828)

I

Novalis (pseudónimo de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg) figura maior do Romantimo alemão, teve a sua obra editada primeiro em 2 vols. pelos amigos Ludwig Tieck e Friedrich Schlegel, em 1802.
As obras de Novalis, bem como as dos irmãos Schlegel, tiveram marcada influência em Franz Schubert.
Vemos que na Bela Moleira/ Die Schoene Muellerin ( 1823) se recupera um imaginário de cariz popular, nacionalista ou melhor tradicionalista,  eivado de uma reflexão melancólica resultante da empatia profunda com a natureza,os seus ciclos, de que o Tempo e a Temporalidade são parte integrante e que o fluir da água do regato, na última canção (n.20, Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato)  evoca e representa.
Esta canção funde os vários motives da temática romântica por excelência: 
1. a contemplação da natureza e a elevação de alma que suscita
2. o desejo de um repouso que se aproxima do sono, depois do sonho que foi a Viagem (evocadora da busca da Flôr Azul, no célebre romance inacabado Heinrich von Ofterdingen e que são referidas na estrofe em que cita “ as pequenas flores azuis” pedindo que não olhem para ele)
3. apelo à noite, com a lua cheia a erguer-se no céu imenso, noite que. tal como o sono que pode ser antecipação da morte, dissolverá para sempre alegrias e desgostos.

Este Moleiro-Poeta  é uma recuperação do Viandante de Goethe.
Quando na primeira canção Das Wandern/ Viajar (que eu gostaria mais de traduzir por algo como Vaguear, pois é mais de vaguear que se trata, caminhando solto na paisagem,  de floresta, de ribeiro ou de mar, deixando corer o pensamento) se alude a esse ímpeto de correr mundo, já se adivinha, pela imagem escolhida da água cujo curso é imparável, da roda, que não cessa o seu rodar (como a roda da vida, que é a roda do Tempo) da pedra da mó, também ela redonda e girando cada vez mais depressa- já se adivinha, dizia que esta não sera uma viagem qualquer, mas um percurso que é decurso simbolizado da vida.
Pelo meio um atravessamento de amor, sem consequência a não ser a de despertar saudade, saudade do regresso a uma casa que é muito mais do que o lar que se deixou para trás, é morada de repouso, quem sabe se definitivo, uma paz de alma reconciliada que só a morte concede. 

Os poemas de Wilhelm Mueller (1794 -1827), um dos grandes amigos do compositor, constituem um verdadeiro ciclo, em que o fio narrativo não se perde, ampliando a temática central da viagem pela vida e do horizonte da morte. Dos vinte e cinco textos da edição original do poeta (1821) Schubert escolhe 20, que organiza numa “introdução” e fecha com um “epílogo”, o que sublinha a dramaticidade lírica e musical da obra.
O tema fulcral é o da Viagem, como já se disse.
O Wandern alemão não significa o mesmo que Reise, mas seria difícil traduzir por vaguear, viajar ao acaso, pois o Moleiro não parte ao acaso. Caminha em direcção ao moínho onde estará a sua amada. Daí que se tenha escolhido o termo Viagem, e não o Vaguear, embora este ficasse melhor no caso do Viandante, que não temos traduzido por Viajante.
Mas deixemos a questão, respeitando o que tradicionalmente está aceite.
Na canção n.1 começa a descrição da caminhada do Moleiro, junto ao riacho, e aí se glorifica a água, elemento primordial, através do que a água simboliza se glorifica o movimento perpétuo, o caminhar ( a roda) da vida:
Das Wandern / Viajar

Viajar é a alegria do moleiro,
Viajar!
Só pode ser mau moleiro
Aquele a quem viajar não agrade,
Viajar!

Aprendemos com a água,
Com a água!
Que não pára dia e noite,
Pensando só na viagem,
A água.

O mesmo fazem as rodas,
As rodas!
Que nunca ficam quietas,
Não se cansam de rodar,
As rodas.

