Friday, February 23, 2007

Celan o Branco e o Todo

Continuando com este percurso feito ao de leve pelos poemas de Paul Celan, detenho-me no Branco, que ao invés do que se esperaria (mas nada na sua obra corresponde ao que se possa esperar) nos atira para a ferida da fragmentação, da alma quebrada como o cântaro de Pessoa.
Não admira que Celan se tenha interessado pela obra de Pessoa, a ponto de traduzir alguns dos seus versos.É a mesma fractura inultrapassável que os consome a ambos.
Eis o branco de que falo:

QUANDO O BRANCO NOS AGREDIU,de noite;
quando do púcaro das esmolas saiu
mais do que água;
quando o joelho esfolado
fez sinal à campaínha do sacrifício:
Voa!-

Então
estava eu
ainda inteiro.

A data atribuída a este poema é 15.2. 1964, para a última estrofe.No mesmo dia escreveu HELLIGSKEITHUNGER, FOME DE CLARIDADE.
Em versões posteriores, talvez por gralha depois aceite pelo poeta, temos em vez de Opferglocke,campaínha do sacrifício,a palavra Opferlocke, caracol do sacrifício- o que nos remeteria para o "caracol de judeu" de um outro poema, como Mandorla, por exemplo, onde escreve "caracol de judeu,não envelheces " (referindo-se ao modo de entrançar o cabelo que os judeus ortodoxos mantêm ainda hoje).
Contudo o sentido de "du wirst nicht grau", não envelheces, amplia-se lendo o poema ÁLAMO (ESPENBAUM) onde a morte cruel e prematura da mãe nos é contada, usando a mesma imagem do cabelo que não chega a poder branquear com a idade; tal não foi permitido...

ÁLAMO

Álamo,a tua folhagem espreita branca na escuridão.
O cabelo da minha mãe nunca foi branco.

Dente-de-leão, verde como tu é a Ucrânia.
A minha loura mãe não voltou para casa.

Nuvem de chuva, demoras-te nas fontes?
Minha mãe silenciosa chora por todos.

Estrela redonda, atas o nó de ouro.
O coração da minha mãe foi ferido com chumbo.

Porta de carvalho,quem te desengonçou ?
A minha suave mãe não pode vir.


Escrito em 1945, em Bucareste, relembrando a mãe, assassinada na Ucrânia, no campo de concentração alemão Michailowka de Gaissin, no Inverno de 42-43.
A ler com Mandorla, que também aqui trarei em breve.

Tuesday, February 20, 2007

Chymisch, Alquimico

Alquímico este poema, escrito em 1961, onde a marca mais forte é a da BODAS QUÍMICAS de Christian-Rosenkreutz... manifesto fundador do Rosicrucismo alemão e europeu, cujo autor, Johann Valentin Andreae, durante algum tempo se escondeu em anonimato tranquilo. Na realidade é uma obra do século XVII que conheceu grande sucesso, imediata divulgação e foi, já nos séculos XVIII- XX estudada e recriada por adeptos e poetas que nela bebiam a sua inspiração: Goethe foi um deles, Pessoa também citou, talvez em segunda mão V.Andreae, mas houve muitos mais, sobretudo os praticantes do surrealismo bebido em Freud ou na teosofia em moda.
Yvan Goll terá sido uma das influências que neste campo Paul Celan sofreu. Magia e alquimia faziam parte da experimentação, da alquimia do Verbo, Breton não esquecia o seu Rimbaud e todos bebiam num imaginário mais luminosos ou mais obscuro, conforme a sensibilidade de cada um.
Em Celan não é de admirar que a sombra brilhe mais do que o sol.
Para completar o nosso entendimento desta alquimia da alma, que nada tem a ver com a transmutação do chumbo real em ouro possível, será útil ler ainda poemas como GELO, EDEN ; SOLVE,COAGULA e alguns outros em que elementos como o fogo e a água tomam parte, metaforica e simbolicamente.
Mas passemos a Químico, ou Alquímico, como prefiro agora. Faz parte do conjunto intitulado A ROSA DE NINGUÉM, onde se incluem os referidos acima, e outros de igual valor, como TERRA NEGRA ( sendo a terra negra a materia prima da Obra alquímica, como se sabe ).

ALQUÍMICO

Silêncio, derretido como ouro, em
mãos
carbonizadas.

Grande, cinzenta,
próxima como tudo o que se perdeu
forma-irmã:

Todos os nomes, todos aqueles
nomes queimados
em conjunto.Tanta
cinza para abençoar.Tanta
terra ganha
sobre
os leves, tão leves
anéis
da alma.

Grande. Cinzenta. Sem
escórias.

Tu, outrora.
Tu com a pálida
flôr mordida.
Tu na torrente de vinho.

(Não é verdade que também a nós
nos despediu este relógio?
Bem,
bem, como a tua palavra morreu passando por aqui.)

Silêncio, derretido como ouro, em
mãos
carbonizadas, carbonizadas.
Dedos, finos como fumo. Como coroas, coroas de ar
em--

Grande. Cinzenta.Sem
rasto.
Ré-
gia.


Deixo que o leitor abra o texto e o respire, lembrando que pode ainda ler mais, em A VIA RÉGIA,do ciclo "A Cerca do Tempo".
Verificará que o caminho de sublimação da via alquímica é aqui impedido por uma dissolução ( do ouro que se derrete) nas trevas, nas cinzas das mãos carbonizadas. Nigredo poderia ser o outro, verdadeiro nome do poema.

Monday, February 19, 2007

Paul Celan


O eco do Génesis, no poema EINMAL de Paul Celan fez-me pensar num verso de um outro poema, CELLO EINSATZ em que conclui que "tudo é menos/ do que é/ tudo é mais".
Em EINMAL, que vou traduzir por UM DIA, podemos ler:

Um dia,
consegui ouvi-lo,
estava a lavar o mundo,
sem ser visto, durante toda a noite,
de verdade.

Uno e Infinito,
aniquilado,
feito eu.

E fez-se luz. Salvação.


Ponderei bem a escolha dos termos nesta versão que implica, como em tudo, uma margem de interpretação ou escolha mais livre e pesoal do que outras existentes.
O que é, ou parece menos, neste poema, devido à condensação própria da poética de Celan é, na verdade, muito mais.
Por uma vez temos aqui um movimento próximo do que podemos denominar "teologia positiva" em contraposição ao sofrimento do silêncio e distância que caracteriza a relação do poeta com o seu Deus, o Deus do Antigo Testamento, que deixou desabar sobre a humanidade flagelos ainda piores do que aqueles com que afligiu Job a dada altura.
A obra de purificação que o gesto de lavar implica leva-nos a todas as imagens que na alquimia permitem ler/ver o processo da transmutação. Por um lado a lavagem é dita "obra da mulher", mas por outro vemos em inúmers gravuras, ao longo dos séculos, como é na água que se dá a conjunção de opostos, como é da água que sai o coral vermelho da perfeição, como no mar se figuram em união o corpo, o espírito e a alma do adepto.

A Água, pois, como elemento primordial : fala-se no Génesis da criação dos céus e da terra, esta como vazio informe, coberto de trevas, e do espírito de Deus pairando sobre as águas.
E logo no primeiro momento o que Deus ordena é: Faça-se luz, e fez-se luz, que Deus separou da escuridão das trevas; assim nasceram o dia a noite - o primeiro dia.
Adiante Deus surgirá arrependido de ter criado o mundo, o homem, todas as criaturas vivas, e por meio do dilúvio decide apagar o seu primeiro gesto do princípio dos tempos.Mas Noé comove o seu coração, e será concedida uma última oportunidade à sua geração e de todos os seres que ele transporte na arca.
O Antigo Testamento abunda em episódios de amor, lamento, castigo e redenção de um Deus em litígio e sempre aberto à esperança de uma humanidade melhor que não se vê chegar.