E até as mós,tão pesadas que elas são,
As mós!
     Giram numa dança alegre,
     E querem ir mais depressa,
     As mós.

     Oh viajar, viajar, minha alegria,
     Oh viajar!
     Meu senhor, minha senhora,
     Deixai-me partir em paz,
     Vou viajar.


Se o tema central é o da Viagem, o símbolo vital será a Água.
Mas é uma água complexa, que tanto corre para a vida como esconde já alguma pulsão sombria: é o que se adivinha na canção seguinte, n.2, 

Wohin/ Para Onde:

Ouvi murmurar um regato,
Corria da fonte do rochedo
Em direcção ao vale
Fresco e maravilhado.

Não sei o que me aconteceu,
Nem quem me deu o conselho,
Também tive de o seguir,
Com o bordão de caminheiro

A descer e sempre em frente,
e sempre atrás do regato,
A correr com o seu murmúrio,
De uma alegre limpidez.

É este então o caminho?
Diz-me, regato, onde vou?
O teu murmúrio suave
Perturbou os meus sentidos.

Que digo do teu murmúrio?
Não pode ser murmurar
São Ondinas a cantar
Nas profundezas do Reno

Deixa cantar, companheiro,e 
murmurando segue o teu caminho!
Rodam as rodas do moinho,
Em todos os regatos de água clara.

Repare-se como nesta alusão a uma água feliz já está contida, pela alusão às Ondinas do Reno, a pulsão da morte que um Heine descreverá como ninguém na sua Lorelei.

Outras imagens simbólicas poderão surgir, como a floresta, ou o bosque (que seria a Terra) ou o Céu (que seria o Ar) ou mesmo o Fogo (quando se arde de paixão ou de paixão se morre). Vemo-las também noutros poetas, que Schubert muito amou, como Goethe ou Heine em quem uma consciência alquímica da vida se torna muito patente.
Mas fiquemos nesta meditação do Wandern.
Impossível não evocar aqui o poema de Goethe que melhor reflecte este estado de espírito:

Canto Nocturno do Viandante / Wanderers Nachtlied (1776 )

Tu que és do céu,
E todo o o sofrimento e dôr acalmas,
Que ao duplamente infeliz
Duplamente consolas,
Ah, estou cansado de tanta agitação,
De que servem a dôr e o prazer? –
Doce paz,
Vem, ah vem desce ao meu coração!

E ainda este, que completa o anterior e lhe amplia o sentido da brevidade da vida ou do desejo de morrer:

Outro Igual /Ein Gleiches ( 1780 )

No alto dos montes
Reina a paz,
Nas árvores
Não se pressente 
nem um sopro.
Os  passarinhos calam-se no bosque.
Espera, que em breve
Também tu repousarás.

Com este mesmo estado de espírito, de abandono à noite do desgosto e da melancolia, e de ânsia pelo repouso eterno (da morte) é concluída a última canção, n. 20:
 Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato

 Descansa em paz, descansa em paz! Fecha os teus olhos!
Viajante, que estás cansado, chegaste a casa.
Aqui reside a fidelidade,junto a mim repousarás,
Até que o mar engula todos os regatos.

Lavada de fresco será a tua cama
Com largo travesseiro no quarto azul de cristal,
Vinde, vinde agora, vós que sabeis embalar,
Embalai nas ondas o rapaz até que ele adormeça.

Se uma trompa soar no bosque verdejante
Farei um barulhão à sua volta.
Não olheis para mim, florzinhas azuis!
Estais a dar pesadelos ao meu adormecido.

Afasta, afasta, o trilho do moinho!
Fora, fora, rapariguinha má,
Que a tua sombra não o venha acordar.
Mas dá-me o teu lencinho fino
Para os seus olhos tapar.

Boa noite! Boa noite!Até que tudo desperte.
Que o sono te consuma as alegrias e as dores!
Ergue-se a lua cheia, dissipa-se o nevoeiro
E o céu lá em cima tão vasto que ele é.