Tal como JOB, Celan interpela o Senhor uma e outra vez: não o vê, não o ouve, espera um sinal que o redima, também a ele, no meio de tão grande tortura, a do negro da alma, que o afundará anos mais tarde.
Este poema, de uma única vez, de um dia, em que conseguiu ver Deus a lavar o mundo, como se lavasse a Pedra da Perfeição para dela extrair o ouro da perfeição humana, é dos poucos em que a Redenção é proclamada, junto com o Fiat da luz.

O "fazer-se eu" do poema inaugura um outro, novo, momento da existência: Deus fez-se carne, fez-se homem, passou a habitar entre nós, incarnou também com a sua luz na alma do poeta destroçado.
Mas a passagem do Antigo para o Novo Testamento não foi fácil, neste caso, e durou só o instante do poema, de tal forma foi pesada a marca que a perseguição nazi deixou por todo o lado.
A metáfora alquímica em Celan funciona sempre ao contrário da Obra conseguida. Mão tremenda a interrompe, a que encontramos nas LAMENTAÇÕES:


"Eu sou o homem que conheceu a miséria
sob a vara de seu furor.
Ele me guiou e me fez andar
na treva e não na luz;
só contra mim está ele volvendo e revolvendo
sua mão todo o dia".
(2-3)

A leitura de Celan implica que se leia o todo na parte, sempre o Todo, para chegar a um mais profundo entendimento.
EINMAL data de 1965. Em carta a Gisèle Celan-Lestrange escreve o poeta que este é um dos textos que, junto com TODESFUGE, pode formar um ciclo.
Haverá ainda outro EINMAL:

Einmal, der Tod hatte Zulauf,
verbargst du dich in mir.

Um dia, a morte tinha grande procura,
tu escondeste-te em mim.

Este é um poema datado de 1967, que Celan refere ter escrito na mesma altura que SINK:

À letra, poderia ser traduzido assim o primeiro verso:" Afunda-me bem no teu sovaco..."
Mas tomo a liberdade de escolher outra via:

Esconde-me
debaixo do braço,

leva também
o bater do pulso,

esconde-te nele,
lá fora.


Os críticos sugerem que se relacione este verso, esconder-se, com o que vimos acima, em "Einmal".
Mas devemos ir mais longe, neste caminho de inversão alquímica: é Deus "feito eu", ou seja, incarnado no homem de que foi criador e parece ter abandonado, que precisa de esconder-se, bem fundo, afundando-se no bater do pulso (do corpo) que lhe é oferecido lá fora, no espaço do sofrimento.
Noutro poema do mesmo ciclo ( LICHTZWANG, A FORÇA DA LUZ )podemos ler como o "tu" que é Deus vai morrendo no homem:

Afasta de vez
os cones de luz:

a treva guarda
a palavra balbuciante .


Poesia terrível, de fim de ciclo, de fim de mundo, de utopia adiada que nem a leitura do LIVRO permite que se aguarde: Celan "comerá " o Livro, com as suas insígnias, esta é a marca do seu Apocalipse.

Agora que os genuflexórios ardem,
como eu o Livro
com todas as
Insígnias.

Os estudiosos podem hoje mais facilmente aceder à Obra Completa de Paul Celan, por ex. nesta edição de que me servi: Paul Celan, die Gedichte, Kommentierte Gesamtausgabe, Suhrkamp, 2005.
É uma excelente edição num só volume, editado e comentado por Barbara Wiedemann.
Refiro ainda, para quem deseje um estudo histórico-crítico aprofundado, a edição de Bonn:
BONNER AUSGABE,Werke.Historisch-kritische Ausgabe, 1. Abteilung:Lyrik und Prosa ( estão publicados 10 volumes e seguem-se outros )